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Memórias de um Sargento de Milícias/XXXVIII

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A comadre, tendo deixado o major entregue à sua vergonha, dirigira-se imediatamente para a casa onde se achava Leonardo para felicitá-lo e contar-lhe o desespero em que a sua fuga tinha posto o Vidigal. O Leonardo contava com isso, e não se admirou; Vidinha porém e as duas velhas, por entre muita praga e esconjuro, deram grandes risadas à custa do major. A comadre, segundo seu costume, aproveitou o ensejo, e depois que se aborreceu de falar no major desenrolou um sermão ao Leonardo, no qual, algumas exagerações de parte, havia grande fundo de justiça; e tanto que até a própria Vidinha chegou a dar-lhe inteira razão quanto a alguns trechos. O tema do sermão foi a necessidade de buscar o Leonardo uma ocupação, de abandonar a vida que levava, gostosa sim, porém sujeita a emergências tais como a que acabava de dar-se. A sanção de todas as leis que a predadora impunha ao seu ouvinte eram as garras do Vidigal.

— Haveis de afinal cair-lhe nas unhas, dizia ela no fim de cada período; e então o côvado e meio te cairá também nas costas.

Esta idéia do côvado e meio fez brecha no espírito do Leonardo: ser soldado era naquele tempo, e ainda hoje talvez, a pior coisa que podia suceder a um homem. Prometeu pois sinceramente emendar-se e tratar de ver um arranjo em que estivesse ao abrigo de qualquer capricho policial do terrível major. Achar porém ocupação para quem nunca cuidou nela até certa idade, e assim de pé para mão, não era das coisas mais fáceis.

Entretanto o zelo da comadre pôs-se em atividade, e poucos dias depois entrou ela muito contente, e veio participar ao Leonardo que lhe tinha achado um excelente arranjo que o habilitava, segundo pensava, a um grande futuro, e o punha perfeitamente a coberto das iras do Vidigal; era o arranjo de servidor na ucharia real. Deixando de parte o substantivo ucharia, e atendendo só ao adjetivo real, todos os interessados e o próprio Leonardo regalaram os olhos com o achado da comadre. Empregado da casa real?! oh! isso não era coisa que se recusasse; e então empregado na ucharia! essa mina inesgotável, tão farta e tão rica!... A proposta da comadre foi aceita sem uma só reflexão contra, da parte de quem quer que fosse.

Como a comadre pudera arranjar semelhante coisa para o afilhado é isso que pouco nos deve importar.

Dentro de poucos dias achou-se o Leonardo instalado no seu posto, muito cheio e contente de si.

O major, que o não perdia de vista, soube-lhe dos passos, e mordeu os beiços de raiva quando o viu tão bem aquartelado; só deixando a vida que levava podia o Leonardo cortar ao major pretextos para pôr-lhe a unha mais dia menos dia.

— Se ele se emenda?! dizia pesaroso o major; se ele se emenda perco eu a minha vingança... Mas... (e esta esperança o alentava) ele não tem cara de quem nasceu para emendas.

O major tinha razão: o Leonardo não parecia ter nascido para emendas. Durante os primeiros tempos de serviço tudo correu às mil maravilhas; só algum mal-intencionado poderia notar em casa de Vidinha uma certa fartura desusada na despensa; mas isso não era coisa em que alguém fizesse conta.

O Leonardo porém parece que recebera de seu pai a fatalidade de lhe previrem sempre os infortúnios dos devaneios do coração.

Dentro do pátio da ucharia morava um toma-largura em companhia de uma moça que lhe cuidava na casa; a moça era bonita, e o toma-largura um machacaz talhado pelo molde mais grotesco; a moça fazia pena a quem a via nas mãos de tal possuidor.

O Leonardo, cujo coração era compadecido, teve, como todos, pena da moça; e apressemo-nos a dizer, era tão sincero esse sentimento que não pôde deixar de despertar também a mais sincera gratidão ao objeto dele. Quem pagou o resultado da pena de um e da gratidão da outra foi o toma-largura.

Vidinha lá por casa começou a estranhar a assiduidade do novo empregado na sua repartição, e a notar o quer que fosse de esmorecimento de sua parte para com ela.

Um dia o toma-largura tinha saído em serviço; ninguém esperava por ele tão cedo: eram 11 horas da manhã. O Leonardo, por um daqueles milhares de escaninhos que existem na ucharia, tinha ido ter à casa do toma-largura. Ninguém porém pense que era para maus fins. Pelo contrário era para o fim muito louvável de levar à pobre moça uma tigela de caldo do que há pouco fora mandado a el-rei... Obséquio de empregado da ucharia. Não há aqui nada de censurável. Seria entretanto muito digno de censura que quem recebia tal obséquio não o procurasse pagar com um extremo de civilidade: a moça convidou pois ao Leonardo para ajudá-la a tomar o caldo. E que grosseiro seria ele se não aceitasse tão belo oferecimento? Aceitou.

De repente sente-se abrir uma porta: a moça, que tinha na mão a tigela, estremece, e o caldo entorna-se.

O toma-largura, que acabava de chegar inesperadamente, fora a causa de tudo isto. O Leonardo correu precipitadamente pelo caminho mais curto que encontrou; sem dúvida em busca de outro caldo, uma vez que o primeiro se tinha entornado. O toma-largura corre-lhe também ao alcance, sem dúvida para pedir-lhe que trouxesse desta vez quantidade que chegasse para um terceiro.

O caso foi que daí a pouco ouviu-se lá por dentro barulho de pratos quebrados, de móveis atirados ao chão, gritos, alarido; viu-se depois o Leonardo atravessar o pátio da ucharia à carreira e o toma-largura voltar com os galões da farda arrancados, e esta com uma aba de menos.



No dia seguinte o Leonardo foi despedido da ucharia.