Memórias Póstumas de Brás Cubas/XXXIX
Enquanto eu fazia comigo mesmo aquela reflexão, entrou na loja um sujeito baixo, sem chapéu, trazendo pela mão uma menina de quatro anos.
— Como passou de hoje de manhã? disse ele a Marcela.
— Assim, assim. Vem cá, Maricota.
O sujeito levantou a criança pelos braços e passou-a para dentro do balcão.
— Anda, disse ele; pergunta a D. Marcela como passou a noite. Estava ansiosa por vir cá, mas a mãe não tinha podido vesti-la.., Então, Maricota? Toma a bênção... Olha a vara de marmelo! Assim... Não imagina o que ela é lá em casa; fala na senhora a todos os instantes, e aqui parece uma pamonha. Ainda ontem... Digo, Maricota?
— Não, diga, não, papai.
— Então foi alguma coisa feia? perguntou Marcela batendo na cara da menina.
— Eu lhe digo; a mãe ensina-lhe a rezar todas as noites um padre-nosso e uma ave-maria, oferecidos a Nossa Senhora; mas a pequena ontem veio pedir-me com voz muito humilde... imagine o quê?... que queria oferecê-los a Santa Marcela.
— Coitadinha! disse Marcela beijando-a.
— É um namoro, uma paixão, como a senhora não imagina... A mãe diz que é feitiço...
Contou mais algumas coisas o sujeito, todas muito agradáveis, até que saiu levando a menina, não sem deitar-me um olhar interrogativo ou suspeitoso. Perguntei a Marcela quem era ele.
— É um relojoeiro da vizinhança, um bom homem; a mulher também; e a filha é galante, não? Parecem gostar muito de mim... é boa gente.
Ao proferir estas palavras havia um tremor de alegria na voz de Marcela; e no rosto como que se lhe espraiou uma onda de ventura...