Memórias de um Sargento de Milícias/II
Passemos por alto sobre os anos que decorreram desde o nascimento e batizado do nosso memorando, e vamos encontrá-lo já na idade de sete anos. Digamos unicamente que durante todo este tempo o menino não desmentiu aquilo que anunciara desde que nasceu: atormentava a vizinhança com um choro sempre em oitava alta; era colérico; tinha ojeriza particular à madrinha, a quem não podia encarar, e era estranhão até não poder mais.
Logo que pôde andar e falar tornou-se um flagelo; quebrava e rasgava tudo que lhe vinha à mão. Tinha uma paixão decidida pelo chapéu armado do Leonardo; se este o deixava por esquecimento em algum lugar ao seu alcance, tomava-o imediatamente, esganava com ele todos os móveis, punha-lhe dentro tudo que encontrava, esfregava-o em uma parede, e acabava por varrer com ele a casa; até que a Maria, exasperada pelo que aquilo lhe havia de custar aos ouvidos, e talvez às costas, arrancava-lhe das mãos a vítima infeliz. Era, além de traquinas, guloso; quando não traquinava, comia. A Maria não lhe perdoava; trazia-lhe bem maltratada uma região do corpo; porém ele não se emendava, que era também teimoso, e as travessuras recomeçavam mal acabava a dor das palmadas.
Assim chegou aos sete anos.
Afinal de contas a Maria sempre era saloia, e o Leonardo começava a arrepender-se seriamente de tudo que tinha feito por ela e com ela. E tinha razão, porque, digamos depressa e sem mais cerimônias, havia ele desde certo tempo concebido fundadas suspeitas de que era atraiçoado. Havia alguns meses atrás tinha notado que um certo sargento passava-lhe muitas vezes pela porta, e enfiava olhares curiosos através das rótulas: uma ocasião, recolhendo-se, parecera-lhe que o vira encostado à janela. Isto porém passou sem mais novidade.
Depois começou a estranhar que um certo colega seu o procurasse em casa, para tratar de negócios do oficio, sempre em horas desencontradas: porém isto também passou em breve. Finalmente aconteceu-lhe por três ou quatro vezes esbarrar-se junto de casa com o capitão do navio em que tinha vindo de Lisboa, e isto causou-lhe sérios cuidados. Um dia de manhã entrou sem ser esperado pela porta adentro; alguém que estava na sala abriu precipitadamente a janela, saltou por ela para a rua, e desapareceu.
À vista disto nada havia a duvidar: o pobre homem perdeu, como se costuma dizer, as estribeiras; ficou cego de ciúme. Largou apressado sobre um banco uns autos que trazia embaixo do braço, e endireitou para a Maria com os punhos cerrados.
— Grandessíssima!...
E a injúria que ia soltar era tão grande que o engasgou... e pôs-se a tremer com todo o corpo.
A Maria recuou dois passos e pôs-se em guarda, pois também não era das que se receava com qualquer coisa.
— Tira-te lá, ó Leonardo!
— Não chames mais pelo meu nome, não chames... que tranco-te essa boca a socos...
— Safe-se daí! Quem lhe mandou pôr-se aos namoricos comigo a bordo?
Isto exasperou o Leonardo; a lembrança do amor aumentou-lhe a dor da traição, e o ciúme e a raiva de que se achava possuído transbordaram em socos sobre a Maria, que depois de uma tentativa inútil de resistência desatou a correr, a chorar e a gritar:
— Ai... ai... acuda, Sr. compadre... Sr. compadre!...
Porém o compadre ensaboava nesse momento a cara de um freguês, e não podia largá-lo. Portanto a Maria pagou caro e por junto todas as contas. Encolheu-se a choramingar em um canto.
O menino assistira a toda essa cena com imperturbável sangue-frio: enquanto a Maria apanhava e o Leonardo esbravejava, aquele ocupava-se tranqüilamente em rasgar as folhas dos autos que este tinha largado ao entrar, e em fazer delas uma grande coleção de cartuchos.
Quando, esmorecida a raiva, o Leonardo pôde ver alguma coisa mais do que seu ciúme, reparou então na obra meritória em que se ocupava o pequeno. Enfurece-se de novo: suspendeu o menino pelas orelhas, fê-lo dar no ar uma meia volta, ergue o pé direito, assenta-lhe em cheio sobre os glúteos atirando-o sentado a quatro braças de distância.
— És filho de uma pisadela e de um beliscão; mereces que um pontapé te acabe a casta.
O menino suportou tudo com coragem de mártir, apenas abriu ligeiramente a boca quando foi levantado pelas orelhas: mal caiu, ergueu-se, embarafustou pela porta fora, e em três pulos estava dentro da loja do padrinho, e atracando-se-lhe às pernas. O padrinho erguia nesse momento por cima da cabeça do freguês a bacia de barbear que lhe tirara dos queixos: com o choque que sofreu a bacia inclinou-se, e o freguês recebeu um batismo de água de sabão.
— Ora, mestre, esta não está má!...
— Senhor, balbuciou este... a culpa é deste endiabrado... O que é que tens, menino?
O pequeno nada disse; dirigiu apenas os olhos espantados para defronte, apontando com a mão trêmula nessa direção.
O compadre olhou também, aplicou a atenção, e ouviu então os soluços da Maria.
— Ham! resmungou; já sei o que há de ser... eu bem dizia... ora ai está!...
E desculpando-se com o freguês saiu da loja e foi acudir ao que se passava.
Por estas palavras vê-se que ele suspeitara alguma coisa; e saiba o leitor que suspeitara a verdade.
Espiar a vida alheia, inquirir dos escravos o que se passava no interior das casas, era naquele tempo coisa tão comum e enraizada nos costumes, que ainda hoje, depois de passados tantos anos, restam grandes vestígios desse belo hábito ². Sentado pois no fundo da loja, afiando por disfarce os instrumentos do ofício, o compadre presenciara os passeios do sargento por perto da rótula de Leonardo, as visitas extemporâneas do colega deste, e finalmente os intentos do capitão do navio. Por isso contava ele mais dia menos dia com o que acabava de suceder.
Chegando ao outro lado da rua empurrou a rótula que o menino ao sair deixara cerrada, e entrou. Dirigiu-se ao Leonardo, que se conservava ainda em posição hostil.
— Ó compadre, disse, você perdeu o juízo?...
— Não foi o juízo, disse o Leonardo em tom dramático, foi a honra!...
A Maria, vendo-se protegida pela presença do compadre, cobrou animo, e altanando-se disse em tom de zombaria:
— Honra!... honra de meirinho... ora!
O vulcão de despeito que as lágrimas da Maria tinham apagado um pouco, borbotou de novo com este insulto, que não ofendia só um homem, porém uma classe inteira! Injurias e murros à mistura caíram de novo sobre a Maria das mãos e da boca de Leonardo. O compadre, que se interpusera, levou alguns por descuido; afastou-se pois a distância conveniente, murmurando despeitado por ver frustrados seus esforços de conciliador:
— Honra de meirinho é como fidelidade de saloia.
Enfim serenou a tormenta: a Maria sentou-se a um canto a chorar e a maldizer a hora em que nascera, o dia em que pela primeira vez vira o Leonardo, a pisadela, o beliscão com que tinha começado o namoro a bordo, e tudo mais que a dor dos murros lhe trazia à cabeça.
O Leonardo, depois de um pouco de calma, teve um momento de exasperação; avermelharam-se-lhe os olhos e as faces, cerrou os dentes, meteu as mãos nos bolsos do calção, inchou as bochechas e pôs-se a balançar violentamente a perna direita. Depois, como tomando uma resolução extrema, juntou as folhas dispersas dos autos que o menino despedaçara, enterrou atravessado na cabeça o chapéu armado, agarrou na bengala, e saiu batendo com a rótula e exclamando:
— Vá-se tudo com os diabos!...
— Vai.. vai... exclamou a Maria já de novo em segurança, pondo as mãos nas cadeiras, que o caso não há de ficar assim... pôr-me as mãos!... ora.., vou com isto à justiça!...
— Comadre...
— Nada, não atendo, compadre... vou com isto à justiça, e apesar de ser ele um meirinhaço muito velhaco, há de se haver comigo.
— É melhor não se meter nisto, comadre... sempre são negócios com a justiça... o compadre é seu oficial, e ela há de punir pelos seus.
As ameaças da Maria não passavam de bravatas que lhe arrancava o despeito, e portanto com mais quatro razões do compadre cedeu, e foi restituída a paz em casa. Houve então larga conferência entre os dois, no fim da qual o compadre saiu dizendo:
— Ele há de voltar... aquilo é gênio... há de passar... e se não... o dito está dito; fico com o pequeno.
A Maria mostrou-se satisfeita. Tinha ela suas resoluções tomadas, ou anteriormente ou naquela ocasião, e por isso na conferência que referimos tratara de engordar o compadre e arrancar-lhe a promessa de que no caso de algum desarranjo tomaria a si e cuidaria do filho. Esse desarranjo ela figurara e o compadre acreditara que só partiria de Leonardo; porem o leitor vai ver que o pobre homem era condescendente, e que a Maria tinha razão quando falara ironicamente em honra de meirinho.
Toda esta cena que acabamos de descrever passou-se de manhã. À tardinha o Leonardo entrou pela loja do compadre, aflito e triste. O pequeno estremeceu no banco em que se achava sentado, lembrando-se do passeio aéreo que o pontapé de seu pai lhe fizera dar de manhã. O compadre adiantou-se e disse-lhe com um sorriso conciliador:
— O passado passado; vamos... ela está arrependida... doidices de rapariga... mas não há de fazer outra...
O Leonardo não respondeu; pôs-se a passear pela loja com as mãos cruzadas para trás e por baixo das abas da casaca; porém pelo seu semblante via-se que ele estimara as palavras do compadre, e que seria o primeiro a pronunciá-las se ele não o precedesse.
— Vamos até lá, disse o compadre, e acabe-se tudo! Coitada!... ela ficou muito chorosa.
— Vamos, disse o Leonardo...
Chegando à porta de casa fez uma pequena parada como quem tinha tomado a resolução de não entrar; mas o que ele queria eram algumas súplicas do compadre, que pudessem ser ouvidas pela Maria; a fim de fazê-la acreditar que se ele voltava era arrastado, e não por sua vontade. O compadre percebeu isto, e satisfez o pensamento de Leonardo dizendo:
— Entre, homem... basta de criançadas... o passado passado.
Entraram. A sala estava vazia; o Leonardo sentou-se junto de uma mesa, descansou o rosto numa das mãos, conservando sempre o chapéu armado atravessado na cabeça, o que lhe dava um aspecto entre cômico e melancólico.
— Comadre, disse em voz alta o agente da conciliação, tudo está acabado; venha cá...
Ninguém respondeu.
— Há de estar aí a chorar metida em algum canto, tornou o compadre.
E começou a procurar por toda a casa.
Não era esta mui grande; em pouco percorreu-a toda, e ficou tomado do mais cruel desapontamento por não encontrar a Maria. Voltou portanto à sala entre consternado e espantado.
O Leonardo, supondo que ele tinha achado a Maria, e que sem dúvida a trazia pela mão contrita e humilhada, quis fazer-se de bom 3: ergueu-se, meteu as mãos nos bolsos, e pôs-se de costas para o lugar donde vinha o compadre.
— Ó compadre, disse este aproximando-se...
— Nada, atalhou o Leonardo sem voltar-se... o dito por não dito...mudei de resolução!...
— Olhe, homem...
— Nada, nada... está tudo acabado...
O Leonardo, dizendo isto, ia dando sempre as costas ao compadre, quando se lhe queria pôr de frente.
— Homem... escute... olhe que a comadre...
— Não quero saber dela... está tudo acabado; e já disse...
— Foi-se embora... homem... foi-se embora, gritou o compadre impacientado.
O Leonardo foi fulminado por estas palavras; voltou-se então todo trêmulo. Não vendo a Maria desatou a chorar.
— Pois bem, disse entre soluços, está tudo acabado... adeus compadre!
— Mas olhe que o pequeno... atalhou este.
O Leonardo nada respondeu, e saiu precipitadamente.
O compadre compreendeu tudo: viu que o Leonardo abandonava o filho, uma vez que a mãe o tinha abandonado, e fez um gesto como quem queria dizer:-Está bom, já agora... vá; ficaremos com uma carga às costas.
Ao outro dia sabia-se por toda a vizinhança que a moça do Leonardo tinha fugido para Portugal com o capitão de um navio que partira na véspera de noite.
— Ah! disse o compadre com um sorriso maligno, ao saber da noticia, foram saudades da terra!...