Memórias de um Sargento de Milícias/XLIII

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Não sabemos se valeu ao Leonardo ser aquela a primeira ocasião em que incorria em castigo, tendo até então guardado a mais rigorosa observância de todos os seus deveres, ou se a mesma audácia do fato lhe granjeara mais as simpatias do major; o caso foi que além das risadas, dos remoques dos camaradas e dos transes da meia hora que estivera amortalhado, nada mais lhe sucedeu, com espanto de todos, e principalmente dele mesmo: o major dera daquele modo uma grande prova de desusada benevolência. Andou pois o Leonardo por alguns dias cabisbaixo e pensativo, como esmagado ao peso de grandes remorsos; os camaradas tiravam daquilo um partido imenso para meterem-no à bulha, e não o deixavam parar um só instante sossegado na companhia.

— Ele ainda não está bem ressuscitado, dizia um passando-lhe por perto.

— Qual! dizia outro, ele já não é deste mundo.

— Papai lelê, seculorum, entoavam outros em coro.

A nenhuma destas coisas dava ele a menor resposta, e tinha nisso bom aviso, porque desse modo poupava aos desapiedados camaradas tema para novos remoques. Passados aqueles transes tudo foi esquecido, e as coisas entraram de novo em seus eixos ordinários.

Um dia o major anunciou que tinha uma grande e importante diligência a fazer.

Havia um endiabrado patusco que era o tipo perfeito dos capadócios daquele tempo, sobre quem há muitos meses andava o major de olhos abertos, sem que entretanto tivesse achado ocasião de pilhá-lo: sujeitinho cuja ocupação era uma indecifrável adivinhação para muita gente, sempre andava entretanto mais ou menos apatacado: tudo quanto ele possuía de maior valor era um capote em que andava constantemente embuçado, e uma viola que jamais deixava. Gozava reputação de homem muito divertido, e não havia festa de qualquer gênero para a qual não fosse convidado. Em satisfazer a esses convites gastava todo o seu tempo. Ordinariamente amanhecia numa súcia que começara na véspera, uns anos, por exemplo; ao sair daí ia para um jantar de batizado; à noite tinha uma ceia de casamento. A fama que tinha de homem divertido, e que lhe proporcionava tão belos meios de passar o tempo, devia-a a certas habilidades, e principalmente a uma na qual não tinha rival. Tocava viola e cantava muito bem modinhas, dançava o fado com grande perfeição, falava língua de negro, e nela cantava admiravelmente, fingia-se aleijado de qualquer parte do corpo com muita naturalidade, arremedava perfeitamente a fala dos meninos da roça, sabia milhares de adivinhações, e finalmente,-eis aqui o seu mais raro talento,-sabia com rara perfeição fazer uma variedade infinita de caretas que ninguém era capaz de imitar. Era por conseqüência as delícias das espirituosas sociedades em que se achava. Quem dava uma súcia em sua casa, e queria ter grande roda e boa companhia, bastava somente anunciar aos convidados que o Teotônio (era este o seu nome) se acharia presente.

Agora quanto à sua ocupação ou meio de vida, que para muitos era, como dissemos, impenetrável segredo, o major Vidigal tanto fez que a descobriu: em dias designados da semana reunia-se no sótão onde ele morava certo número de pessoas que levavam até alta noite aí metidas: Teotônio era o banqueiro de uma roda de jogo.

Nesta conformidade andava o major a querer pilhá-lo em flagrante; e como tentava isso desde muito sem que o pudesse conseguir, por ser sempre iludida a sua vigilância pela troca constante que faziam os da roda dos seus dias de reunião, resolveu pôr a mão no Teotônio na primeira ocasião, e servir-se depois dele para a captura dos outros companheiros.

Como os leitores estarão lembrados, o Leonardo-velho, isto é, o Leonardo-Pataca, vivia com a filha da comadre; dela tinha um descendente, a cujo nascimento nós os fizemos assistir. Pois apesar de haver já passado algum tempo, a criança ainda não estava batizada. O Leonardo-Pataca, a instâncias da comadre, que muito se afligia com aquela demora, determinou finalmente o dia que ela se devia fazer cristã. Segundo os hábitos imutáveis, havia súcia por essa ocasião; e, segundo a moda, foi o Teotônio convidado. O major soubera de tudo, e era exatamente aí que o esperava, e tinha determinado pilhá-lo. Para isso dera aos seus soldados o aviso de que acima falamos.

Era má sina do major ter sempre de andar desmanchando prazeres alheios; e infelicidade para nós que escrevemos estas linhas estar caindo na monotonia de repetir quase sempre as mesmas cenas com ligeiras variantes: a fidelidade porém com que acompanhamos a época, da qual pretendemos esboçar uma parte dos costumes, a isso nos obriga.

A hora ajustada chegou o major à casa do Leonardo-Pataca; como não havia o menor motivo para violências, porque tudo corria na mais perfeita paz, o major entrou sozinho, com prévia permissão do Leonardo-Pataca, e assistiu ao divertimento. Quando ele chegou estava exatamente Teotônio em cena com as suas habilidades. Tendo esgotado já todas elas, ia recorrer à última, que era a das caretas. É preciso notar que ele não sabia só fazer caretas a capricho, sabia-as também fazer imitando, pouco mais ou menos, esta ou aquela cara conhecida: era isso o que fazia morrer de riso aos circunstantes.

Estavam todos sentados, e o Teotônio em pé no meio da sala olhava para um, e apresentava uma cara de velho, virava-se repentinamente para outro, e apresentava uma cara de tolo a rir-se asnaticamente; e assim por muito tempo mostrando de cada vez um tipo novo. Finalmente, tendo já esgotado toda a sua arte, correu a um canto, colocou-se numa posição que pudesse ser visto por todos ao mesmo tempo, e apresentou a sua última careta. Todos desataram a rir estrondosamente apontando para o major.

Acabava de imitar com muita semelhança a cara comprida e chupada do Vidigal.

O major mordeu os beiços percebendo a caçoada do Teotônio; e se já tinha boas intenções a seu respeito, ainda as formou melhor naquela ocasião.

As risadas continuaram por muito tempo; e ele, não podendo afrontá-las impassível, e não havendo, como já fizemos sentir, motivo justo para um rompimento, achou mais conveniente retirar-se, e pondo-se em posição conveniente, esperar que a súcia se debandasse, para então convidar o Teotônio a ir fazer algumas caretas aos granadeiros na casa da guarda.

Saiu pois completamente corrido.

Encontrando os seus granadeiros que tinham ficado a pouca distância, dirigiu-se ao Leonardo, e fez-lhe sentir que querendo a todo o custo naquela noite segurar o Teotônio, temia que os de casa desconfiassem disso e lhe dessem escapula por qualquer meio; era-lhe pois mister uma pessoa que o fosse vigiar de perto sem que despertasse suspeitas: essa pessoa devia ser o Leonardo.

— Sou malvisto em casa de meu pai, replicou este à proposta do major.

— É hoje um bom dia de conciliação...

— Talvez não queiram receber-me...

— E sua madrinha que lá se acha?...

— Mas a filha que é uma víbora contra mim?...

— Víbora ou não, há de ir; que quando manda a disciplina... Não quero que aquele valdevinos ande tomando impunemente a minha cara para original de caretas.

Os granadeiros, que conheciam o Teotônio e lhe sabiam da habilidade, compreenderam logo o que tinha sucedido por aquele dito do major, e desataram por seu turno a rir. O Leonardo, por aquele apelo à disciplina, com a qual não se achava em muito bom pé de relações desde a noite do papai lelê, venceu todas as dificuldades e repugnância que manifestara no desempenho da missão de que o encarregara o major, e pôs-se a caminho para a casa de seu pai.

Chegou e bateu: assim que de dentro lhe perceberam as cores da farda e barretina houve um grito de medo, e por um movimento que parecia combinado (o major tinha razão!) foram repentinamente apagadas todas as velas da sala, e começou a reinar uma confusão tal, que parecia haver-se travado uma luta entre todos.

O Leonardo viu nisso uma primeira contrariedade, porém não deixou de achar graça no susto que causara. Resolveu então falar da parte de fora para tranqüilizar aos medrosos.

— Bom modo de ser recebido um filho em casa de seu pai! Para quarta-feira de trevas só lhe faltam as matracas...

A comadre, que ouvira e reconhecera a voz do afilhado, desatou a rir, exclamando:

— Vejam que logro! é o Leonardo; tragam as velas, gente: não há novidade, que o cabo da guarda é nosso compadre.

— Aquele brejeiro, resmoneou o Leonardo-velho, sempre há de andar a fazer das suas: vejam que susto causou a toda essa gente... Ó amigo Teotônio, desça, que não há novidade...

À luz da primeira vela que traziam viu-se descer por uma porta o Teotônio do forro do quarto da sala onde se havia escondido.

Apenas pôs o pé em terra fez logo uma careta de medo, por tal forma expressiva, que houve em todos uma tremenda explosão de hilaridade. Começou a surdir gente de diversos cantos da casa, e em presença do Leonardo recomeçou a folia.

Algumas pessoas não deixaram de estranhar e recear a presença do Leonardo naquela ocasião e naqueles trajes logo depois da saída do major; porém a comadre a todos tranqüilizou, dizendo que tendo ele obtido licença no quartel, por não estar de serviço naquele dia, viera assistir ao batizado de sua irmã.

— Ele é meio doido, repetia ela a todos, mas é muito amoroso, e nunca se esquece da família,

Leonardo confirmava esses protestos da comadre, e ia entretanto tomando parte na brincadeira, uma vez que contra as suas esperanças todos o haviam recebido bem em casa. À proporção que se ia esquentando no prazer do fado e das cantigas começou o Leonardo a sentir remorsos pelo papel de judas que ali estava representando: quando olhava para o Teotônio, que desde que entrara lhe havia feito dar tão boas risadas, pungia-lhe o coração lembrando-se que ele próprio o havia de entregar ao major. Não poucas vezes lhe passou pela cabeça dar-lhe escapula avisando-o, porém a disciplina, o papai lelê, vinham-lhe à idéia, e hesitava.

Enquanto era assaltado por estes pensamentos olhava repetidas vezes para o Teotônio.

Este, que nada tinha de tolo, desconfiou da coisa; não sabemos por que instinto leu o que pensava o Leonardo, e pôs-se em guarda.

O Leonardo tomou repentinamente sua resolução.

— Ora, adeus, disciplina, disse consigo; hei de dar escapula ao homem, seja lá como for.

E do lugar em que estava acrescentou alto:

— Ah! Sr. Teotônio, quer saber uma coisa? Pois se puser o pé daquela porta para fora, o major põe-lhe a unha, que para isso está ele à sua espera, e para aqui me mandou...

— Ó diabo! exclamaram todos.

— Mas nada de sustos; tudo se há de arranjar, que tenho eu boa vontade disto.

— Mas não te comprometas, rapaz, acrescentou a comadre ao ouvido do Leonardo; olha que o major não é de graças, e daí te pode vir mal.

— Ora, tenho pena dele só por aquelas caretas.

Juntaram-se então os dois, Leonardo e Teotônio, e juntos concertaram o seu plano de modo que este escapasse ao major, e que aquele não ficasse comprometido.

Estava já a noite muito adiantada, ordenaram os dois que saíssem ao mesmo tempo muitos convidados, e o Leonardo, partindo adiante deles, foi correndo ter com o major.

— Aí vem o bicho, Sr. major.

— Cerca, cerca! disse o major.

E cada um se dividiu para seu lado.

O major colou-se à porta de um corredor, e pôs-se de olho alerta.

Veio-se aproximando ao major um vulto assobiando tranqüilamente o estribilho de uma modinha. Quando se achou em pequena distancia o major deu um salto donde estava e segurou-o.

Um ai franzino se fez ouvir, acompanhado de um:

— Me largue! Que é isto?

O major prestou atenção, não tendo reconhecido a voz do Teotônio, e viu que tinha segurado um pobre corcunda, aleijado, ainda em cima, da perna direita e do braço esquerdo.

— Ora vá-se para o inferno, disse o major; suma-se daqui. Também não sei o que andam fazendo a estas horas pelas ruas estas figuras.

O aleijado safou-se apressadamente livre do susto, e lá foi continuando a assobiar o seu estribilho.

Fez-se depois disto o mais profundo silêncio, e o major não viu mais passar senão os convidados da patuscada, não vendo entre eles o Teotônio.

Então ardeu com o caso; e reunindo os granadeiros disse para Leonardo:

— Ele não saiu...

— Saiu, replicou este; até de jaqueta branca e chapéu de palha: eu o vi tomar ali para a porta onde estava o Sr. major.

— De jaqueta branca e chapéu de palha? perguntou o major.

— Sim, senhor, e de calça preta: não o peguei porque logo vi que não havia de escapar ao Sr. major.

— Ah! patife, patife, resmungou: destas nunca levei... Era o corcunda, o aleijado...

— Ele sabe fazer muito bem de corcunda e de aleijado, disse um dos granadeiros; já o vi uma vez fazer isso, que era mesmo tal e qual...

Era com efeito o Teotônio o aleijado que o major tinha segurado.

O Leonardo ria-se às furtadelas do logro que levara o major.

Não tardou porém muito tempo que lhe não amargasse aquele prazer, vindo o major a saber que tudo aquilo se fizera de combinação comele.