Memórias de um Sargento de Milícias/XXXIV
As três velhas conversaram por largo tempo, não porque muitas coisas se tivessem a dizer a respeito do que se acabava de passar, porém porque a comadre, remontando ao mais remoto passado, entendera que para dizer que muito se interessava pela volta do afilhado para casa era mister contar desde sua origem a vida inteira deste, de sua mãe, de seu pai, e a sua própria, que fora mais comprida de todas, e porque as duas velhas entenderam que para dizerem que o Leonardo estava ali muito bem, e que não consentiriam que ele saísse, entenderam ser preciso fazer o que havia feito a comadre-contar a sua vida e de toda a família desde as eras primitivas.-Ora, como todas essas histórias contadas de parte a parte eram cheias de episódios, já sentimentais, já tocantes, já alegres, aconteceu que entre muita gargalhada correram também algumas lágrimas durante a conversação. Não há nada que mais sirva para fazer nascer e firmar a amizade, e mesmo a intimidade, do que seja o riso e as lágrimas: aqueles que se riram, e principalmente aqueles que uma vez choraram juntos, têm muita facilidade em fazerem-se amigos. Com efeito, no fim da conversa, as três velhas estimavam-se mutuamente de uma maneira incrível.
Se esta facilidade de expansão não fosse acompanhada da grande dificuldade de rompimentos e de intrigas, seria uma das grandes virtudes daquele tempo. Porém as simpatias que se criavam em uma hora de conversa transformavam-se em ódio num minuto de desavença.
Enquanto as velhas conversavam, os contendores acalmaram-se, passou a tormenta, e se tudo não ficou logo acabado, ficou pelo menos esquecido por algum tempo. Leonardo achava-se já disposto a atender às súplicas de Vidinha e das outras moças que o não queriam por modo algum fora de casa: os dois rivais derrotados pareciam resignar-se.
Quando terminou a conferência das três, a comadre entendeu que era chegado o momento de começar a pregação ao Leonardo, e começou nestes termos:
— Rapaz dos trezentos demos, valham-te os serafins... tu tens nessa cabeça pedras em vez de miolos; o sol não cobre criatura mais renegada do que tu. És um viramundo; andas feito um valdevinos sem eira nem beira nem ramo de figueira, sem ofício nem benefício, sendo pesado a todos nesta vida...
— Se é cá conosco que fala, acudiu uma das velhas, deixe-o estar aonde está que está muito bem.
— Qual! senhora, pois se vem levantar poeira na casa alheia! é um galo de brigas.
— Ora, isso é lá coisa entre rapazes e raparigas; deixá-los que eles se arranjarão, redargüiu a velha.
Ingenuidade infantil das velhas daquele tempo!
A comadre ia prosseguir; porém sendo a cada passo interrompida, tomou por seu barato dar a coisa por finda. Retirou-se, ficando convencionado que Leonardo permaneceria onde estava.
Vidinha ficou contentíssima com semelhante resultado; os primos porém fizeram má cara, porque tal não esperavam. Desde que viram que tudo ia continuar no mesmo pé, renasceu-lhes o despeito. Atiraram algumas indiretas, com as quais ia tudo pegando fogo novamente; porém contiveram-se ainda; um deles chamou o outro em particular, e começaram por seu turno a conferenciar, porém em segredo. Não havia nada mais natural: o inimigo era comum, juntavam-se para atacá-lo; depois que ele fosse derrotado, a questão se decidiria então entre os dois.
Depois desta última conferência serenou tudo definitivamente; cada qual recolheu-se a seu posto, e passaram-se muitos dias em santa paz. Durante esses dias mais se estreitaram os laços entre o Leonardo e Vidinha. É sempre assim que sucede: quereis que nos liguemos estreitamente a uma coisa? Fazei-nos sofrer por ela. Os dois tinham sofrido um pelo outro, e era isto uma forte razão para se amarem cada vez mais.
A comadre vinha regularmente ver o afilhado e visitar suas novas amigas.
Tudo parecia enfim nos seus eixos naturais; porém os dois primos tramavam, e tramavam largamente. Ninguém entretanto atinava com o que seria.
Leonardo passava vida completa de vadio, metido em casa todo o santo dia, sem lhe dar o menor abalo o que se passava lá fora pelo mundo. O seu mundo consistia unicamente nos olhos, nos sorrisos e nos requebros de Vidinha.
Um dia forjaram uma patuscada semelhante à que dera origem ao conhecimento do Leonardo com a família. Deviam sair de madrugada da cidade e passarem fora o dia. Preparou-se tudo: cestos de comida, esteiras e mais arranjos. Vidinha mandou encordoar de novo sua viola; avisaram-se os convivas do costume.
À hora aprazada partiram.
Quem estivesse menos distraído pelo prazer da patuscada do que estava qualquer dos suciantes, notaria que os dois primos deixavam-se de vez em quando ficar atrás, e cochichavam como se tramassem uma conspiração. Ninguém porém dera atenção a semelhante coisa.
Chegaram ao lugar determinado ao romper do dia. Apenas começavam a preparar-se para o almoço, viram surdir, ninguém soube bem de onde, a figura alta, magra, severa e sarcástica do nosso célebre major Vidigal. Correu por todos um sinal de pouco contentamento, exceto pelos primos, que trocaram entre si um olhar de inteligência e triunfo.
Os olhos de Vidinha dirigiram-se instintivamente para Leonardo.
O major Vidigal deixou passar o primeiro momento de surpresa, e depois, sorrindo-se, disse, como costumava, com sua voz descansada:
— Não tenham medo de mim, que não sou nenhum papa-crianças, nem eu venho desmanchar prazeres de ninguém. Quero só saber quem é aqui o amigo Leonardo.
Vidinha fez logo cara de choro. Leonardo levantou-se sem saber como, e disse todo trêmulo:
— Sou eu...
— Ora vejam, respondeu o Vidigal em tom de mofa, eu não sabia!... Pois, meus amigos, não se assustem que o caso não foi para tanto: um súcio de menos numa patuscada não faz falta nenhuma. Este amigo vai conosco. Se ele puder, voltará em breve... mas creio que já não chegará a tempo para acabar a patuscada.
— Qual, meu Deus! mas por que é então isto? que mal é que ele fez?
— Ele não fez nem faz nada; mas é mesmo por não fazer nada que isto lhe sucede. Leva, granadeiro.
E um dos granadeiros com que viera o major acompanhado foi tratando de conduzir o Leonardo.
O Vidigal seguiu-os tranqüilamente, sem alterar o passo, e dizendo polidamente:
— Adeus, minha gente.
Vidinha desatou a chorar, exclamando:
— Foi malsinação!
— Foi malsinação! repetiram todos, menos os dois primos.
A súcia levantou-se.