Memórias da Rua do Ouvidor/XIX
Anexos
Como falhando-me o assunto com que contava para o terceiro anexo, acho excelente recurso nas célebres casas de modas de madame gorda, e das três judias, e finalmente completo este capítulo, que é agora e decididamente o último, contando uma historieta, que as senhoras casadas não devem ler.
Vá a quem toca, e que eu não sei quem seja, mas a quem aliás agradeço a obsequiosa suavidade da carta anônima que me dirigiu.
Procurei zelosamente informações da casa célebre loja de brinquedos, à Rua do Ouvidor quina da de Gonçalves Dias, e fiquei in albis. Apenas me falaram de loja desse gênero próxima à Rua do Ouvidor, mas na de Gonçalves Dias, e bem que este nome esteja gravado profundamente no meu coração, denomina rua cujas casas não podem entrar nas Memórias da Rua do Ouvidor.
O meu leitor anônimo, que tanto me honrou, é quem pode melhor orientar-me, porque, lho digo, consultei a dois velhos respeitáveis dos que me assinalou, outrora jovens estudantes e freqüentadores da loja de brinquedos da Rua do Ouvidor, quina da de Gonçalves Dias, e ambos me responderam pela negativa, e tão decididamente, que me desanimaram o empenho de outras informações.
Ora, o caso é que me achei em apuros de comprometimento. A tal loja de brinquedos devia ser o meu terceiro anexo, e por força maior reconheci-me desanexado!
Mas (vaidade de autor que é tão estulta como todas as outras vaidades deste nosso mundo, planeta de doidos) eu faço, ou fiz de conta que os meus numerosíssimos e enlevadíssimos leitores e principalmente leitoras (ainda mais vaidade no caso) esperavam com interesse e ardor o terceiro anexo, e agora positivamente último capítulo das Memórias da Rua do Ouvidor, obra dantênica, buenarótica, homérica e destinada a atravessar os séculos.
Em tão grande aperto, não quis dar o meu braço a torcer, e viajando eu só de cima para baixo, e de baixo para cima a procurar matéria nova para encher o terceiro anexo, descobri notabilidades que me dariam assunto para escrever ainda uns vinte capítulos.
Mas eu já declarei que a minha obra monumental estava acabada e não quero ir além do terceiro anexo para não comprometer as condições arquitetônicas do edifício que levantei.
Entre dezenas de recordações algumas, cabeludas e outras descabeladas, desta mina inesgotável da Rua do Ouvidor desde meio século e alguns anos tomarei de preferência duas lojas célebres e uma historieta, conto imaginário, ou verdade verdadeira.
Anexo III
Lembrarei em primeiro lugar a mais moderna das duas lojas célebres, aquela que ainda há menos de doze anos ocupava a casa do atual n.º 108, contígua à da Estrela.
Anos depois de 1840 tiveram nessa casa loja de modas duas francesas de meia-idade, irmãs, das quais uma alta e quase magra e a outra notavelmente gorda.
Ou porque fosse a principal sécia da casa ou por aquela distinção física a irmã gorda deu não o nome, mas a alcunha à loja.
Como as duas irmãs se chamavam nem eu sei, nem creio que alguém cuidasse em sabê-lo; o nome da loja era o da família de ambas, estava escrito no portal; mas ninguém o lia.
Loja de madame gorda era a denominação conhecida.
As duas irmãs não podiam agradar por bonitas; eram porém francesas que sabiam atrair fregueses por seus modos afáveis, e que gozavam crédito de modistas de bom-gosto.
A loja de madame gorda foi muito concorrida, e portanto a própria irmã que era magra ia engordando financeiramente.
Estabelecido o Alcazar Lírico depois Teatro Lírico Francês na Rua da Vala (da Uruguaiana atualmente), as principais ninfas alcazarinas foram aos poucos tomando madame gorda por modista, e enfim a célebre Mlle Aimée firmou o reinado da tesoura de madame gorda nas toilettes das alcazarinas florescentes.
Até aí não havia que dizer; as novas freguesas pagavam caro, e gastavam como se fossem pescadoras do Pactolo. Eram poucas, somente as mais famosas, as alcazarinas a quem madame gorda servia, mas cada uma delas valia por dez a despender na loja.
Isso não espantou a antiga e séria freguesia de madame gorda.
Mas em breve Mlle Aimée, e logo a imitá-la as celebridades alcazarinas não se contentaram com a sua exposição às vezes em seminudez na cena escandalosa do Alcazar, que determinou a decadência e a corrupção da arte dramática na capital do Império; elas quiseram ainda pôr-se em exibição repreensível de dia, e madame gorda prestou-se a essa exploração do vício.
As tais alcazarinas, tomando como em prova seus novos e riquíssimos vestidos, fugiam do interior da loja; e era junto às portas desta e em face do público a passar pela rua que madame gorda e madame magra as cercavam, simulando marcar supostos defeitos em sua obra, ora alisando com os dedos os talhes do corpinho, ora fazendo aquelas freguesas de colo nu e nuas espáduas executar longo e moroso movimento de rotação, como bonecas-figurinos de vidraça de cabeleireiro, enquanto elas, as duas irmãs, em fingido e ativo exame indicavam aos observadores curiosos as formas e os contornos dos corpos assim expostos, e o inconfessável prestigio de tanta riqueza de vestidos.
Ora, é claríssimo que não se provam inocentemente vestidos às portas da rua. As pessoas gordas não se abaixam com facilidade; mas madame gorda rebaixou-se muito.
Era demais. A freguesia antiga e séria abandonou a loja de madame gorda. Em breve (para alguns sem dúvida em longo) Mlle Aimée como andorinha que era bateu a linda plumagem (verso de modinha antiga) e foi fazer verão em outras cidades, as suas companheiras, de mim nomeada, caíram aqui no inverno do desprezo merecido, ou fizeram à cidade do Rio de Janeiro o grande favor de ir arranjar primavera e outono, onde melhor lhes pareceu.
História de ciganas nômades.
E madame gorda sempre a engordar cada vez mais fisicamente, sentindo-se, por justa punição de pecado, emagrecer economicamente, trancou as portas de sua loja de modas, e foi longe do Brasil maldizer da vil condescendência com que se prestara a servir ao impudor das alcazarinas.
É caso de dizer - bem-feito.
A outra loja, também célebre, menos moderna, porém, ocupou a casa quase fronteira da de madame gorda, e que hoje é muito conhecida pela sua denominação de Dois Oceanos, como se não fosse bastante um oceano só para afogar os fregueses.
Desde perto de quarenta anos floresceu nessa casa a loja das judias; a denominação escrita na tabuleta não era essa; o público, porém, não conhecia nem admitia outra.
A loja era de modas, nela, além de se fazerem vestidos, vendiam-se chapéus e diversidade de enfeites para senhoras.
O chefe e dono do estabelecimento era um francês (alsaciano) judeu, cujo nome não sei, mas notabilíssimo por ser pai de três bonitas filhas, três judias jovens, solteiras e espertas, que eram as principais recomendações da loja.
Declaro que vi muitas vezes e sem o menor perigo para a minha virtude madame gorda e sua irmã quase magra, mas não tenho idéia, ou não conservo lembrança, das três judias, que representavam o contraste daquelas duas irmãs.
Informam-me que a loja das judias foi muito afreguesada, teve fama e crédito e que as três jovens bonitas, faceiras e de afabilíssimo trato, judias que eram, judiaram o mais que é possível com dezenas de elegantes mancebos, e com alguns ridículos velhos, que se enamoraram delas.
As judias deixavam-se namorar, sorriam-se aos namorados, faziam vestidos e vendiam chapéus e enfeites às esposas, às filhas e às irmãs dos seus apaixonados, judiavam com estes, e se conservavam honestas.
Dizem-me que das três irmãs a segunda na conta dos anos, e eram vinte neste tempo, a segunda que, apesar do - in medio posita do virtus, foi a menos contida, ou a mais ousada, muito urgida por um seu ardente apaixonado, que era então membro da Câmara dos Deputados, dera-lhe, o mil vezes pedido, longo anel de seus cabelos louros a troco de um colar de finas pérolas.
O ilustre parlamentar, que foi realmente ilustre e depois senador, etc., pensou que podia tecer com os cabelos do áureo anel lisonjeira corda para prender a judia, mas que havia de acontecer?... a Câmara foi dissolvida, e o deputado dissoluto, voltando à loja das judias, e ali fazendo à namorada proposições terníssimas, recebeu em resposta a mais cruel judiação:
Ah, doutor!... palavra de honra, depois da dissolução da Câmara o seu amor não pode mais entrar na ordem do dia.
O ex-deputado teve o bom-gosto de rir-se, mas saiu da loja desapontado; mais tarde, quando era senador, e foi mais alguma coisa, já as judias tinham-se retirado da cidade do Rio de Janeiro e recolhido à França.
Uma delas casou-se aqui, creio que com um judeu a quem. amava; das outras não sei; deixaram fama de judiação namoradeira, mas sem descrédito aviltador.
Ganharam bom dinheiro na loja e zombaram dos namorados intencionais-sedutores.
Direito perfeito: eram judias, e como tais judiaram.
Madame gorda e madame quase magra, sua irmã, multiplicadas por si mesmas, não valiam o próprio colar de pérolas que a troco do anel de seus cabelos louros recebeu menos dignamente de seu apaixonado a segunda das três judias.
Acabam aqui os anexos; segue porém como apêndice a historieta que prometi, e que vai sem declaração da loja e do ano em que se passou para que não me acusem de leviandade.
Mr. Tal estava de mau humor e com alguma razão, tendo encontrado entre outras sedas e fazendas em remessa chegada de Paris dez cortes de seda para vestidos, todos de padrão igual e horrivelmente espantador com extravagante mistura de cores vivíssimas, e de ramagens grandes e pequenas amarelas, vermelhas, negras, etc.
Mr. Tal não quis expor semelhante espanta-freguesas. Mr. Qual, porém, que era desde algum tempo sócio em parte dos lucros da loja, jurou que venderia todos os dez cortes, e pôs um deles suficientemente desenrolado na vidraça.
Mr. Tal disse ao sócio:
Venda-os a todo preço, a quarenta mil réis ou menos cada um, se aparecerem gostos estragados a comprá-los.
No primeiro dia não houve homem ou senhora que, passando por defronte da loja, não indicasse como que admiração e repugnância, vendo tão espantadora e medonha seda.
Mas no dia seguinte a uma hora da tarde parou de repente à porta da loja bonito faetonte tirado por cavalos negros, trazendo dentro (não dos cavalos, mas dele faetonte) recostada em entorso Mlle Bibi (nome que lhe dou) com os cabelos à Madalena, et coetera.
Mademoiselle saltou do faetonte, entrou na loja e pediu para examinar a seda, que Mr. Qual, acudindo logo, apresentou-lhe dizendo:
Última e delirante moda de Paris! recebemos vinte cortes desta seda, e só nos resta este que é o último: vestido a - je ne veux pas qu'on m'aime! - Mme Mac Mahon há pouco mais de um mês fez com um destes vestidos verdadeiro furor no baile do Eliseu.
Sim, respondeu Mlle Bibi a rir: é mais do que feia, é tão horripilante esta seda, que por força obriga a atenção, por conseqüência convém-me. O preço?
Por ser o último corte... e porque Mlle o distinguiu... duzentos mil réis...
Que diabo! mas que me importa o diabo do preço?... quero esse corte de horrorosa seda... ponha-o de lado que é meu, daqui a meia hora há de vir quem lho pague.
E Mlle Bibi voltou-se com artificioso movimento, e a olhar para a direita, para a esquerda e para a frente lançou-se dentro do faetonte, e outra vez reclinada de estorso, e pondo à mostra uma das altas botinas toda cheia de laços e fivelas, tendo dado ordens ao cocheiro, foi levada à trote largo pela Rua do Ouvidor acima.
Menos de meia hora depois, e sem vergonha nenhuma, o Comendador Crispim (eu vou crismando os verdadeiros personagens da história), homem de quarenta anos e casado com senhora ainda moça, bonita e virtuosa, entrou na loja, viu e pagou o corte de vestido de seda, pediu papel e tinta e (mal inspirado poeta) escreveu a seguinte quadra:
Aí tens a mais feia seda,
Que se fará bela em ti,
Pois tudo é belo em teu corpo,
Meu anjo, minha Bibi.
E logo colocou o seu verso entre as dobras da seda, fez acondicionar esta em cartão bem arranjado e escreveu sobre o cartão a necessária indicação da rua e do número da casa da Bibi e deu ordem para ser imediatamente levada a encomenda ao seu destino.
Um caixeiro saiu logo com o corte de seda.
O Comendador Crispim que, embora fosse rico, era muito econômico, e freqüentemente queixava-se à esposa das despesas que ela fazia com suas toilettes de modo a vexá-la não pouco, acabava de pagar duzentos mil réis corte de abominável seda coagido por exigência do vício que o escravizava.
Raras vezes a esposa tinha merecido seda de tanto preço ao marido sovina. É verdade que Crispim pagara os duzentos mil réis, lamentando semelhante capricho, mas somas muito mais avultadas já por castigo lhe tinha custado a sua fraqueza.
Não é fraqueza que se diz?...
Mas Crispim ia sair da loja, quando parou à porta, vendo aproximar-se outro comendador (no Brasil os doutores e os comendadores são como as folhas do bosque e as areias do mar), o seu concunhado Teotônio, e ambos ficaram a conversar.
A conversação foi confidencial e versou sobre as impertinências das esposas e sobre os expedientes com que eles as mistificavam.
Os dois comendadores casados com duas senhoras irmãs e honestíssimas eram maridos como há por aí outros que, ainda mesmo sem comenda, são maridos de encomenda.
Crispim, depois de ouvir o que Teotônio lhe dizia da sua Luizinha, que às vezes ciumenta o massava, chorando, mas sempre acabava por acreditar na sua inocência, tomou a palavra por sua vez.
Olha, Teotônio, a minha Clotilde só me atrapalha, vindo alguns dias encontrar-me na Rua do Ouvidor; hoje, porém, como eu podia correr certo perigo, livrei-me absolutamente da Clotilde. Foi uma dos diabos... estou quase arrependido.
Que foi?
De um retalho de seda azul que lhe ficara de um vestido ela arranjou uma gravata para o nosso sobrinho Quincas, e esta manhã fingi por isso tal acesso de ciúmes, que a deixei chorosa, desgrenhada..,
Mas que loucura cruel! Quincas tem apenas dezesseis anos de idade, e desde os cinco em que perdeu seus pais é nosso filho de adoção...
Chegando à casa eu pedirei perdão à Clotilde; era-me porém necessário livrar-me hoje dela na Rua do Ouvidor.
Os dois foram interrompidos pelo caixeiro que tinha ido levar o corte de seda à casa de Mlle Bibi.
Crispim chamou a um lado o pequeno e interrogou-o sobre o desempenho da comissão, mas quase logo levou as mãos à cabeça e recuou exclamando:
Oh, diabo! que foi fazer este pastrana!...
O desazado caixeiro, que costumava levar às vezes fazendas à casa do comendador, não julgara preciso ler as indicações escritas sobre o cartão e fora entregar o corte de seda à esposa de Crispim.
Mr. Tal e Mr. Qual acudiram à exclamação, e sabendo do qui pro quo, enquanto o primeiro repreendia o caixeiro e jurava ir despedi-lo; o segundo, abusando da perturbação e do desespero de Crispim, disse-lhe:
Talvez que V. Ex.ª esteja aflito, além do outro motivo, também pela falha do... da encomenda, por ter sido aquele corte de seda o último... mas acabamos de descobrir outro corte, e, se quer que o mande levar... eu sei onde é... não haverá engano... V. Ex.ª quer que o mande levar?... quer?...
Mande... mande, respondeu sem pensar no que dizia o Comendador Crispim em apuros.
Teotônio ouviu-lhe a história do fatal qui pro quo com a circunstância agravante da quadra, prova evidente da culpa.
Ficaram os dois a olhar um para o outro e junto de um penedo outro penedo.
Que entrosga! murmurou Crispim finalmente.
E o meio de sair dela?... disse Teotônio.
Ambos por mais de uma hora ali se deixaram a imaginar explicações impossíveis, até que de súbito parou à porta da loja um carro (da praça) e dele se apeiou Clotilde;
Façam idéia da cara e da compostura de Crispim. Isto se passava em fins de junho, e o pobre homem suava a causar pena.
Clotilde vinha pálida, levemente trêmula, mas senhora.
Ela deu a mão ao marido e ao cunhado e disse com brandura àquele:
Crispim, fizeste hoje um despesão comigo! o caixeiro me informou do preço da seda; agradeço-te muito o belo presente e a graça dos versos.
O marido respondeu estupidamente, fingindo rir e falando ao ouvido da esposa:
Ah! causei-te ciúmes? era o que eu queria para vingar-me.
Clotilde tornou dizendo-lhe docemente:
Bem sei, e podias tê-lo dito em voz alta; bem sei que a minha vontade e até os meus caprichos são a tua lei, e vou prová-lo.
Avançando então para dentro da loja, ela disse a Mr. Qual que se apresentara:
Quero um outro corte daquela seda.
Pois o que foi, é pequeno?...
Não, Crispim, a seda porém é lindíssima, e eu desejo outro corte para aumentar a cauda do vestido, e para fazer algumas gravatas que destino ao nosso Quincas.
O marido sovina sentiu o golpe, e chegando-se para Teotônio disse-lhe baixinho:
Ainda bem que o derradeiro depois do último...
Mas não acabou, porque Mr. Qual acudiu, dizendo:
Pensávamos ter esgotado os cortes da delirante je ne veux pas qu'on m'aime, mas de mistura com outras sedas novíssimas um caixeiro achou mais um... ei-lo, é de V. Ex.ª!
Mande-o pôr no carro.
E voltando-se para o marido Clotilde acrescentou:
Mais duzentos mil réis para aumento da cauda do meu vestido e para gravatas do nosso Quincas, por certo que te não causam pena...
Oh!... não... não!... balbuciou Crispim, que suava cada vez mais.
Aquele corte de seda é o ultíssimo, disse Teotônio em tom muito baixo a Crispim.
Que está dizendo a meu marido?... perguntou Clotilde sorrindo:
Dizia-lhe que a delirante seda é feia como o inferno...
Isso é inveja, mano, e o que eu sinto é que não haja ainda um corte, porque em lembrança da ótima companhia que o senhor faz a Crispim eu levaria de presente à Luizinha...
Oh, minha senhora!... parece milagre de V.Ex.ª... exclamou Mr. Qual; encontraram-se mais dois cortes da je ne veux pas qu'on m'aime no último caixão que acaba de se abrir neste momento.
Dois! meu Crispim, sê condescendente... tu és tão bom para mim!... eu quero os dois... um para Luizinha e outro que mandarei à prima Antonica que faz anos amanhã.
Mas repara... balbuciou todo banhado em suor e concentrando a fúria o marido sovina.
Os dois cortes de seda no carro! disse Clotilde a Mr. Qual, que logo obedeceu à ordem.
E quase terna ela continuou falando ao marido:
Quero-os, e tu escreverás uns versinhos, como aqueles, para que eu os mande pregados na seda à prima Antonica.
Teotônio mal continha o ímpeto de desatar a rir da vingança da ciumenta cunhada.
Crispim alagado em suor e obrigado a submeter-se, embora furioso pela despesa de quatro cortes de seda além do reservado para a Bibi, temendo que aparecessem inesperados ainda outros que a vingativa esposa abrasava em ciúme quisesse tomar, disse a esta:
Agora vamos para casa, dar-me-ás um lugar no carro.
Não posso, só há lugar para dois, e o nosso Quincas me espera na Praça de S. Francisco de Paula.
E Clotilde, aceitando graciosa e risonha a mão que o marido lhe ofereceu, entrou no carro, que imediatamente partiu.
Melhor do que eu esperava e temia! disse Teotônio ao concunhado.
E o sovina Crispim respondeu:
Mas quatro cortes... afora o outro!... um conto de réis!... um conto de réis!...
E a tua quadra à Bibi?
O diabo leve a poesia!...
E o miserável vicioso deu dois passos para o interior da loja, e disse a Mr. Qual:
Não esqueça a... encomenda!
E saiu com o concunhado, que era tão bom marido como ele.
Clotilde nem recebeu o Quincas na Praça de S. Francisco de Paula, nem fez vestido, nem gravatas, nem presentes da seda maldita.
Melancólica, mas plácida, recebeu em casa o marido sem atormentar-se, nem atormentá-lo com increpações e cenas tristes de ciúmes.
Mas vingou-se deveras!...
Dos quatro cortes de seda - je ne veux pas qu'on m'aime - fez uma dúzia de robes de chambre para o seu Crispim, e dai em diante não poupou mais despesas com as suas toilettes.
O melhor desta história é que hoje, sendo lido o folhetim, um dos meus leitores da Rua do Ouvidor dirá aos seus fregueses de confeitaria:
O caso foi falsificado; o qui pro quo verdadeiro aconteceu com uma rica bandeja de doces...
Outro dirá na sua loja de ourivesaria:
Que peta! não houve história de corte de vestidos; o que houve foi... quase o mesmo... o engano na entrega de rico relogiozinho de ouro...
Três edições afora as que ignoro de história que é a mesma no fundo.
Eu por mim não rejeito, e, ao contrário, aceito as diversas edições ou corrigendas da minha - historieta -, mas dou vista da causa aos maridos moços e principalmente aos velhos para que cada um diga o que for de seu direito à sua respectiva esposa.