Memórias de um Sargento de Milícias/XXXVI

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Deixemos aos noivos o gozo tranqüilo da sua lua-de-mel; deixemos D. Maria desfazer-se em carinhos e conselhos à sua sobrinha, que os recebia indiferentemente, e em atenções para com José Manuel, cuja cabeça se tinha tornado repentinamente uma aritmética completa, toda algarismos, toda cálculos, toda multiplicações; e voltemos a saber o que foi feito do Leonardo, a quem deixamos na ocasião em que fora arrancado pelo Vidigal dos braços do amor e da folia.

O Vidigal tinha-o posto diante de si, ao lado de um granadeiro, e marchava poucos passos atrás. Enquanto caminhavam o granadeiro pretendeu dar-lhe conversa; mas ele a nada respondia, parecendo absorto em grave cogitação.

Quem estivesse muito atento havia de notar que algumas vezes o Leonardo parecia, ainda que muito ligeiramente, apressar o passo, que outras vezes o retardava, que seu olhar e sua cabeça voltavam-se de vez em quando, quase imperceptivelmente, para a esquerda ou para a direita. O Vidigal, a quem nada disto escapava, achava em todas estas ocasiões pretextos para dar sinais de si; tossia, pisava mais forte, arrastava no chão o chapéu-de-sol que sempre trazia na mão, como quem queria dizer ao Leonardo, respondendo aos seus pensamentos íntimos:

— Cuidado! eu aqui estou.-E o Leonardo entendia tudo aquilo às mil maravilhas; contraía os lábios de raiva e de impaciência. Entretanto nem por isso abandonava a sua idéia: queria fugir. Desconfiava que ia para a casa da guarda, e pedia interiormente aos seus deuses que alongassem de muitas léguas as ruas que tinha de percorrer. Quando via de longe uma esquina dizia consigo:-E agora; quebro por ali fora, e bato pernas.-Porém ao chegar perto da esquina, o Vidigal achava alguma coisa que dizer ao granadeiro, e passava-se a esquina. Se lhe aparecia à direita ou à esquerda um corredor aberto, pensava consigo:-Embarafusto por ali adentro, e sumo-me.-Mas no momento em que ia tomar a última decisão, parecia-lhe sentir a mão do Vidigal que o agarrava pela gola da jaqueta, e esfriava. Não eram os granadeiros que lhe metiam medo; nunca em todos os planos de fugir que lhe passavam naquela ocasião pela cabeça contou uma só vez com eles; mas o Vidigal, o cruel major, era a quantidade constante de seus cálculos.

O pobre rapaz, durante aqueles combates íntimos, suava mais do que no dia em que fez a primeira declaração de amor a Luisinha. Só havia na sua vida um transe a que assemelhava, aquele em que então se achava, era o que se havia passado, quando criança, naquele meio segundo que levara a percorrer o espaço nas asas do tremendo pontapé que lhe dera seu pai.

Repentinamente uma circunstância veio favorecê-lo. Não sabemos por que causa ouviu-se um grande alarido na rua: gritos, assovios e carreiras. O Leonardo teve uma espécie de vertigem: zuniram-lhe os ouvidos, escureceram-se-lhe os olhos, e... dando um encontrão no granadeiro que estava perto dele, desatou a correr. O Vidigal deu um salto, e estendeu o braço para o agarrar; mas apenas roçou-lhe com a ponta dos dedos pelas costas. O rapaz tinha calculado bem: o Vidigal distraiu-se com o ruído que se fizera na rua, e aproveitou a ocasião. O Vidigal e os granadeiros soltaram-se imediatamente em seu alcance: o Leonardo embarafustou pelo primeiro corredor que achou aberto; os seus perseguidores entraram incontinenti atrás dele, e subiram em tropel o primeiro lance da escada. Apenas o haviam dobrado, e subiam o segundo, abriram-se as cortinas de uma cadeirinha que se achava na entrada, e pela qual tinham eles passado, sai dela Leonardo, e de um pulo ganha a rua. Ao entrar, tendo dado com aquele refúgio, metera-se dentro; os granadeiros e o Vidigal não haviam reparado em tal com a precipitação com que entraram, e isso lhe valeu.

É impossível descrever o que sentiu o Leonardo quando por entre as cortinas da cadeirinha viu-os passar e subir a escada. Foi uma rápida alternativa de frio e de calor, de tremor e de imobilidade, de medo e de coragem; veio-lhe outra vez à lembrança o pontapé paterno: era o termo constante de comparação para todos os seus sofrimentos.

Enquanto o Vidigal e os granadeiros varejavam a casa em que haviam entrado, Leonardo punha-se longe, e em quatro pulos achava-se em casa de Vidinha, que o recebeu com um abraço, exclamando:

— Qual! aí está ele!

Um raio de alegria iluminou todos os semblantes, menos o dos dois irmãos rivais, que ficaram horrivelmente desapontados. As duas velhas tiraram da cabeça as mantilhas que já haviam tomado para dar providências sobre o caso. A presença do Leonardo foi uma aura benfazeja que espalhou as nuvens de uma grossa tormenta, que tendo começado a roncar quando Leonardo foi preso com aquelas palavras-foi malsinação-viera desabar de todo em casa, e prometia durar muito tempo.

Vidinha, tendo a princípio trocado com os primos algumas indiretas a respeito da prisão de Leonardo, julgara conveniente deixar-se de panos quentes, e fora direito a eles, como se diz, com quatro pedras na mão, atribuindo-lhes o que acabava de suceder.

Eles denegaram, e travaram-se com ela de razões. A princípio as duas velhas estavam ambas da parte de Vidinha, porém tendo esta atirado três ou quatro ditos fortes demais aos primos, a tia ofendeu-se, e tomou o partido dos dois filhos: a outra velha, mãe de Vidinha, protesta contra a parcialidade de sua irmã, e reforça ainda mais, acompanhada dos que restavam, o partido de Vidinha. Divididos e extremados assim os dois campos, com terríveis campeões de lado a lado, fácil é prever-se o que teria sucedido se o Leonardo não viesse tão a tempo para acalmar tudo.

Tomado pelo prazer de ver-se livre, nem teve ele tempo de fazer recriminações aos seus inimigos: já sabia com certeza quem fora a causa do que acabava de sofrer, pois que o tinha percebido pela conversa que com ele tentara travar o granadeiro.

O major Vidigal fora às nuvens com o caso: nunca um só garoto, a quem uma vez tivesse posto a mão, lhe havia podido escapar; e entretanto aquele lhe viera pôr sal na moleira; ofendê-lo em sua vaidade de bom comandante de polícia, e degradá-lo diante dos granadeiros. Quem pregava ao major Vidigal um logro, fosse qual fosse a sua natureza, ficava-lhe sob a proteção, e tinha-o consigo em todas as ocasiões. Se o Leonardo não tivesse fugido, e arranjasse depois a soltura por qualquer meio, o Vidigal era até capaz, por fim de contas, de ser seu amigo; mas tendo-o deixado mal, tinha-o por seu inimigo irreconciliável enquanto não lhe desse desforra completa.

Já se vê pois que as fortunas do Leonardo redundavam-lhe sempre em mal: era realmente um mal naquele tempo ter por inimigo o major Vidigal, principalmente quando se tinha, como o Leonardo, uma vida tão regular e tão lícita.

Veremos agora o que se passou na casa em que entrara o Vidigal com os granadeiros em procura do Leonardo.