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Memórias da Rua do Ouvidor/VI

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Como se revela em burlesca proeza o primeiro ou mais antigo herói da Rua do Ouvidor; conta-se a história de duas ceias no fundo da taberna de Manoel Gago e como pela sua singular habilidade pregou famosa logração a três amigos o Belo Senhor, interessante celebridade do Rio de Janeiro, rematando-se esta tradição com o conselho um pouco profético dado por Agostinho Fuas, um dos logrados, ao Belo Senhor.

A rua que em 1780 recebeu a denominação do Ouvidor teve por seu primeiro herói em burlesca proeza o Belo Senhor.

Talvez que bem poucos dos meus leitores saibam quem foi o Belo Senhor; aliás a mais famosa personagem travessa e infelizmente muito pior do que travessa da cidade do Rio de Janeiro no último quartel do século passado e que acabou ignorado morrendo não sei em que ano do princípio do atual.

O Belo Senhor chamava-se José Joaquim de...; nascera na cidade do Rio de Janeiro, onde seus pais (creio que pelo menos o pai era de Portugal) o fizeram receber limitada instrução acima da primária, mostrando-se ele, porém, muito inteligente, e sobretudo, maravilhoso em caligrafia.

Era de tanta beleza varonil no rosto como bem talhado de corpo; de espírito sutil, de gênio alegre e folgazão, dançando com o maior primor, cantando agradavelmente, merecera por tudo isso a desvanecedora alcunha de Belo Senhor, que por certo não foram os homens que lhe puseram.

Em sua juventude gozou o Belo Senhor a vida, esbanjando o tempo, e só ocupado de folguedos e de prazeres; ao menos, porém, isento de abusos e de atos criminosos que mancham o homem.

É nessa idade louçã, de alegrias e de devaneios, que se apresenta o mais antigo herói de travessura curiosa passada na Rua do Ouvidor.

O que passo a referir é tradição que ouvi não só a um, mas a alguns velhos que conheceram o Belo Senhor, e entre esses há um respeitável e estimadíssimo cirurgião que em idade muito avançada faleceu em 1877.

Nesta tradição pertencem-me os nomes dos tafuis amigos do Belo Senhor, a data precisa da segunda ceia, e os diálogos; porque não fui informado daqueles nomes, e nem da data que marquei para dar certa vida à tradição.

Tudo mais, isto é, a primeira e a segunda ceia, as fivelas e a casaca novas, e a surpresa causada pela presença da Rosinha, atriz da casa da ópera, devem considerar-se, e pelo menos eu reputo de tradição verdadeira.

E agora conto a proeza do Belo Senhor, sem mais prelúdios, nem cerimônias.

Companheiro assíduo dos mais elegantes e ricos tafuis do seu tempo, o Belo Senhor; que, muitas vezes, por seus dotes naturais, pelo seu espírito e por suas prendas ganhava, mais do que eles, agrados das senhoras nas reuniões e saraus, quase sempre baldo ao trunfo não os podia igualar no luxo dos vestidos sempre novos, e na magia do ouro, com que era posto em derrota na disputa de certos amores.

Uma noite, em 1783, ou pouco depois, em companhia de alguns desses tafuis, todos de boas e ricas famílias, o que não os impedia de render vassalagem à extravagância, que também é rainha da mocidade, ceava o Belo Senhor peixe frito com pimentões, chouriço de porco e rim de vaca assado e bebia vinho do Ponto, em saleta reservada do fundo da famosa taberna de Manoel Gago, sita à Rua do Ouvidor; esquina da Rua dos Latoeiros.

Ninguém se admire da escolha de uma taberna para uma ceia desses tafuis.

Ainda depois de estabelecidos os hotéis e em anos que chegavam ao termo da primeira metade do nosso estupendo século, não faltavam hóspedes muito sérios às saletas dos fundos de certas tabernas para cear sardinhas fritas com pimentões, e rim assado com o indispensável molho de pimenta de cheiro.

Era costume do século passado, que se conservava no atual, e as tabernas preferidas só admitiam nas saletas fregueses conhecidos e de boa companhia.

Trata-se, porém, da ceia dos tafuis.

Em ajuntamento de mancebos que só pensam em divertir-se e rir, há de ordinário uma vítima de escolha ocasional.

Nesta noite a vítima era o Belo Senhor.

Afonso Martinho tinha dito que ele trazia nos sapatos o testemunho de impostura e falsidade; porque as fivelas que tinham passado por ser de ouro já estavam por velhas perdendo o dissimulo e denunciando a prata que nem era de lei.

O Belo Senhor comia então uma posta de pescada, e não respondeu.

As fivelas dos sapatos do Belo Senhor estão em harmonia com a sua casaca de uso ordinário, como hoje, e que, como todos vêem, já está perdendo o pêlo! exclamou Domingos Lopo.

— É avareza desse demônio: devemos castigá-lo; proponho que de hoje a oito dias o Belo Senhor seja obrigado a pagar-nos aqui mesmo ceia dez vezes melhor do que esta, que eu hoje pago; disse a zombar Antônio Pereira.

Mas quando Domingos Lopo falava, o Belo Senhor estava-se regalando de chouriço com farinha de mandioca; e quando Antônio Pereira o emprazou para a ceia que havia de pagar, ele saboreava o rim assado, temperando-o no molho de pimenta de cheiro, e não deu resposta nem a um, nem a outro, e menos ainda pareceu ressentir-se.

Não havia maligna intenção nos gracejos dos três amigos; mas realmente era pouco generoso, e de mau gosto em mancebos ricos zombar do que era manifesta prova dos poucos recursos pecuniários da vítima do ridículo.

Risadas acompanhavam, no entanto, os remoques provocadores de reação que o Belo Senhor não costumava conter.

Mas então ele comia, e não falava.

Agostinho Fuas tomou por sua vez a palavra e disse:

— O Belo Senhor está hoje triste, silencioso e abatido: querem saber por quê? Há um mês que apaixonado, perdido de amor pela Rosinha Feitiço, a mais bela dama da Casa da Ópera, cantava-lhe de noite modinhas à porta e de dia mandava-lhe ramalhetes de rosas, e de não-me-deixes; mas coitado! soube ontem que eu sem modinhas nem flores, e só com uma chave, que tirei da minha bolsa, abri a porta que não lhe abriam, e tomei-lhe a namorada!... Tem paciência, Belo Senhor! espera dois ou três meses pelo termo do meu capricho: eu te pus no purgatório, mas não te condenei ao inferno.

Gargalhadas gerais agravaram a zombaria de Agostinho Fuas, tanto mais cruel, quanto era absolutamente expresso de verdade.

O Belo Senhor por acaso ou por abafado ímpeto de ira cobriu de pimentas de cheiro uma garfada de rim e comeu, parecendo regalar-se.

Agostinho Fuas, um pouco picado da indiferença da vítima, tirou do bolso uma carta e mostrou-a aos companheiros.

— Ai está um bilhete que a Rosinha me escreveu hoje...

— Mas que diabo! ela escreve Gostinho em vez de Agostinho? disse Afonso Martinho.

— É assim que me trata: vê agora a assinatura...

— Feitiço...


— É como eu a chamo. E tu, Belo Senhor; não queres ver a carta da Rosinha Feitiço?

Era demais.

O Belo Senhor que inalterável não tinha levantado os olhos do prato saboreou o último pedaço de rim assado, encheu de vinho o copo, bebeu vagarosa e deliciosamente, depôs o copo na mesa e disse com perfeita serenidade:

— Agora eu.

Todos os olhos se fitaram no Belo Senhor que, voltando-se primeiro para Antônio Pereira, disse-lhe:

— Antônio Pereira! de hoje a oito dias cearemos nesta taberna profusa e grandiosamente!... convide a todos os presentes e a mais alguns amigos, mas eu juro que tu, Antônio Pereira, hás de pagar a ceia.

— Eu?... aposto que não!...

— E nessa noite de ceia, de hoje a oito dias, eu me apresentarei de ricas fivelas de ouro nos sapatos, e tu, Afonso Martinho, hás de pagar as fivelas.

— Eu?... também aposto que não!

— E tu, Domingos Lopo, hás de pagar a casaca nova com que me apresentarei a honrar a ceia!

— Terceira aposta!... juro que não.

— Quanto a Agostinho Fuas, não pretendo que ele me pague coisa alguma; pelo contrário, serei eu quem o há de felicitar com a mais agradável surpresa.

— Explica-te, Belo Senhor!

— Impossível! será o encantamento da ceia; mas é segredo que guardarei comigo até de hoje a oito dias.

— São, portanto, quatro apostas, disse Antônio Pereira; vê em que te metes, Belo Senhor!

— Não faço aposta alguma; respondeu este: contento-me com a ceia profusa, com as fivelas de ouro, com a casaca nova e com o surpreendente efeito do meu segredo.

Levantaram-se todos para sair.

— A propósito! exclamou o Belo Senhor; quero saber a hora precisa da ceia: Antônio Pereira é quem deve marcar a hora, porque as despesas correrão por sua conta.

— O Belo Senhor paga-nos aqui boa ceia, de hoje a oito dias, às nove horas da noite precisas, disse Antônio Pereira.

— Muito bem! de hoje a oito dias, 20 de julho de 1783, às nove horas da noite em ponto, disse o Belo Senhor.

E logo acrescentou:

— Daqui até lá nem mais meia palavra sobre este assunto.

E todos se retiraram da taberna a rir e a gracejar, como amigos que eram.

Passaram-se os oito dias do prazo marcado, chegou a noite de 20 de julho, e ainda antes das nove horas já se achavam reunidos na saleta do fundo da taberna de Manoel Gago, além de alguns outros todos os mancebos que ali tinham ceado oito dias antes.

Faltava somente o Belo Senhor.

Havia curiosidade como que ansiosa.

Nenhum dos convidados ousava supor que ele faltasse ao prazo e à ceia.

A questão do pagamento da ceia, das fivelas de ouro, da casaca nova, e enfim a surpresa prometida a Agostinho Fuas preocupavam a todos.

A ceia já estava servida e era na verdade profusa para a habilidade culinária de Manoel Gago, o dono da taberna, que até então se limitara a dar aos seus fregueses peixe frito, camarão, chouriço e rim de vaca.

Os nossos leitores dispensam a descrição da ceia.

Ao toque de nove horas entrou pela taberna o Belo Senhor trajando fina casaca nova e trazendo nos sapatos ricas fivelas de ouro.

Os amigos nem tiveram tempo de aplaudi-lo, porque logo em seguida dois robustos negros se mostraram conduzindo elegante cadeirinha que depuseram a entrada da saleta.

— Agostinho Fuas, disse o Belo Senhor, sem dúvida que eu devia começar pela agradável surpresa que te prometi.

E, abrindo as cortinas da cadeirinha, ofereceu a mão e ajudou a sair dela uma bonita moça morena.

— Apresento-lhes a linda e mimosa Rosinha Feitiço, que nos dará a glória de cear conosco, se Agostinho Fuas o permitir.

A surpresa foi realmente grande, e até a bela Rosinha também a partilhou, vendo Agostinho Fuas confundido e amuado.

— Antônio Pereira! podemos sentar-nos à mesa?

— Eu não me sentarei à mesa com a senhora Rosinha sem que ela me explique como se apresenta aqui!... disse Agostinho Fuas.

— Camarada! que ciúmes de mau gosto!... observou o Belo Senhor a sorrir.

— Então isso é Ópera do Judeu?... perguntou a bonita morena.

E tirou do bolso e entregou a Agostinho uma carta.

O amante ciumento leu alto com admiração e ainda com maior surpresa:

"Feitiço: - Quero que venhas cear comigo em boa companhia; como porém não me é possível ir buscar-te, entendi-me com o meu amigo Belo Senhor, que vai receber-te às oito e meia horas da noite, levando cadeirinha para te conduzir. Podes confiar-te a ele, e vem sem falta; eu o exijo: é questão de honra! até logo, Feitiço. - Teu Gostinho."

— E então? perguntou a atriz da casa da ópera.

— O mesmo tratamento que me dás, e que te dou!... e a minha letra!... porque é a minha letra... a minha assinatura.. é, juro que é; mas juro também que não escrevi esta carta! exclamou Agostinho Fuas.

— Oh! ceemos, Agostinho Fuas! disse o Belo Senhor.

Sentaram-se todos; mas imediatamente Manoel Gago chegou-se a Antônio Pereira, e entregou-lhe a conta da ceia.

— Que diabo é isso?... que tenho eu com o rol e com a conta da ceia? disse Antônio Pereira.

Manoel Gago nem pode falar; mas, correndo a taberna, tirou da gaveta um papel e veio apresentá-lo a Antônio Pereira.

O papel dizia assim:

"Sr. Manoel Gago, a 20 de julho de 1783 quero que às 9 horas da noite precisas tenha pronta e servida à mesa para 20 pessoas ceia constante dos pratos e vinhos seguintes... (estendia-se o rol): não olhe as despesas; quero, porém, que, logo ao começar a ceia, me apresente a conta diante de todos, é caso de aposta. - Seu freguês, Antônio Pereira."

O papel correu pela mão de todos, e todos deram testemunho de que a letra e a assinatura eram de Antônio Pereira, que puxou pela bolsa e pagou a ceia a rir alegremente, dizendo aos amigos:

— Tal e qual como Agostinho Fuas!... reconheço por minhas a letra e assinatura... não há questão... mas leve-me o demo, se eu escrevi e assinei isso!...

O Belo Senhor ceava gulosamente e sem falar.

Mas antes das dez horas entraram na saleta um alfaiate e um ourives, que, desfazendo-se em desculpas, e protestando que se mostravam ali só por obediência às ordens escritas e positivas, entregaram o primeiro a Domingos Lopo a conta de uma casaca do mais fino pano e o segundo a Afonso Martinho a de primorosas fivelas de ouro, que também por ordem escrita e assinada um tinha feito e o outro entregado ao Belo Senhor; sob a condição de cobrança realizada naquela noite e àquela hora na taberna de Manoel Gago, e durante a ceia que ali se daria.

O ourives e o alfaiate, fregueses dos dois ricos tafuis, tinham obedecido ao extravagante capricho de mancebos notáveis por devaneios e originalidades travessas de juventude, e, além disso, seus fregueses de maiores despesas e do mais pronto pagamento.

Afonso Martinho e Domingos Lopo riram-se ainda mais do que Antônio Pereira, e todos com eles verificaram, depois de acurado exame, que era impossível negar a letra das ordens e as assinaturas dos dois pagantes da casaca de pano fino e das fivelas de ouro do Belo Senhor.

E Domingos Lopo e Afonso Martinho pagaram ao som dos aplausos da companhia ao alfaiate e ao ourives.

Tanto eles como Antônio Pereira podiam negar-se aos pagamentos que fizeram; eram porém cavalheiros amigos do Belo Senhor, e julgaram de bom-gosto dar-se por vencidos pela habilidade caligráfica daquele, a quem aliás tinham provocado com as suas zombarias.

O Belo Senhor foi o herói da ceia que se prolongou até a meia-noite.

A essa hora, e ao dissolver-se a reunião, o Belo Senhor ainda zombeteiro perguntou a Agostinho Fuas:

— Queres que eu me encarregue de acompanhar a tua bela Rosa ao seu jardim?...

Rosinha Feitiço fez um momo a indicar negativa.

— Não, respondeu Agostinho Fuas, quero porém que saiamos juntos.

E saíram.

A pequena distância da taberna de Manoel Gago, e vendo-se livre de ouvidos indiscretos, Agostinho Fuas deixou o braço de Rosinha, a quem conduzia, e, afastando-se dela alguns passos com o Belo Senhor; apertou as mãos deste e disse-lhe em voz muito baixa:

— Belo Senhor! gosto de ti e vou dar-te boa prova disso.

— Que é?...

— Lembra-te sempre do conselho de Fuas, na Rua do Ouvidor!...

— Mas... enfim!.. falas tão sério!...

— Desdenha e perde a tua admirável e extraordinária perfeição imitativa da escrita e da assinatura alheias.

— Ah!... o que fiz hoje...

— O que fizeste hoje foi simples, mas lamentável brinquedo com amigos, e mais tarde o que poderás fazer será crime. Lembra-te!

E Agostinho Fuas voltou a tomar o braço da bonita atriz da casa da ópera.

O Belo Senhor ficou parado e quase triste.

E mais tarde lembrou-se muito, e lembrou-se em dias sinistros - do conselho de Fuas na Rua do Ouvidor.

Provavelmente hei de ter ocasião de lembrar também a sabedoria do conselho de Agostinho Fuas, dando, embora de passagem, notícia de lamentável crime, e de adversa fortuna à que a maravilhosa habilidade caligráfica levou o Belo Senhor, já infelizmente corrompido.