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Memórias duma Mulher da Época/As impressões de Silvina, viúva

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As impressões
de Silvina, viúva



 

19 de Abril.

Há quási três mêses que não comunico ao papel as minhas impressões. Tão angustiosas têm sido elas, que me não tenho sentido com forças e sangue-frio suficientes para me sentar a escrever. Estou viúva — viúva aos vinte e quatro anos, dois mêses depois de casada! — e ainda mal recomposta das comoções que tão violentamente me abalaram antes e depois da morte do meu querido Carlos. A minha pobre alma martirisada, só nestes últimos dias tem alcançado alguma tranquilidade, depois dos constantes, indizíveis esforços que tenho feito para tentar compenetrar-me de que é preciso reagir contra a onda de mágua que me envolve.

Tenho chorado dias e noites a fio, mas as lagrimas, em mim, longe de me causarem alívio, como se diz, geralmente, que causam, concorrem para um maior abatimento de todo o meu sêr. Há quatro dias que não chóro e, por isso, me sinto mais corajosa. Meus pais trouxéram-me para sua casa logo após a morte de meu marido. Mas eu, consultando-me intimamente, julgo que teria sido preferivel deixarem-me só, entregue à minha dôr, naquela residência quási deserta, a obrigarem-me a convivêr com êles, que, apesar de carinhosos, condoídos e contristados, não pódem apreender o meu verdadeiro estado de espírito...

Aquelas oito noites que antecederam a morte do Carlos, noites agitadas em que o querido doente desejava forçosamente erguer-se, proferindo, em repentes de delírio, frases truncadas, extravagantes, geradas pela febre intensíssima, aquelas noites angustiosas de torturante expectativa, depois de dias de relativa quietação, prostraram-me a ponto da própria Morte pouco mais me impressionar, porque tendo o espírito enfraquecido, a energia exgotada, os nervos desfeitos, já mal podia avaliar do que em volta de mim se passava. Estava mentalmente inerte quando para aqui vim e só passados dois dias pude atentar na minha infelicidade e dar largas ao pranto.

Tenho pedido a Deus que me não abandone, que me dê forças para resignar-me á minha sorte. Sinto-me mais animosa e apenas se me humedecem agora os olhos, ao pensar que sou ainda tão nova e já viúva. Tenho, no entanto, a convicção de que esta mágoa nunca passará.

23 de Abril.

Este dia tão lindo parece ultrajar o meu luto. A bem dizer, este luto já me não aflige tanto como nos primeiros dias; dir-se-ha que me fica bem, até. Estive observando-me ao espelho, há pouco, e notei que as amarguras me não desfeiam e que a expressão triste dos meus olhos fatigados proporciona á minha beleza imperfeita um vago e espiritual encanto. Desloquei para a testa um dos aneis do meu cabelo, tão maltratados durante todo este tempo, mas logo a seguir me envergonhei do meu prematuro gesto de coqueteria. Agora, porém, estou a pensar que não há motivo para que não vá prestando mais alguma atenção á minha tualéte. Na minha idade! E isto não quere dizer que a recordação saudosa do meu querido Carlos me deixe um só instante; nunca me deixará, estou mais do que convencida disso. É que era meu marido, o meu querido marido, tão novo e tão carinhoso!

Varrêram-se-me do espírito, logo que o vi doente, certos pequeninos ressentimentos a seu respeito. Quem me déra vê-lo vivo e são, continuando a causar-me os mesmos pequenos dissabores e motivando arrufos passageiros, que davam, inevitavelmente, origem ás mais ternas reconciliações!

25 de Abril.

Que vergonha! Surpreendi-me, há instantes, a cantarolar baixinho ― muito baixinho, é certo ― enquanto dava uma vista de olhos por vários objectos que me avivam lembranças da minha vida de solteira e conservo numa gaveta do toucador do meu quarto de donzela. Felizmente, estava só; se alguem presenciasse esta indesculpável leviandade, que juizo faria dos meus sentimentos?! Esqueci-me momentaneamente da minha triste situação! Meu querido Carlos, que a tua alma me perdôe esta abstracção que me envergonha! Tenho lágrimas nos olhos... Porque foi que esta manhã cobri o meu rosto com uma ténue camada de impalpável pó de arroz de Clamy, como despreocupadamente fazia, nos dias felizes?...

26 de Abril.

Sinto-me cada vez mais descontente comigo mesma. Saí ontem, com minha mãi, a fazer necessárias e determinadas compras, e por muitas vezes ouvi áqueles que por mim passavam elogiar a minha frescura, que, decerto, sobresái notavelmente em meio do luto, apesar do véu — aliás pouco espesso — me cobrir o rosto... Pois bem! Não obstante ter concordado com as palavras de minha mãi, que parecia indignada pela falta de respeito que alguns homens manifestavam pelos meus tristes trajes, senti-me intimamente afagada por aquelas frases banais de louvor á minha mocidade. Meu querido Carlos, perdoa á tua dedicada mulhersinha a vaidade de se achar bela no luto que por ti está usando! São idéas profanas, certamente, mas que afinal em nada diminuem a intensa dôr que ainda experimento pela tua morte... Demais, a consciencia de que procedia mal dando ouvidos ás palavras trivialmente absurdas dalguns passeantes, provavelmente ociosos e inúteis, perturbou-me tanto, tanto, que me esqueci de comprar o frasco de essencia de Gabilla que tinha, principalmente, motivado a minha saída!

29 de Abril.

O Carlos fazia hoje anos, se fosse vivo. Este dia tem sido de lágrimas para mim... Pobre querido! Levou para a sepultura o delicado fio de oiro que lhe coloquei ao pescoço, poucas horas depois do nosso casamento... A ternura com que êle beijou então a sua Silvininha!... Quem me déra agora um beijo dêle, quem mo déra! Carlos, meu querido Carlos, a tua alma, vagueando ainda, naturalmente, pelo espaço, não procurará ás vezes a tua mulhersinha?

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O que acaba de se passar comigo, arripía-me... Tinha deixado a pena e apoiado os cotovêlos na secretária, descançando a cabeça nas mãos. Pensava profundamente no Carlos, com o torturante desejo de saber qual seria a disposição do seu espírito na misteriosa vida de além-túmulo, quando senti que uma força estranha, desconhecida, me forçava a levantar a fronte, pouco a pouco, deslocando-ma das mãos... Pareceu-me que um sôpro levíssimo, frio, perpassava pelo meu rosto afogueado e os meus lábios, inconscientemente, esboçaram um beijo, que se perdeu no ar... Foi sem dúvida êle que veio vêr-me... Tenho a certeza disso.

2 de Maio.

Estou agitada, desejosa de voltar á vida, ansiosa por que o tempo decôrra... Desde quarta feira, á tarde, quando tive a sensação de que o Carlos me visitava, que estou assim. Adivinho que êle não quere que eu me atormente mais, que deseja vêr-me reagir, sorrir de novo. E estou diligenciando, efectivamente, alcançar esse fim. Na verdade, aos vinte e quatro anos, nada feia, confiando ainda no Bem e na Humanidade, não terei o direito de buscar consolações?!

Por julgar acertada esta órdem de idéas, tenho dado pequenos passeios, feito visitas, procurado convivência, e este movimento tem-me sido, na realidade, muito salutar. Engordei um poucochinho — oh! muito pouco! — e tenho, consequentemente, uma aparencia mais fresca do que nunca.

Soube, ontem, que a D. Josefina, aquela viúva madura e espessa que foi nossa visinha na Estrela, casou há dois mêses e essa notícia deu-me que pensar...

E se eu tornasse a casar, tambem ? Porque não o farei? Se me eram tão queridas essas horas de ternura em que esquecia os diversos incidentes prosaicos da minha vida de casada, por que razão não hei-de dedicar-me de novo a um homem que, sem apagar no meu espírito a recordação do Carlos — recordação inextinguível, a meu vêr — o venha materialmente substituir?

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Este pequeno espelho que a minha mão esquerda, neste instante, segura e que reflecte o meu rosto de fino oval, anima pensamentos que eu nunca ousaria confiar fosse a quem fôsse... Toda a gente censuraria a maneira relativamente fácil por que me tenho ído resignando ás actuais circunstancias da minha vida, o que não impede que a minha consciencia se sinta quási tranquila, visto que tenho a convicção de que o Carlos não deixará de me inspirar, da Eternidade , ânimo e firmeza. Esta manhã despertei com um irresistível desejo de amar e vivêr... E fico esperando, cheia de fé, uma nova e dôce fase da minha existencia, fase que, pressinto-o, não deixará de vir...

 

Lisboa, 1923.