Memórias Póstumas de Brás Cubas/XC
CAPITULO XC
E nada. Nenhuma lembrança testamentaria, uma pastilha que fosse, com que do todo em todo não parecesse ingrato ou esquecido. Nada. Virgilia tragou raivosa esse mallogro, e disse-m’o com certa cautela, não pela cousa em si, senão porque entendia com o filho, de quem sabia que eu não gostava muito, nem pouco. Insinuei-lhe que não devia pensar mais em semelhante negocio. O melhor de tudo era esquecer o defunto, um lorpa, um cainho sem nome, e tratar de cousas alegres; o nosso filho, por exemplo.
Lá me escapou a decifração do mysterio, esse doce mysterio de algumas semanas antes, quando Virgilia me pareceu um pouco differente do que era. Um filho! Um ser tirado do meu ser! Esta era a minha preoccupação exclusiva daquelle tempo. Olhos do mundo, zelos do marido, morte do Viegas, nada me interessava por então, nem conflictos politicos, nem revoluções, nem terremotos, nem nada. En só pensava naquelle embryão anonymo, de obscura paternidade, e uma voz secreta me dizia: é teu filho. Meu filho! E repetia estas duas palavras, com certa voluptuosidade indefinivel, e não sei que assomos de orgulho. Sentia-me homem.
O melhor é que conversavamos os dous, o embryão e eu, falavamos de cousas presentes e futuras. O maroto amava-me, era um pelintra gracioso, dava-me pancadinhas na cara com as mãosinhas gordas, ou então traçava a beca de bacharel, porque elle havia de ser bacharel, e fazia um discurso na camara dos deputados. E o pae a ouvil-o de uma tribuna, com os olhos rasos de lagrimas. De bacharel passava outra vez á escola, pequenino, lousa e livros debaixo do braço, ou então caía no berço para tornar a erguer-se homem. Em vão buscava fixar no espirito uma edade, uma attitude; esse embryão tinha a meus olhos todos os tamanhos e gestos: elle mamava, elle escrevia, elle valsava, elle era o interminavel nos limites de um quarto de hora, — baby e deputado, collegial e pintalegrete. Ás vezes, ao pé de Virgilia, esquecia-me della e de tudo; Virgilia sacudia-me, reprochava-me o silencio, dizia que eu já lhe não queria nada. A verdade é que estava em dialogo com o embryão; era o velho colloquio de Adão e Caim, uma conversa sem palavras entre a vida e a vida, o mysterio e o mysterio.