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Memórias da Rua do Ouvidor/XV

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Como em viagem pela Rua do Ouvidor entramos no quarteirão que demora entre as de Gonçalves Dias e da Uruguaiana e não achando aí casas célebres no passado, vejo-me baldo de matéria, e por isso mesmo falo mais do que nunca, ocupando os meus companheiros de viagem com observações sobre os bondes e sobre o famoso e vizinho Alcazar, depois chamado Teatro Lírico Francês, planta daninha que nos veio de França. Como enfim conto curiosa história que é da Rua do Ouvidor, mas que eu não digo nem quando, nem em que loja de modista se passou; dou à história forma de romance, e nela muitas lições morais, e principalmente a última, que é de fazer arrepiar os cabelos.

O quarteirão da Rua do Ouvidor que fica entre as Ruas de Gonçalves Dias e, antiga da Vala, hoje da Uruguaiana, não me lembra casas célebres, nem fatos que não sejam da atualidade.

O futuro continuador das Memórias da Rua do Ouvidor (na hipótese de que ela venha a tê-lo) terá muito que escrever sobre este quarteirão que deixo sem nota, e que desde três lustros tanto lustre tem adquirido, e que de tantas notas pode ser objeto.

Dois fatos marcaram o seu florescimento que é do nosso tempo.

O primeiro foi a vizinhança do Alcazar, depois chamado Teatro Lírico Francês, que se fundou na rua então ainda denominada da Vala, e muito próximo da Rua do Ouvidor.

O segundo foi a instituição dos carros urbanos, a que o povo deu o nome de bondes, porque o seu serviço começou meses depois que o Visconde de Itaboraí, Ministro da Fazenda, realizou em 1868 a operação financeira de emissão de bondes, de que muito se ocupou pró e contra a imprensa.

Às linhas de bondes de Botafogo e das Laranjeiras com seu ponto de partida inicial e de chegada terminal na Rua de Gonçalves Dias quina da do Ouvidor seguiram-se mais tarde as de Vila Isabel com seu ponto de partida e chegada na Rua da Uruguaiana junto da do Ouvidor.

Ora, bastariam os bondes nos dois extremos desse quarteirão estéril no passado para torná-lo florescente e com certeza rico de episódios romanescos que amenizariam muito as memórias do tempo.

Antes, porém, dos bondes, o Alcazar já tinha eletrizado muito este departement da França da Rua do Ouvidor.

As cantarinas do Alcazar, artistas indefectivelmente arteiras, freqüentavam de preferência o quarteirão, onde muitas tinham o seu quartel, ou como andorinhas faziam o seu verão.

Não ponho mais na carta, porque dos princípios tiram-se as conseqüências.

Tenho a cair-me do bico da pena uma enchente de reflexões, mas, para não amolar demais os meus companheiros de viagem, limito-me a escrever breves palavras, que são de irresistível impulso.

Maligna foi sob todos os pontos de vista a influência do Alcazar, venenosa planta francesa que veio medrar e propagar-se tanto na cidade do Rio de Janeiro.

O Alcazar, o teatro dos trocadilhos obscenos, dos cancãs e das exibições de mulheres seminuas, corrompeu os costumes e atiçou a imoralidade.

O Alcazar determinou a decadência da arte dramática e a depravação do gosto.

O Alcazar francês propagou o seu veneno em Alcazares de maculada língua portuguesa, que se foram chamando - Jardim de Flora, Cassino (o antigo, pois que honra lhe seja feita, o artista Furtado Coelho no seu Cassino sabe resistir à peste) e outros malchamados teatros.

A minha censura não é tão cruel que negue perdão a empresários e artistas dramáticos (alguns de merecimento real) que se abatem e se amesquinham, servindo à depravação do gosto do público; eles são todos pobres, querem viver, querem pão, não podem prescindir do pão cotidiano, e já fazem muito, quando evitam as indecências da cena corrompida com o recurso de dramas fantásticos e mágicos.

A influência epidêmica, perniciosa, palustre do Alcazar foi tal, que o Rossi e o Salveni tiveram no Rio de Janeiro algumas noites quase sem público, e que para não lhe acontecer o mesmo, foram precisos a Ristori todo o prestigio de seu sexo e todo o opulentíssimo e inesgotável tesouro do seu gênio admirável e da sua profunda mestria artística.

João Caetano dos Santos, o inspirado, o sublime adivinhador dos segredos de arte de Rossi e de Salvini, João Caetano, verdadeiro gênio do teatro brasileiro e grande triunfador do nosso palco dramático, morreu felizmente a tempo para não morrer desesperado, em face das preferências dadas pelo público às obscenidades de trocadilhos, ao cancã e à seminudez das artistas arteiras do Alcazar.

E o satânico Alcazar, que debalde corrigiu depois em parte as exagerações do desenfreamento cênico, deixou-nos até hoje, e nem sei até quando, sem teatro dramático nacional, ao menos regular.

Talvez que alguns pensem que a lamentável falta de bom teatro dramático seja de pouca importância.

Positivamente assim não é.

No teatro pode-se tomar o pulso à civilização e à capacidade moral do povo de um país.

O teatro é coisa muito séria. É a mais extensa e concorrida escola pública da boa ou da má educação do povo.

E agora reparo que, discorrendo um pouco sobre o Alcazar, meti-me em assunto que é estranho à Rua do Ouvidor.

Hão de dizer que é penúria de matéria.

Enganam-se.

Se eu pudesse escrever tudo quanto sei da Rua do Ouvidor, encheria dois ou três volumes, e ainda me ficaria que dizer.

Vou dar uma prova:

Já declarei que o quarteirão por onde estou agora viajando com os meus leitores não me apresenta casas célebres no passado, nem tradições ou reminiscências curiosas.

Pois bem: acho excelente o lugar e o ensejo para contar uma história um pouco melindrosa, cujo desfecho se passou em uma casa de modista da Rua do Ouvidor.

O que porém não direi é o nome da modista, nem onde era a sua loja, e muito menos incorrerei na indiscrição de indicar o ano em que se deu o caso.

O melhor é que os meus companheiros de viagem façam de conta que lhes conto um romance, procurando diverti-los.

Seja um romance da Rua do Ouvidor criado pela minha imaginação, e por isso mesmo lá vai com tal qual forma de romance.

Júlia era ainda jovem e de muito delicada sensibilidade; havia cinco anos que se casara por amor, mas no fim de cinco semanas depois do casamento, Frederico, seu noivo, tornara ao culto freqüente da sua apaixonada distração do tempo de solteiro.

Frederico era doido pela caça, e por corridas de pacas na Serra da Tijuca, ou de veados ainda mais longe da cidade, às vezes deixava Júlia três, quatro e seis dias entregue às desilusões dos sonhos poéticos do passado, e exposta a novas ilusões de sonhos do presente e do futuro.

Pior ainda: Frederico e Júlia eram ricos, e Júlia não tinha ocupação em que empregasse o tempo.

Que rede de perigos para aquela esposa!...

Juventude, idade de flamas e de imaginação a desnortear a vida real;

Sensibilidade muito excitável, que é porta que se abre fácil às tentações do diabo; Ociosidade, menor ou maior série de zeros susceptíveis de se escreverem à direita da parcela do pecado;

Marido caçador apaixonado ausentando-se freqüentemente por dias da esposa deixada em solidão propícia aos sonhos da imaginação;

E além desse outro perigo, o ponto mais fraco da fortaleza da virtude feminil, que não indiquei em primeiro lugar porque estava subentendido - a vaidade feminil.

E Júlia era vaidosa, mesmo tão vaidosa como um homem, que elevado a barão ou a visconde do seu dinheiro toma balda e fumaças de fidalguia.

(Creio que chamei tola por vaidosa a Júlia do modo o mais cortês que me era possível).

A evitar e vencer esses perigos havia o encanto do amor; os dois esposos amavam-se com efeito ternamente, mas Júlia amava só - seu marido -, e Frederico adorava além de Júlia as pacas e os veados, o que desequilibrava um pouco as proporções do amor de uma e de outro.

Felizmente, além do amor, Júlia possuía o tesouro da virtude.

Pois bem, ou antes, pois mal, em cinco anos de casamento, Júlia tivera apenas cinco semanas de enlevadora e perfeita lua-de-mel e turbara-se e doera-se vendo que depois de um mês e poucos dias de exclusivo domínio de formosa noiva, as pacas e os veados eram rivais, que repetidas vezes lhe usurpavam por dias os zelosos cuidados e os afagos do esposo.

Este romance é cheio de lições morais, e a moralidade do seu principio é o seguinte:

Homem caçador, frenético tal qual o era Frederico, ou deve ser perpétuo celibatário, ou casando-se com senhora jovem, sensível, rica, ociosa, e está subentendido, vaidosa, cumpre-lhe renegar o culto da caça, e, não podendo fazê-lo, levar a esposa às corridas de pacas e veados, torná-la sua sécia, sua Diana caçadora, para não expô-la a ficar em solitário abandono - doce objetivo de outro muito condenável, reprovado, mas indignamente observado gênero de caça.

E foi isto, foi o caso de - doce objetivo - o que veio atormentar Júlia por freqüentemente abandonada pelo marido caçador, sendo ela tão jovem (casara-se aos 18 anos de idade), tão linda e tão vaidosa, tão sensível, tão rica e ociosa.

As ausências de Frederico, que no primeiro e segundo ano de casamento limitavam-se a três ou quatro dias, estenderam-se depois a seis e oito.

Nos três primeiros anos, Júlia escrupulosamente encerrada em sua casa esperava saudosa a volta do seu Nemrod, indicando o seu desgosto em aversão pronunciada na mesa do jantar aos pratos de pacas e de veados, mas no fim de três anos acabou por manifestar-se francamente aborrecida do isolamento a que se via condenada durante os dias de caçada de seu marido.

E Frederico respondeu à Júlia, abraçando-a:

— Tens mil vezes razão, meu querido anjo!... mas eu ainda não me lembrei de opor-me a que visitasses e recebesses as tuas amigas...

A jovem esposa que declara ao esposo que se aborrece muito de ficar só seis e oito dias enquanto ele a esquece, divertindo-se a caçar pacas e veados, evidentemente deixa ouvir séria prevenção, que apenas dissimula dilúvios de ameaças nestas duas não ditas, mas adivinhadas, palavras: - veja lá!

E o marido que, teimando em suas ausências por paixão de caçador, ou por alguma outra semelhante, responde à prevenção da esposa, dizendo-lhe: - visita as amigas e recebe suas visitas, isto é, faze por distrair-te, enquanto estou longe me distraindo, não diz, mas quase que está dizendo: - fecho os olhos pela confiança.

Mas a confiança de Frederico tinha o defeito de afigurar-se lisonjeiro pretexto para a continuação das suas caçadas, que deixavam a jovem, sensível, vaidosa, rica e ociosa esposa sem cultos de amor.

Júlia aceitou o conselho do marido, e na ausência dele procurou e recebeu a sociedade de suas amigas.

E um dia... o acaso...

Nestas histórias sempre aparece belo e tentador o demônio com o nome ou com a alcunha de acaso.

Um dia Júlia, indo ver uma de suas amigas, por acaso achou-a cercada de escolhida e elegante companhia, e por acaso também fazia parte da companhia um mancebo fatalmente chamado Artur.

Nestas histórias, também é de regra que apareça sempre um Artur, cujo nome, Artur, é outra já cansada alcunha romanesco-sedutora que o diabo costuma tomar.

Artur aos trinta anos de idade estava no maior viço da beleza varonil, era de alta estatura, muito bem-feito, e vestia-se com o melhor gosto.

Ou seduzido pela beleza de Júlia, ou simulando-se nessa lisonjeadora situação, Artur imediatamente enamorou-se da jovem esposa do caçador ausente, ou antes namorou-a, e fez-lhe a mais doce corte, zelando todavia respeitosa circunspeção, que ainda mais o recomendou.

Júlia mostrou-se tão sábia quanto pode sê-lo uma jovem desvanecida de seus encantos; não animou de modo algum a corte que lhe era feita, mas fingia não percebê-la para não ser obrigada a repulsá-la.

De volta a sua casa, e ao destoucar-se diante do espelho Júlia lembrou-se de Artur; no dia seguinte porém deixou de lembrá-lo, recebendo Frederico depois de oito dias de ausência.

Correu feliz um mês para a amorosa esposa, que aliás de todo indiferente viu por vezes Artur a admirá-la no teatro, no baile, ou em encontros casuais.

Mas passado o ditoso mês, Frederico partiu para a caça; Júlia foi distrair-se da solidão, visitando as amigas...

E Artur no caso!...

Resuma-se a história.

No fim de um ano tanto caçara pacas e veados o marido Nemrod e tanto se estremara sorrateiramente o hábil e artificioso Artur, que Júlia, jovem, sensível, vaidosa e sonhadora de ilusões na ociosidade apenas se mantinha recatada pela sua nobre virtude.

Mas no íntimo do coração a esposa do caçador incorrigível sentia-se docemente agradecida às finezas e ao amor do belo Artur.

Se Júlia não escondesse e abafasse tão cuidadosa essa espécie de gratidão, seria tal sentimento um começo pelo menos de amor platônico.

E o amor platônico é ainda outra alcunha que o diabo toma, quando quer empurrar para o abismo alguma triste vítima.

Infelizmente a tal espécie de gratidão por mais que se dissimule, sempre se atraiçoa, é uma espécie de violeta, cujo perfume a denuncia.

Eu não sei, nem talvez Júlia soube, como Artur descobriu o segredo daquele sentimento, mas descobri-lo e apertar o cerco da fortaleza foi o que ativamente fez o já esperançado conquistador.

Esforço baldado! Frederico caçava, mas o baluarte não se rendia.

Artur ousou escrever a Júlia; esta, porém, negou-se a receber a carta; em oportunos ensejos de reuniões em que se encontraram, Artur tentou por vezes levar, atrair, arrastar Júlia à conveniente conversação que lhe facilitasse já desnecessárias, mas insidiosas, declarações de seu amor, e a jovem senhora casada sempre achou ótimos pretextos para cortar-lhe a palavra, ou distanciando-se do tentador, ou falando-lhe do sol e da chuva.

Mas Júlia não pensava que assim cumpria apenas metade do seu dever, e que continuando por vaidade e por aquela espécie de gratidão a tolerar nas sociedades a aproximação, a palavra e a corte embora decente do mancebo que evidentemente se mostrava seu apaixonado, quase que o autorizava a apertar o cerco da fortaleza.

Porque em matéria de cumprimento de dever - ou tudo ou nada. - o dever não tem metades, é, ou não é, cumpre-se todo e à risca, ou incompleto deixa de ser cumprido.

E conseqüência lógica daquela aberração do dever, cujo cumprimento ficará em metade e, portanto, moralmente nulo, eu ainda não sei como foi e creio e devo crer que Júlia também não o soube, deu-se o caso do singular desfecho deste romance.

Artur queria a todo transe um momento, alguns minutos, uma hora em que a sós com Júlia pudesse ajoelhar-se a seus pés e beijar-lhe, uma vez ao menos, as mãos pequeninas e lindíssimas.

Perdera tempo e eloqüência, tentando dirigir-se diretamente à jovem senhora.

Mudou de plano, e apelou para ataque de surpresa.

Eu digo de surpresa, porque seria capaz de jurar que Júlia foi estranha ao trama condenável e comprometedor de sua virtude.

Artur informou-se de quem era a modista de Júlia na Rua do Ouvidor, e de bolsa aberta e convencendo a modista de conivência que não havia, preparou cilada perversa e infernal.

A modista mandou anunciar a Júlia que acabava de receber de Paris delirantes toilettes de fantasia, e que a esperava no dia seguinte para dar-lhe a primazia na escolha dos mais eclipsadores.

É claro e evidente que então andava Frederico, o Nemrod, ausente em caçada.

Júlia não faltou, era impossível que faltasse ao emprazamento da sua modista, e esta notou ou fingiu notar que a jovem senhora entrava comovida e hesitante em sua loja..

Sem dúvida, nessa observação andou malícia da francesa que, de antemão, quereria preparar desculpas. Eu não creio que Júlia tivesse entrado na loja nem comovida, nem hesitante.

A bonita e vaidosa senhora examinou e escolheu três ou quatro toilettes e a convite da modista subiu ao pavimento superior para experimentá-los em sala apropriada.

E poucos momentos depois de entrada na sala, a modista saiu, pretextando ir buscar alfinetes que não achava no toucador.

Apenas a modista passou além da porta, rompeu de gabinete contíguo o belo e audacioso Artur, que se prostrou de joelhos aos pés de Júlia e quis tomar-lhe as mãos para beijá-las.

Coincidência notável!... No momento em que Artur caía assim ajoelhado aos pés de Júlia, Frederico disparava tiro certeiro sobre uma veadinha que expirou ferida no coração.

Mas Júlia surpreendida, assustada e nervosa, como era, desmaiou, caindo em uma otomana.

Entenda-se: desmaiou realmente.

Artur, que estava de joelhos e ia improvisar eloqüente discurso que trazia de cor, levantou-se atônito, vendo Júlia desmaiada.

Que havia de fazer? ir chamar a modista ou gritar por ela era comprometedor à reputação da inocente senhora.

Artur lançou-se para a mesa do toucador, tomou lindo frasquinho de caprichosa forma, que, pelo lugar onde estava, deveria conter água-de-colônia ou alguma essência aromática, abriu o frasquinho e precipite levou-o ao nariz da jovem desmaiada; como porém lhe tremessem as mãos, derramou parte do liquido no formoso rosto.

Ah!... o liquido que o vidro continha era tinta de escrever!...

A modista que certamente procurava alfinetes muito ao perto acudiu logo, e Artur sem mais demora nem ansioso cuidado partiu em retirada tão discreta, que as costureiras da loja que não o tinham visto entrar não o viram sair.

Mas ainda bem que, sedutor perverso e ainda infeliz em seu último plano insidioso e malvado, nem ao menos conseguira beijar as brancas, pequeninas e acetinadas mãos de Júlia.

A bela jovem desmaiada não tardou muito em tornar a si, soltando magoado suspiro; logo depois volveu em torno os olhos, e, não vendo Artur, endireitou-se na otomana, encarou de face a modista, e, quando pôde falar, murmurou ressentida:

— Que traição!...

A modista imodesta, cruel, e ajeitando inverossímil defesa, respondeu docemente:

— Pardon, madame!... eu foi enganada por confiança de rendez-vous ajustade...

Júlia levantou-se indignada ao novo ultraje daquela suspeita injuriosa à sua virtude, e adiantou-se dois passos, evidentemente para retirar-se.

— Madame, não pode sair assim, disse a modista.

E Júlia, obrigada a estacar diante do espelho, viu nódoas de tinta preta em seu rosto, e ainda no corpinho de seu vestido branco.

Com efeito era impossível descer à loja e subir à sua carruagem, e mostrar-se ao público assim, como dissera a modista.

Finíssima esponja, odorífero sabonete e água límpida restituíram ao rosto de Júlia sua brancura imaculada, mas o corpinho do vestido a que tinha chegado a tinta de escrever?... era indispensável pelo menos uma e longa hora para regenerá-lo lavado, secado e engomado.

Júlia, ardendo por fugir da casa traiçoeira, sujeitou-se a extremo recurso, trocou seu rico vestido branco por uma das toilettes de fantasias que escolhera.

Mas quando ela atravessou a loja e foi tomar à porta o carro que a esperava, a mais maliciosa das costureiras ao vê-la já de costas e distanciada disse às companheiras:

— Que história foi essa?... ela entrou vestida à vestal e agora sai fantasiada?

Moralidade do romance: às senhoras honestas não basta sê-lo, é indispensável não parecer que deixam de sê-lo.

Júlia trocou a sua espécie de gratidão ao namorador Artur por desprezo profundo.

E depois do seu desmaio na casa da modista corrompida tomou gosto por caçadas de pacas e veados, aprendeu a atirar de espingarda, venceu nervosos estremecimentos de medo, tornou-se mestra na certeza e na prontidão do tiro, e com indizível e delirante paixão do seu Frederico fez-se Diana caçadora e sócia constante do seu marido Nemrod.