Memórias duma Mulher da Época/Segunda parte
Novembro, segunda-feira, 12.
Deparou-se-me, hoje, este caderno, esquecido ingratamente no fundo duma gaveta durante quasi seis anos. Chego a não saber como perdi o meu antigo habito de transmitir todos os pensamentos e impressões a este confidente de alvas páginas acolhedoras, que a minha pena ia a pouco e pouco preenchendo, quer num movimento lento, nos dias de tristeza, quer febrilmente, em horas de perturbação. Esse habito que era, afinal, o melhor, o unico meio de desabafar, sem inconveniente, as preocupações intimas que um natural recato me não permitiria confiar á minha melhor amiga...
Quanto tenho vivido e sofrido no decorrer de todo êste tempo! As linhas que escrevi, da ultima vez, nêste verdadeiro livro de alma, são datadas de 30 de Março de 19..., mêses antes do meu divorcio. Que intolerante eu era, então, na minha inexperiencia da vida, e com que facilidade me irritava por não achar perfeito — como se existisse no mundo a perfeição suprema! — o caracter de meu marido... Quantas vezes tenho lamentado a resolução absurda que, arrebatadamente, sem ouvir vozes amigas e conciliadoras, tomei! Houve cerca de um ano de dor e lagrimas após esse divorcio e veio, depois, o reagir natural da minha mocidade com o desabrochar dum caracter, dum temperamento até então incertos, como que cerrados... E o desgosto da minha situação foi-se atenuando a pouco e pouco, no declinar normal das grandes comoções. Já não existe hoje a Fausta doutros tempos, orgulhosa, exigente — e irrepreensivel — que tantas vezes se julgou, insensatamente, superior ás outras mulheres e refractaria ao pecado. Agora, apeada para sempre do altar da virtude, flôr assimetrica e doentía duma geração corrompida, vivo da ilusão e pelos nervos. Sou apenas Ashavérus-femea que um triste destino faz vaguear pelo país acidentado do amôr, no qual, por nunca explicados fenómenos, a cada passo as planicies se transmudam em montanhas — e as calmas lagunas, por onde navega a doirada barca do Sonho, tantas vezes naufragada, vão ligar-se a mares tormentosos. Tenho bebido de há cinco anos para cá, e a grandes tragos, o licor capitoso da taça da Emoção e tambem provado o veneno da Dúvida e o fel de desengano, cujas amarguras me são conhecidas.
Sabado, 17.
Volto, decididamente, a afeiçoar-me a este caderno. Aqui estou já principiando nova página. A minha gata Nina saltou-me agora mesmo para o regaço, onde se ageita ronronando dôcemente. O relogio bate, cadenciado, sobre a mezinha próxima, dez horas da manhã. A Nina ergue o focinho mimoso e segue com o olhar, preocupadamente, o movimento da minha pena. Não posso deixar de acaricia-la... É meiga e friorenta como eu e, como eu, gulosa e voluptuosa. Só não tem os meus ideais e o meu sentimento — porque Deus não lhe proporcionou a faculdade de raciocinar... Em compensação, possue um lindo pelo em manchas alvas e negras, lustroso, longo — e a minha predilecção pelos gatos é de ordem puramente fisica. Gósto destes deliciosos felinos domesticos porque são flexiveis e sedosos e não porque tenha descoberto nêles qualidades de instinto positivamente apreciaveis...
Dêvo ir hoje vizitar meus pais; não os vejo há dois dias. Penso agora, mais uma vez, no que pode ter de estranho, para as pessoas das minhas relações, o facto de eu preferir viver sozinha a habitar na casa paterna . E, contudo, a razão do meu isolamento é simples: apesar da minha imensa ternura pelos dois seres que me deram a vida, uma completa divergencia de indoles, de habitos e, sobretudo, a minha ansia de liberdade, distanciam-me consideravelmente desses pais amoraveis que tanto desejariam reconquistar esta filha de quem um casamento auspicioso — ainda mais ambicionado talvez por êles do que por mim — os separou em dias de esperança e que um divorcio, resolvido e consumado numa época de exaltação, de desatino, lhes não restituiu...
E Gilberto? Dêvo encontrar-me com êle, amanhã, pela terceira vez. Esta necessidade tirânica de preencher o coração, obriga-me a fazer loucuras... Chego a invejar a indiferença de certas mulheres perante o amôr. Quem me dera essa insensibilidade que, sem dúvida, proporciona, a quem a possue, uma ininterrupta paz de consciencia e um eterno repoiso dos sentidos!...
Tenho podido, de há dois anos para cá, é certo acolher-me á sombra ampla, cariciosa, do afecto de Luciano, mas esse afecto, embora precioso para mim, não tem conseguido suprir a falta daquilo a que no mundo se convencionou chamar amôr. É verdade que Luciano dá o nome de amor ao sentimento que diz dedicar-me. Mas eu obstino-me em lhe chamar amizade amorosa, e tão pura é a afeição que por êle sinto, que se me tem aligurado sempre um sacrilegio o sair do programa de ternura espiritual que ambos adoptámos.
Em momentos tristes, tenho recorrido, com ansiedade, ao seu espirito generoso e algumas horas passadas junto dele, no seu gabinete discreto e confortavel, restituem-me o ânimo de viver que, por vezes, me falta. Nos meus dias de desalento, de funda melancolia, é sempre ele quem me socorre com o seu enternecido afecto.
Penso, frequentemente, que me seria impossivel, fôssem quais fossem as circunstancias em que me encontrasse, renunciar a essas breves horas de doce calma... E que infinita espiritualidade há em tudo isto!
Todavia, interessei-me tanto por Gilberto, desde o primeiro dia em que tive ensejo de lhe apreciar o espipirito vivo, encantador, que, apezar da minha primitiva intenção de colher apenas do meu convivio com ele o que de superficial esse convivio pudesse dar-me, me encontro agora numa situação mais de ponderar... Gilberto é muito insinuante, mas não é absolutamente sincero; tem, ás vezes, umas frases de crú cepticismo que não correspondem aos seus sentimentos, iria jura-lo. E, contudo, é discreto, muito inteligente e exuberantemente alegre... Se eu não tivesse sofrido já as desilusões que para sempre amorteceram o meu caracter impulsivo, sem a menor duvida me apaixonaria por ele. Por seu lado, tambem ele me disse, ante-ontem, dia da nossa primeira entrevista, que se não fôra a impressão, predominante no seu espirito, de ter vivido mais dum século — de tal modo assegura têr perdido entusiasmos e desperdiçado sentimentos — me votaria um amor louco. Respondi-lhe, então, que achava louvável aquela franqueza e que ele me parecia um dos homens mais originalmente interessantes que tenho conhecido...
Gilberto sorriu, com ternura, e disse-me, num murmurio, beijando-me a mão, que me encontrava os mais capitosos atractivos, que a minha companhia lhe era deliciosa e que teria um prazer maximo em que aquele encontro se repetisse — com maior demora. Conversavamos assim, galantemente, em pleno Campo Grande, ás seis horas da tarde. Este outono veiu chuvoso e agreste; caía uma chuva diluviana sobre o auto em que ambos permaneciamos e que o chauffeur tinha abandonado, a meu pedido, para se abrigar ali perto...
Será isto um idilio de desiludidos, de descrentes, ou de sentimentais que afectam, por méra pose, um certo desprendimento de emoções ?... Nada sei senão que Gilberto me agrada imensamente e que estivemos juntos toda a tarde de ontem. Grave temeridade a de brincar com o fogo !
Quarta-feira, 21
Ontem, Luciano escreveu-me. Tambem recebi uma carta de Maria Alice; aquela pobre rapariga sofre muito. Coube-lhe, por sorte, como marido, um verdadeiro algoz; senão fosse o filho, lindo bébé de olhos pestanudos e graciosissimas birras, seria completamente infeliz. Fez-me pena, muita pena, a carta dela e, no entanto, quasi invejo a pureza da sua vida e a paciencia enternecedora com que suporta o seu ruim destino...
A carta de Luciano acariciou-me como me acariciam a sua voz grave e o seu olhar firme e claro, inundando a minha alma de reconhecida ternura. Mas eu sinto-me vagamente triste; há oito dias que não falo com o Luciano, há oito dias que não vejo Gilberto. Tenho saudades dum e doutro. Irei passar a tarde de àmanhã com Gilberto e farei, no dia imediato, uma curta vizita a Luciano. Dou assim um lugar secundario ao afecto, que, em verdade, mereceria o primeiro dos primeiros... Mas, neste período da minha vida, o Amôr impõe-se mais do que a Amizade. E' como se apresentassem a um artista faminto, á escolha, um manjar apetitoso que lhe saciasse a fome e lhe lisongeasse o paladar-e a vista dum panorama luxuriante que o deslumbrasse, numa perspectiva maravilhosa... Por maior que fosse a sua admiração pelos encantos da natureza e por muito que nele pudesse o sentimento da arte, o seu primeiro impulso seria, inevitavelmente, para o alimento cubiçado, imprescindivel, e só depois os seus olhos e o seu espirito se voltariam para o panorama explendido, ante o qual ficaria horas interminaveis, a scismar...
Sexta-feira, 30
Não me tenho sentido bem, fisicamente, nestes ultimos oito dias. A nevralgia que, de quando em quando, me atormenta, só hoje me deixou. Não tenho saído e o socego desta casa pequena e tranquila, habitada apenas pela minha fiel Nazaré, tem-me sido aprazivel. Sou, por habito, espontanea e comunicativa, mas há certas épocas da minha vida em que apeteço o isolamento e a reflexão. Já mandei dizer a Gilberto que não contasse comigo durante estes dias mais proximos e tenho evitado, tambem, a convivencia de Luciano, que é, de ordinario, tão grata para mim.
Sinto-me infeliz, pessimista. Desde que o excelente doutor Russel, velho amigo de meu pai, me quiz iniciar, há pouco mais de um ano, nos mistérios esotéricos, acredito firmemente na imortalidade e na reincarnação das almas e sou sugeita a estas temporadas de profunda tristeza. Passei a compreender certas reminiscencias que amiude me povoam o cerebro e que, não tendo aparentemente origem, me surpreendiam noutro tempo. Lembro-me, embora vagamente, de ter vivido outras vidas, todas mais ou menos acidentadas, em que sempre me debati entre o Amor e a Dor... Tenho recordações indecisas, como num sonho, de ter cingido os quadris com o cinto de pedrarias das egipcias, de me ter envolvido no péplum ondeante das gregas, de ter usado a gola quinhentista e descoberto o meu peito branco nos decotes desonestos das contemporaneas do Império...
Onde se teriam passado, sob diversos invólucros materiais e atravez de diferentes idades, as maiores tragedias da minha alma ignorada? No Egito, na Helada, na Ibéria? Na França heroica e soberba, na gélida, misteriosa Russia ou na velha Alemanha romantica dos Goethe e dos Klopstock? E entre lôdo ou entre arminhos? Em tugurios, palacios ou serralhos?
Não sei, não sei... E estou vivendo e sofrendo, amando e pecando nesta época de decadencia e de exacerbamento, neste século de febre e de nevrose... Luciano, Luciano, quem me dera, neste instante, encostar ao teu ombro a minha cabeça entontecida, chorar lágrimas benditas que apaziguassem os meus nervos tensos e abandonar-me ao teu afecto generoso e calmo!
Dezembro, terça-feira, 4.
Tive ontem, com Gilberto, uma conversação extravagante.
Estavamos lado a lado, num sofá. Costumamos encontrar-nos num rés-do-chão com altas gelosías, que tornam penumbrosa a salinha onde conversamos. Gilberto, que é, alternadamente, fogoso e frio, entusiastico e ceptico, perguntou-me, de repente:
— Fausta, quantas aventuras como esta tens tu tido?
— E' esta a segunda — respondi, recapitulando mentalmente e calando inumeros flirts sem consequencias, para recordar, comovida, a afeição sincera de L., que ía endoidecendo e me ía endoidecendo tambem com as pretensas descobertas de supostas infidelidades minhas e que a força do destino levou para longe, para muito longe...
— Só! Não acredito...
— Pensa o que quizeres... Calou-se, soprou o fumo do seu «Abdulla» e traçou a perna. Momentos depois, disse:
— Mesmo que assim fôsse, este nosso romancinho acordaria em ti o desejo permanente de sensações novas. Vais fazer vinte e nove anos, segundo me disseste; estás numa idade sempre perigosa numa mulher com as tuas caracteristicas...
— Obrigada pelo aviso — repliquei, irónica.
— Ouve: se eu viesse a prender-me a ti, devéras, que fazias?
— Apaixonava-me tambem.
— Por mim?
— Sim. Não seria dificil.
Gilberto atirou fóra o cigarro e encarou-me.
— Falas sério?
— Falo.
— Fausta, nunca te apaixones por mim!... Eu fugia-te no dia em que me certificasse disso... Não tornavas a vêr-me...
Abracei-o, numa onda de ternura.
— E's um barbaro !
— Não sou um barbaro, sou um homem razoavel. E fica sabendo que gosto de ti. Gosto, é o termo. Sinto-me feliz quando estamos juntos, acho-te deliciosa como companheira dalgumas horas, pelo teu espirito, pelas tuas qualidades de mulher; mas se alguma vez adquirisse a certeza de que tinha por ti um sentimento mais sólido e mais preciso do que este que aqui me traz, tambem por essa razão te fugiria... para evitar a um e a outro desgostos que mais tarde ou mais cêdo haviam de surgir...
E afagava-me. Mas eu tinha vontade de chorar.
— Tu dizes absurdos, Gilberto!
— Não digo tal... Mas nada disto em que te falei sucederá, descança. Nem contigo, que és excessivamente caprichosa para que possas prender-te de modo definitivo a um homem, nem comigo, que já vivi demasiado para ser ainda susceptivel de afectos duradoiros...
— Sim, eu creio bem que amaste e sofreste. E as paixões mal sucedidas devem esgotar, na verdade, as nossas susceptibilidades afectivas...
— Paixões mal sucedidas?! Não... As paixões, em mim, vêin e vão com a maior facilidade.
Adivinhei que ele mentia, com a preocupação — vulgar nos homens e tão errada quão vulgar — de negar desgostos de amor, como se a confissão dêsses desgostos representasse uma fraqueza vergonhosa, em vez de demonstrar a existencia dum coração acessivel. Há no desprezo pelo mundo, que este homem afecta, qualquer coisa de dolorosamente amargo, que a sua mordacidade e a sua ironia não logram dissimular por completo... Mas límitei-me a abraça-lo de novo, e a dizer-lhe, então, meiga e zombeteira:
— E's um super-homem, eu já o sabia... Mas, meu querido ceptico, uma vez que me preveniste a tempo, não serei eu quem se apaixonará por ti. Fica tranquilo a êsse respeito.
— Antes assim... Eu tinha um certo receio de que a minha prevenção produzisse em ti o efeito contrario áquele que, afinal, parece ter produzido...
— Não, não tenhas êsse receio. De amôr, entre nós, nem sombras. Está combinado. Isto será apenas um passatempo que...
Não púde continuar. Gilberto, cobrindo-me de caricias, não me deixou continuar.
Quinta-feira, 6.
Luciano suspeita de qualquer preocupação amorosa na minha vida. Os seus olhos limpidos não tem agora para mim apenas ternura; há também nêles ciume e reprovação. E eu sofro com isso. Acuso-me de deixar transparecer no meu olhar, nos meus gestos, na minha voz, a influencia do outro. Porque, senão fosse esta involuntaria exteriorização do meu sentir, que reconheço mas não posso evitar e que denuncia, talvez, à inteligencia aguda de Luciano tudo o que se está passando em mim, isto é, mais um dramazito cujos três primeiros actos se chamam: capricho, fraqueza, pecado — o quarto será, provavelmente, como nos outros dramas já meus conhecidos, arrependimento — não me sentiria tão perturbada, tão pouco senhora de mim mesma deante do meu amigo querido... E' que na minha reserva há tanto afecto, tanto carinho e — ternissimo paradoxo! — tanta sinceridade, que nem ele o sonha, sequêr. Meu Deus, se os homens soubessem adivinhar os sentimentos puros que se escondem, ás vezes, por traz do que eles chamam as nossas mentiras, talvez não nos acuzassem tão frequentemente de pérfidas e enganadoras!
Trouxeram-me agora uma carta de Luciano; vou lê-la.
Sabado, 8
Os meus nervos estão crispados, numa dolorosa vibração. Soube ontem que Gilberto e Luciano são amigos. Disse-mo o proprio Gilberto e as palavras injustas que me dirigiu, num tom mordaz e irreverente — aquele irritante pseudo-cepticismo! — não me foram menos penosas do que o facto de saber que Luciano é amigo intimo dum homem que talvez passasse a odiar se conhecesse a existencia duma ligação entre mim e ele... E quem sabe se me retiraria, a mim tambem, a sua amizade preciosa!
Ontem, detestei Gilberto. Notei que está precocemente envelhecido; rareia-lhe o cabelo e numerosas rugas se lhe entrecruzam já no rosto de homem experimentado na eterna luta da vida. Pareceu-me que empregava mal os meus beijos... Que extravagantes sômos, os dois!
Enquanto eu o observava a furto, acendeu um cigarro e disse-me de chofre:
— Devias adorar muito o teu ultimo apaixonado...
— Porquê? — volvi, admirada.
— Porque, para o substituir, necessitas de estimar dois homens...
— Dois homens?
— Sim. Eu e Luciano Casaes.
Eu nada disse durante alguns minutos. Foi-me desagradável, doloroso, ouvi-lo falar de Luciano. Ele volveu, soprando tranquilamente o fumo do cigarro:
— Emudeceste?
— Não, não emudeci. Admira-me que saibas que eu conheço Luciano e me fales dêsse modo a seu e a meu respeito...
— Eu sou talvez o maior amigo de Luciano, quasi o seu confidente. Sei, há muito tempo, que ele adora uma mulher; e essa mulher és tu, minha serpentezinha... Mas só ontem o soube.
— Dize tudo, faze favor — repliquei.
— Fui vizita-lo. Estava sentado á secretaria, a acabar uma carta. Tinha já feito o sobrescrito, que estava deante dêle. Não sei se sabes que Luciano tem o habito de fazer o sobrescrito antes das cartas... Apenas me viu no limiar da porta, ocultou discretamente a direcção traçada. Preguntei-lhe, autorizado a isso pela nossa antiga amizade, se aquela carta era para uma mulher. Disse-me que sim e, naturalmente porque se sentia comunicativo naquele momento, leu-ma. Um homem como Luciano só escreve cartas como aquela a uma mulher a quem ame... Fizémos ambos, a seguir, algumas considerações sobre o Amôr e, pouco depois, mudámos de assunto. Mas a curiosidade não é exclusivamente feminina... Fui incorrecto, confesso... Enquanto Luciano foi á porta, chamar alguem, consegui vêr o sobrescrito e li nele o teu nome. Aqui está como te colho numa dupla infidelidade...
Gilberto sorria, irónico. A boca dêle é das mais sugestivas que tenho visto... Mas aquele tom sarcastico, de artificioso cinismo, enfureceu-me.
— Luciano é um excelente amigo, por quem tenho uma grande amizade. Admiro o seu espirito, a sua nobreza de caracter, mas... não há entre mim e ele laços intimos, como tu pareces insinuar.
— Ah! Não existe entre ambos, então...?
— Não.
Ergueu-se um pouco das almofadas a que se encostara e disse-me com vivacidade:
— Fausta, tu estás mentindo irremessivelmente. Aí está o que todas as mulheres valem... Ouve, digo-to agora: sabes o que eu ambicionaria encontrar no mundo e ainda não conheci? Uma mulher sincera..
— Eu sou sincera.
— Não o és. Mentes, quando dizes que és apenas uma boa amiga de Luciano.
— Não minto, já to disse! — tornei, com firmeza. Posso jurar-to! E' verdade que ele parece desejar a intimidade de que me falas; eu é que não a quero porque isso representaria uma profanação da ternura sem pecado que por ele sinto e tenciono conservar até ao fim da vida.
— E se ele morresse antes?
— Cala-te!... Nem quero pensar nisso...
Gilberto riu.
— E se ele soubesse disto que se passa entre nós?
— Só o saberia se tu e eu lho disséssemos... E nenhum de nós lho dirá.
— Tens razão...
Calou-se, por segundos, e daí a pouco observou:
— Mas Luciano tem por ti uma verdadeira paixão.
Se a não tivesse não te escreveria como te escreve...
Nada respondi. A minha sensibilidade doía-se com aquela conversação que se me afigurava monstruosa e que fui desviando a pouco e pouco para outro rumo.
Ontem adorei Gilberto depois de o ter achado detestável; vi-o, como nunca, exuberante de vida e de calor. Talvez que a convicção de que um amigo seu me ama e me deseja o aguilhoasse
Domingo, 16.
Luciano, porque não hás-de apartar o teu espirito cristalino, a tua alma excepcionalmente nobre, das miserias ignóbeis do mundo, criando um horizonte esplendente, liberto de toda a materialidade, para o teu afecto por mim? Se eu, pobre filha de Eva, pecadora como ela, sei conservar, em meio duma esgotante luta de raciocinios contradictorios e loucas fantasias, cuja base oscilante se esborôa dum momento para o outro, um sentimento inalteravelmente puro — a minha amizade por ti — porque não sucede outro tanto contigo, porque entrevejo eu, em certos instantes, nas tuas pupilas lucidas, o reflexo duma tentação impura?!
Ao suspeitar-me arrastada pelo torvelinho das paixões, ao advinhar-me subjugada, mordida por mais dum pecado mortal, deixas transparecer no teu olhar um mundo de censuras, de magua 'e de zelos, sem que pelo teu espirito deslize, ainda que leve como uma sombra, a idéa justa de que a ternura imaterial que soubeste inspirar-me está tão acima das minhas fraquezas mundanas como o está da terra vã, corrupta, o sol consolador e magnifico que a ilumina e a fecunda...
Segunda-feira, 17.
Passei, esta tarde, em casa de Luizinha, umas horas despreocupadas, em que o bom humor doutros tempos me acompanhou. A Luizinha não perde o habito dos seus chás semanais, cuja frequencia ela se esforça, com incrivel tenacidade, por apurar e refinar... pelo menos no exterior.
Assím, aquela excelente e honestissima rapariga, a quem a mania do mundanismo frivolo faz desmerecer, não pode, intimamente, concordar com o meu estado de divorciada, que nem sequer vive com seus pais; no entanto, como sou bonita e distinta, considera-me um elemento decorativo, indispensável nos seus chás. Daí, tantos e tão amaveis convites, que eu de quando em quando utiliso.
Hoje, apeteceu-me ver gente, daquela gente insignificante de espirito e brilhante de aspecto que se reune na sala de Luizinha, ás segundas-feiras. Estão sempre lá três irmãs, todas loiras e rosadas, que sorriem constantemente a propósito ou, antes, a despropósito de tudo. Fala-se de modas e os seus sorrisos — que lembram os sorrisos fixos de certas mulheres do tablado — acentua-se. A conversação colhe por tema o ultimo e terrificante abalo de terra e as rosi-nhas frescas que são aquelas três bôcas alargam ainda mais as corolas. Por fim, a Luizinha fala do tio Maldonado, que partiu ante-ontem uma perna — e as encantadoras meninas parecem ter acabado de ouvir a mais graciosa das historias...
Perpassou-me hoje pelo espiríto uma tentação sinistra; a dum tríplice assassinio que lívrasse Lisboa do flagelo daqueles sorrisos exasperadores — e, para distrair-me, abri um livro de gravuras e examinei um retrato de Maria Mancini, a morena e ardente sobrinha de Richelieu...
— Devem ser muito estupidas aquelas rapariguinhas — murmurou, ao meu lado, o velho Doutor Russell, que tinha vindo ver o filho da Luizinha — ligeiramente indisposto — e acedera em demorar-se uns minutos naquela assembleia de ociosos. Voltei-me para ele; vi que observava, por cima dos oculos, as tres Graças. E, em legitima defeza do meu sexo, contestei aquela acertada opinião... Terça-feira, 18.
Gilberto disse-me, hoje, interrompendo uma caricia:
— Sabes? Há pouco, antes de aqui chegar, encontrei Luciano e, enquanto apertavamos as mãos, o coração contraia-se-me; lembrei-me de que vinha beijar uma mulher que ele ama... E' uma idéa que me confrange... Eu sou muito, muito amigo dêle... E essa amizade faz nascer como que uma nuvem entre mim e ti...
As alusões a Luciano são agora infaliveis em todas as minhas conversações com Gilberto, que parece ter um prazer cruel em repetir que Luciano me quer verdadeiramente e em ínsinuar que, ao estreitar-se esta nossa ligação, eu já sabia que eles eram amigos intimos — atribuindo-me assim um perversissimo capricho... Estas insinuações ferem, pela sua injustiça; prefiro ser victima duma infamia propriamente dita a saber que em espirito alheio se gerou uma suspeita injusta a meu respeito... Protesto, revoltada, contra as crueldades que brotam da boca ardente, satírica, de Gilberto, mas a minha agitação transmuda-se, como por magía, em submissa brandura — logo aos primeiros beijos dêle, após a discussão...
E sofro sempre. No instrumento delicado, estranho, que é a minha alma, partiu-se já a corda heroica do entusiasmo; mas subsiste ainda intacta, desgraçadamente, a corda mais susceptivel, mais ténue, mais melindrosa, aquela que corresponde ao coração e, pianissimo, o faz vibrar...
Sabado, 29.
São onze horas da noite. Depois dum dia particularmente triste como foi para mim o de hoje — em que tive, pela milessima vez, ensejo de aprender toda a extensão do infortúnio feminina — acabo de atirar pela janela fóra um livro, que não cheguei a ler todo. Mas indignou-me aquela acentuada má fé contra a mulher, a eterna sacrificada, a victima do homem, a débil espiadora dos erros e do egoismo masculinos...
A Maria Alice veio vêr-me esta manhã, e esteve aqui cerca de hora e meia. Vinha encantadora, apesar de que as magoas lhe têm maltratado a frescura e vão fazendo perder o viço ao seu rosto fino. Como não é rica, o bom gosto e a elegancia suprem, sem desvantagem, a opulencia no seu trajar, e os seus olhos castanhos, embora fatigados pelas lágrimas que vertem diariamente, não perderam ainda de todo a expressão doce dos dias de paz e de ilusão.
Falou muito, desabafou, chorou. E estou certa de que me oculta, por um pudor incompreensivel, grande parte das torturas que o marido lhe inflige. Diz-me que ele é violento e ingrato, que a trata com rispidez e troca os seus encantos delicados pela baixa grosseria duma cozinheira tronchuda, vexando a esposa quasi publicamente... Mas cala muito, ainda, eu bem o sei. Quem me diria, há sete annos, quando se casaram, que êsse homem amavel e alegre, de excelente aparencia e impecável trato, viria a conduzir-se tão infamemente para com a minha pobre amiga, alminha terna exsudando virtude?
E, baixando a voz, a pobrezinha confessa-me, envergonhada, que o ama ainda, que amará sempre aquele algoz vilíssimo. Pois não é ele o pai do lindo bébé rosado que, por momentos, lhe faz esquecer a sua imerecida desdita? Não foi pelo seu amor fugaz que ela trocou os mimos e a tranquilidade da casa paterna, não foi para ele que se adornou, em certo dia memoravel, com um véu e uma grinalda, tão alvos e tão puros como ela?!
Saí, pelas quatro horas. Matilde, a loira costureirinha que tanto a meu gosto trabalhou alguns dias cá em casa, não veio ontem, como tinha prometido. De volta da Baixa, após algumas compras, lembrei-me de procurá-la e recordar-lhe a nossa combinação. Fui a uma rua estreita e feia; subi, por uma escada escura e imunda, a um quarto andar meio arruinado. Bati, preguntei por Matilde e, aberta a porta, vi, em meio dum acanhado compartimento, a avó, megera antipatica, congestionada, que invectivava a neta ausente, vociferando adjectivos mal soantes. Três mulheres e um homem, que deviam ser vizinhos, rodeavam a velha, entrecortando as exclamações dela com indignados comentarios sôbre a fuga da pequena. Porque Matilde tinha fugido, na véspera á noite, como namorado — um chauffeur bem parecido — e deixára à avó um bilhete explicando a fuga, em gatafunhos inverosimeis, que uma vizinha, a custo, soletrára. A velha era ruim, exploradora, insuportavel; o namora do, modelo de ternura e de assiduidade, conseguira um lugar vantajoso no Porto e não a queria longe dêle. Duas razões poderosas para a desviarem do caminho da virtude .. Haviam de casar «não tarda- ria muito» — assegurava, num instintivo esboço de desculpa.
Mostrou-me a velha o bilhete, trémula e praguejante, mas sem uma lágrima nos olhos duros, verdes, circundados por um labirinto de rugas, enquanto as vizinhas secundavam a ira da harpía, classificando de ingrata e descarada a doce, inexperiente Matilde. Desci a escada, confrangida. Pobre rapariga! Dezassete anos humildes, laboriosos, feiçõesitas mimosas, olhos claros um pouco á flor do rosto, mas meigos, expressivos. Ainda há oito dias me tinha dito, candidamente, que o seu maior desejo era casar, montar um pequeno atelier e convencer a avó a voltar para a terra, onde tinha familia, duas geiras e um pardieiro. E, afinal, pôde mais a fatalidade do que os seus honestos designios!
Crédula, apaixonada, cedeu ás exigencias do namorado e com êle partiu para longe, sem saudades da velha desabrida e sugadora que, depois de tanto a mortificar, a apóda agora de desvergonhada... E o crime da pobre Matilde foi o de sofrer, amar e confiar... Profundamente enamorada e farta duma atribulada vida, não soube fazer calculos, não fixou ao seu amor um preço legal — o casamento — e entregou ao Acaso, incarnado para ela no airoso chauffeur agasalhado em peles, o seu corpinho miudo, ainda ontem imaculado, e a sua alma infantil, que os desenganos vão envelhecer precocemente, dentro em pouco. E sou eu, creio-o bem, a unica pessoa que a lamenta...
Segunda-feira, 31.
A nuvem de que Gilberto me falou há algum tempo, paira, na verdade, entre mim e ele. Sinto-a, vejo-a oscilar, cinzenta e turva, envenenando o prazer e arrefecendo a alegria. Por vezes, parece atenuar-se, adelgaçando-se, evaporando-se; é quando no cerebro de Gilberto ou no meu surge a reflexão de que nenhum dos dois suspeitava, ao conhecermo-nos, do lugar escolhido que Luciano ocupava e ocupa no coração do outro. Se não houve intenção malevolente, como póde existir a culpa de que nos acusamos?!
Mas, apesar deste pensamento breve, ilusóriamente consolador, que de quando em quando vem suavisar a perturbação dos nossos espiritos, a lembrança de Luciano pesa sobre nós, amortece-nos o entusiasmo e amargura os nossos beijos, inevitavel e irremediavelmente...
Tenho, mais do que nunca, o pressentimento de que sofrerei dentro em pouco o abalo moral dum rompimento com Gilberto, porque adivinho que a sua amizade por Luciano mo arrebatará. Gilberto já está convencido de que eu sou, na realidade, sómente uma dedicada amiga de Luciano e esse facto é um tanto animador; não compreendo, contudo, o estranho prazer que ele parece sentir em pronunciar a cada instante tante o nome do seu amigo, sabendo que essas alusões me magoam infinitamente...
— O que não sucedeu ainda, sucederá um dia — disse-me, ontem. — A simples amizade que, segundo dizes, cultivas com Luciano, cederá, mais tarde ou mais cedo, o lugar ao amor... Quando chegar esse momento, não deixes de fazer-me as tuas confidencias...
— Esse rebaixamento dum sentimento puro não se dará nunca! — retorqui. — E' já tarde para enveredar por um caminho que, decerto, nos traria, a mim e a ele, o arrependimento, logo seguido pelo tédio...
Gilberto parecia pensativo e tornou, a meia voz:
— Ouve. No teu interesse por mim não haverá um vislumbre de espiritualidade?
— Há, sim. Nas minhas afeições existe sempre o que quer que seja de espiritual, de docemente idealista...
E a voz dele, muito perto de mim, segredou :
— E's a mulher mais deliciosamente complicada que eu conheço...
Janeiro, Sexta-feira, 4.
Fui ontem, antes de visitar Luciano, consultar o Dr. Russell, que me tranquilisou sobre a origem — insignificante — das minhas frequentes nevralgias. Enquanto esperava a consulta, aninhada a um canto da sala de entrada, mãos escondidas no regalo, puz-me a observar os outros clientes. Ao meu lado, uma juvenil estudante, ar anémico, livros perto de si, movia, para um e outro lado, uns olhos claros, sonhadores. E naquele olhar transparecia a enternecedora confiança que aos dezaseis anos se tem sempre num futuro côr de rosa, adivinhava-se a esperança ingénua de justas, legítimas alegrias.
Comovi-me ao examinar aquela creança encantadora. Lembrei-me de que talvez os lindos projectos que a sua alma tenra vai afagando, segundo presumi, não venham nunca a realizar-se — porque assim é a vida, hidra voraz, insaciavel, que, uma a uma, devora as nossas ilusões...
Havía um homem banal, com aparencia de negociante rico, que conversava sobre cambios com um sujeito ético e triste. Uma mulher ainda nova, em frente, deu-me que scismar. É impossivel ser-se mais completamente desgraciosa do que era aquela creatura de queixo alongado, olhar mortiço e palpebras enrugadas. Nem ao menos um certo gosto no vestir, um ligeiro sentimento de coquetismo a auxiliavam. Aquele vestido azul-escuro poderia muito bem estar feito e vestido com mais arte; o chapéu, de veludo negro, pendia-lhe exageradamente para a nuca, deixando a descoberto uma testa horrivel — e o cabelo baço, corredio, mal se via, sumido debaixo da aba larga.
Tive pena daquela rapariga tão completamente despojada de atrativos...
— Nesta pobre mulher — disse comigo, observando-a a furto — nenhum homem demorou ainda um olhar de desejo. Está condenada a desconhecer eternamente a tentação das palavras de amor e a sua bôca esteril, ressequida, nunca saberá dizer a impressão dum beijo apaixonado...
Entrou um homem de meia idade, rosto rubicundo, que apertou a mão á mulher feia.
— Como tem passado? Seu marido ?
— Está bem, obrigada.
— E o morgadinho?
— Vai bem, felizmente.
— Muito estimo. Tudo ás mil maravilhas, não?
Aquele Manuel é uma joia, isso sei eu...
— E é verdade. Não pode ser melhor para mim; preocupa-se mais com a minha saude do que com a dele... E para o filho? Não vê outra coisa!
E sorria, desvanecida.
Sou, na verdade, uma fraca observadora. Tinha-me enganado completamente. Aquela desageitada rapariga é feliz, tem um excelente marido e um filho muito amado...
Afinal, que inutil pretensão esta de diligenciar esquecer as perturbações da minha vida, tentando prescrutar, analisar as da vida alheia! Como se o egoismo causado pela dor, pela insatisfação ou pelo desanimo não tornasse discutiveis o interesse, a piedade que julgamos sentir pelos males dos outros... Porque se eu profundar o que se passa em mim, com verdade, com justeza, vejo que esta curiosidade doentia com que procuro ler nas feições dos que me rodeiam e se me afiguram sofredores, a especie de magua que creio pungi-los e a minha compaixão por tormentos autenticos ou imaginários do próximo, são apenas o simples reflexo do meu desconforto intimo!
Luciano anda melancolico, apreensivo. Depois duma conversação de hora e meia, deixei-o, cabisbaixo e de olhar sombrio, novamente mergulhado no trabalho que fui interromper. E a minha tristeza era profunda tambem, ontem, perto das seis horas, quando saí do seu gabinete, após o chá que tomamos juntos — com os corações doloridos e as bôcas emudecidas. Tive desejos de voltar atraz, abraçá-lo e afirmar-lhe que a minha ternura por ele é infinita; mas lembrei-me de que a palavra ternura por si só não o contentaria e de que não poderia, sem mentir, falar-lhe em amôr...
Desisti, enervada, esmorecida. Era já noite e fazia frio. Subi para uma carruagem vazia que ia passando; colei me a um canto, contra o forro acolchoado, e chorei, pensando que surgem, de quando em quando, na vida, complicações desconcertantes que nos roubam a calma e nos desnorteiam o espirito, amargurando e inutilizando as nossas melhores intenções...
Domingo, 16.
Festejou-se ontem, em casa da Luizinha, o aniversário do seu casamento, um dêsses casamentos que a paixão não aquece mas que nem a maldade nem a intolerancia envenenam. Uma mocidade fresca, vaprosa e alegre enchia as suas salas, que uma claridade loira inundava em reflexos macios.
Ergui-me, de repente, entristecida até ás lagrimas, e afastei-me. Porquê? Não sei, não sei dizer... Introduzi-me na saleta proxima, com o meu passo ligeiro, dançante, que já um poeta cantou; alonguei-me num divam e dispuz-me a meditar sobre os inconvenientes da vida duma divorciada... Mas, á minha direita, por traz dum biombo de seda de ramagens, uma voz de homem, um tanto velada, e uma voz cantante, murmurante, de mulher, distraíram-me de reflexões egoistas:
—Que chusma de idiotas, lá fóra!... Aqui podemos conversar.
— Sim, está-se bem aqui...
— Acho-te hoje melancólica... Que tens?
— Nada...
— Olhas para mim com uma insistencia... Que vês nos meus olhos?
— Vejo-me a mim própria, como num espelho...
— É uma evasiva.
— Não, não é. E tu que vês nos meus?
— Nada, absolutamente. São tão escuros! Mas têm um brilho singular...
— As únicas duas coisas que as tormentas da vida me pouparam, são o brilho dos olhos e a frescura da bôca...
— E a frescura do coração?
— Oh, o coração! Partiu-se um dia, meu amigo. Mas não imaginas de que funda ternura são ainda susceptiveis os seus destroços.
— Ah, sim... Eu sei que amaste outro homem. Tenho, até, frequentemente, a curiosidade de saber como o amaste. É pena... No paraizo deste nosso afecto vive a serpente do ciume, do mais cruel dos ciumes. O ciume do passado...
Levantei-me e saí. Ouvi um ai de choro, um ai de uma alma de mulher que se debate dentro do circulo de ferro do Irremediavel. Deslizei pelo corredor e fui ter a uma varanda que dá para o pequeno jardim da Luizinha. O luar estava lindo; lembrei-me de Afonso Lopes Vieira:
A dor e a graça de amar,
O Sonho e a flôr do desejo,
Que mais são que um ai, que um beijo,
Uma lágrima, um luar?
Eu sei quem eram, sei quem são os dois entes sofredores cujas almas se combatiam docemente, doloridamente, ontem, á noite, naquela saleta retirada. Mas nem mesmo a este caderno que só eu leio confiaria os seus nomes...
Segunda feira, 17.
Ainda ante-ontem passei a tarde com Gilberto e já hoje tenho um desejo louco de o ver novamente... E penso, penso sempre no melindre da minha situação; desde que me permiti a liberdade de cultivar, embora a ocultas, certas afeições ilegitimas, deixei de ser uma mulher honesta, segundo as leis da sociedade . A verdade é que, se meu marido houvesse sido correcto, fiel, não estariamos divorciados como estamos; eu ainda o amaria como o amava no dia em que lhe dei o primeiro beijo e não teria sido estreita da pelos braços doutro homem... Mas assim não foi... e, hoje, que irreverencias formidaveis pratico, furtivamente, contra os principios que um oitavo de humanidade respeita, que outro oitavo desrespeita sem rebuço e os restantes seis oitavos fingem respeitar!...
Pecadora... Sim, sou uma pecadora. Mas, meu Deus de ternura e bondade, seria então necessário, para bem te servir, que eu fosse insensivel ás afrontas dum marido pouco escrupuloso? Que arrancasse o coração e aniquilasse as justas aspirações da natureza, renunciando a novos afectos?
Se, em vez de me deixar arrastar pelos impulsos dum temperamento insubmisso, eu fosse calculadora e ponderada, e contraisse um segundo matrimonio, por exemplo com o detestavel M. de S., que mais duma vez mo propôz-é certo que determinadas pessoas me censurariam acremente, acusando-me de ultrajar a religião e Deus sabe se eu sou ou não uma crente sincera! — mas quantas outras bôcas louvariam o meu bom senso e o meu tacto, por ter realizado sem escrupulos a venda legal de mim mesma!...
Uns e outros criticam a minha situação de mulher nova, bonita e livre. Sei que se murmura de mim... Como satisfazer toda essa gente? Como tapar a boca maldizente à humanidade? Oh, o problema da minha vida!
E para que me divorciei, afinal? Tenho sido, desde então, mais feliz? Não... Valem acaso mais do que o meu ex-marido os homens que tenho conhecido depois dele? Não valem... Mas eu nada sabia da vida... E julgava o mundo infinitamente melhor...
Gilberto prende-me. Tudo nele me agrada, além do seu espírito agudo, por vezes tão injusto e cruel: até as rugas precoces que lhe descem do angulo exterior dos olhos, sulcando-lhe a pele clara e fina como a duma mulher, até a testa espaçosa, que uma prematura calvicie principiou já a desadornar... Mas a nuvem que as nossas consciencias alarmadas criaram e avolumaram, continua oscilando entre nós dois...
Sexta-feira, 11.
Acordei alegre, hoje. Afinal, a liberdade é uma bela coisa e eu sou uma mulher livre. Preparei-me para saír pelas três horas; introduzi-me num vestido de veludo, estreito como uma bainha, coloquei nesta pobre cabecita, destinada, por dentro, a exgotar-se em raciocinios inuteis e, por fóra, a sofrer a tirania da moda, uma toque que me cobre quasi completamente os olhos e me provoca, geralmente, enxaquecas. Calcei as luvas, puz debaixo do braço o objecto informe que substituiu o antigo guarda-chuva e a que damos, ainda, pela força do hábito, êsse nome e saí, leve como uma andorinha...
— Que feia! — rosnou uma saloia velha e tisnada, ao passar por mim.
— Que linda! disseram dois dandys, que conversavam á porta duma tabacaria... E eu sei que ia bonita e perturbante, flor de amor, feixe de nervos, que ontem chorava e hoje sorri...
Fiz compras, paguei caro algumas bagatelas de que não precisava. Necessito desperdiçar dinheiro nos dias em que não desperdiço coração... Encontrei o Chico Macedo, mais gordo, mas ainda esbelto; está radiante porque vai casar com uma mulher rica e feia, que o adora. Ser rico, é tudo para êle. Feliz Chiquinho! E infeliz mulher...
Meia noite.
Tenho um novo pretendente, amigo de meu pai. Este têm idéas honestas e burguêsmente pacatas. É viuvo, rico e quere casar... para que as governantes o não roubem. Acho-o um excelente homem e, não sei se por isso mesmo, insuportavelmente fastidioso.
Esta gente cança-me. Sinto a quasi irresistivel tentação de lhe bradar insolencias contundentes. Antes, mil vezes, amar e não ser amada, não obstante todas as magoas e contrariedades que nessas circunstancias podem surgir, do que sê-lo, embora sinceramente, por homens que não nos interessam e não conseguem levar-nos a retribuir-lhes o afecto que sentem ou dizem sentir por nós... Um, dois, três, quatro, cinco... Conto bem sete ou oito homens que me têm feito a côrte, uns com fins respeitaveis, outros com intuitos culposos, sem que ao de leve me atravessasse o espírito o propósito de lhes corresponder... De que vale a uma mulher ser assim apetecida, se geralmente lhe provêm daí o tédio do desinteresse, a dor causada pela ingratidão, ou o desespero de colisões tremendas em que o corpo, o coração e a alma se contorcem, se consomem, sem que haja uma solução libertadora para esses conflitos ignorados?
Sabado, 12.
Vejo no jornal a notícia de que Gilberto está doente e admiro-me de que não me avisasse. Julgo que se trata duma indisposição leve e, como deviamos encontrar-nos amanhã, êste obstaculo á nossa entrevista contraria-me imensamente...
A minha gata aproxima-se, ondeante e de olhar meigo. Vamos daqui a pouco brincar juntas. Eu brinco ás vezes como se tivesse dez anos e, nesses instantes de infantil despreocupação, as misérias do mundo — quadros trágicos dum cinema gigantesco — desaparecem no «écran» nebuloso do meu cerebro...
Luciano tem estado tambem doente, mas eu soube que já se encontra quasi bom. Como não posso ir vê-lo por estes dias, escrevi-lhe esta manhã uma carta, na qual, pela centessima vez, lhe asseguro a minha amizade, em palavras brotadas espontaneamente da minha pena sincera. Para o animar, tracei nessa carta algumas frases travessas, em que talvez brilhem os restos do espírito azougado da Fausta doutros tempos, daquelles tempos em que a ambição duma felicidade durável fervilhava na minha cabecinha de amorosa inexperiente...
Pobre amigo! A minha carta, sem duvida, o distraírá um tanto do enfado da sua convalescença.
Segunda-feira, 14.
Está diante de mim uma carta de Gilberto, estranha resposta ao bilhete em que ante-ontem lhe demonstrei a minha saudade e o meu desejo de o vêr novamente são e alegre.
Que carta! Desorientou-me e fez-me chorar; tenho ainda os olhos húmidos ao escrever esta página do meu caderno. Gilberto diz-se ligeiramente neurasténico, combalido pela influenza e indignado «pela minha perfidia». Participa-me que estava junto de Luciano quando este recebeu a minha carta de há dias e que, apesar de não ter podido alongar o mais rápido golpe de vista sobre o conteudo dessa carta, compreendeu, pela evidente alegria, pelo claro desvanecimento de Luciano ao lê-la, que naquelas seis paginas compactas não poderia haver só palavras de simples amizade.
Nestas linhas agressivas e iniquas que estão na minha frente, Gilberto pôz inteiramente de parte o seu costumado tom irónico. «A senhora não tem consciencia — escreve — ou, se a tem, está desfeita em não sei quantos pedaços... Soube iludir as minhas primitivas desconfianças, que eram, apesar de tudo o que então me disse, absolutamente justificadas; engana, sem remorsos, um homem que a adora e, provavelmente, vangloria-se de ter á sua escolha e conforme o seu capricho, dois homens como eu e Luciano... Renuncío a todas as satisfações que possa dar-me, porque não desejo suplantar no seu coração, se é que o têm, um grande amigo meu que lhe merece a si todo o carinho!»
A nossa alma habitua-se á dor como certos animais de carga ás chicotadas que lhes flagelam o dorso e o ventre; dir-se-ha pouco sensivel, em certos momentos, ás desoladoras surprezas que se lhe deparam pela existencia fóra. Vejo agora quanta razão de ser tinha o meu pressentimento de que a amizade de Luciano poderia mais em Gilberto do que os meus beijos...
Sinto-me comovida pela lealdade deste homem para com o seu amigo. E as lágrimas que me arrazam os olhos são de enternecimento, apesar de que as falsas conclusões dêle me magôam cruelmente...
Ainda há poucos anos, um caso como êste, na minha vida, far-me-ia revoltar, correr em busca de Gilberto e repetir-lhe, energica e indignadamente, o que já por mais duma vez disse sobre a minha situação para com Luciano. Hoje, a minha pena é, por assim dizer, resignada, passiva, e apenas me leva a escrever-lhe uma carta em que, repelindo as suas acusações e afirmando-lhe a minha inteira sinceridade, lhe confessarei o desejo duma explicação, que julgo devêr dar-lhe de viva voz.
Terça-feira, 15
Encontrei esta tarde, numa rua da Baixa, a Helena de C., que está em Lisboa após três anos de ausencia na provincia, mais gorda, vestindo com simplicidade e tendo no rosto os indicios duma absoluta paz de alma. Mostrou saudades do marido, que anda em viagem de negocios, falou-me nos dois filhos pequenos, que deixára em casa, e discreteou, em seguida, sobre coisas banais.
A Helena, de quem eu nunca fui propriamente amiga, causava-me admiração, em solteira, pela originalidade estroina das suas idéas e da sua indumentária. Incorrigivel em «flirtes», tinha, apesar disso, atitudes másculas, que surpreendiam numa tão linda figura feminina e discutia, ás vezes, altos problemas sociais, com o mesmo entusiasmo doutras mulheres quando discutem modas ou se inebriam na volupia da maledicencia... Eu reprovava secretamente aquelas excentricidades. E recordo-me de que aplaudi in petto o gesto cauteloso duma senhora íntima da casa do tio Mauricio — onde nos reuniamos todos — que deixou de levar lá as filhas, pouco mais novas do que eu, bonitinhas e triviais, no temôr de que se contaminassem com a frequencia daquela revolucionária de rosto de anjo e colarinho de homem — que falava de feminismo com varões outoniços e morria por um «flirt» com todos os moços, bem parecidos, que encontrava...
Um dia, a Helena, ao subir a ladeira da Vida, tropeçou num átomo de sentimento, deixou cair a bengala e as idéas que a celebrisavam e ficou presa pelos laços do amor a um excelente rapaz, cuja convivencia prosaica e assisada lhe afugentou para sempre do espirito as extravagancias postiças que o povoavam. E é hoje, de todo perdidas as suas veleidades de independencia, a esposa submissa, comedida, dum homem de bom coração e de bom senso — a mulher rainha do seu lar, que se limita a espreitar a vida exterior pela nesga do espesso cortinado da sua virtude...
A mim, tão simples, ainda que travessa, na minha primeira mocidade, perturbam-me hoje todos os problemas de sentimento e ferventes revoltas contra as convenções agítam o meu espirito. E as duas criaturinhas que o zêlo materno desviou do convivio da complicada Helena dão que falar agora, ambas tambem casadas, pela sua frivolidade e pelo seu impudor...
Quarta-feira, 16
Giacomo, engenheiro siciliano, um meu ligeiro flirt de há quasi oito anos, está de novo em Portugal. Soube, pelo tio Mauricio, a minha direcção e talvez a historia do meu desastroso casamento e escreveu-me uma carta expressiva e quente. Mas a sua demonstração de interesse deixou-me fria, tão fria como esta tarde agreste dum Janeiro desabrido... A recente injustiça de Gilberto deportou-me para não sei que paragens setentrionais e sómente a doce recordação de Luciano vem temperar, de espaço a espaço, o gêlo desconsolador da minha alma...
Gilberto ainda não respondeu á minha ultima carta. Vou esta noite vizitar meus pais, a ver se consigo distrair-me e dominar, durante algumas horas, a excitação nervosa que principia a apoderar-se de mim...
Quinta-feira, 17
Já recebi a resposta de Gilberto, que me diz estar disposto a encontrar-se comigo, uma vez que eu o desejo, mas achar inutil qualquer explicação, visto que tenciona «não se deixar iludir de novo por mim».
Não obstante estas palavras em que a injustiça prevalece ainda, a carta deste homem singular não só é muito menos áspera do que a primeira, como tambem a contradiz... «Nunca tive, no fim de contas, a intenção de ofendê-la e muito menos me encontro com o direito de a censurar. Trata-se, apenas, duma atitude que a consciencia me impõe, o que não quere dizer que não ache a minha amiga encantadôra e não sinta por si um verdadeiro interesse... Tenho muita, muita pena de que as circunstancias me forcem a cortar uma intimidade que só me daria prazer, se não fosse a complicação de ordem moral que bem conhece e que, creio-o absolutamente, do mesmo modo a tem perturbado a si.»
Original homem este que nega e dissimula as suas fraquezas, as suas paixões, e que trái, por fim, uma alta sensibilidade, mascarando-a inábilmente por traz das palavras medidas, calculadas, que o seu falso cepticismo lhe inspira!
Para quê dispender mais tempo e inquietar ainda mais o meu espirito, insistindo absurdamente na discussão dum assunto que, na realidade, não é discutivel? Gilberto procede com nobreza trocando as minhas caricias pela paz da sua consciencia. E, sem que eu saiba porquê, dissipou-se em mim, de subito, todo o apetite de voltar a falar-lhe. Não sei se esta minha disposição durará muito... mas, no entanto, vou escrever-lhe, a dizer que desisti de tornar a vê-lo. E julgo finda de vez a aventura...
Mais uma página da minha vida — lida e rasgada; mais um capítulo da minha historia — passado e vivido... E que incidentes novos, breves alegrias e longos tormentos me preparará ainda o Destino? O eterno, desesperador ponto de interrogação que se esboça no porvir de cada um dos entes inúmeraveis que se agitam, lutam e sofrem neste mundo, nunca me pareceu tão misterioso e implacável como agora, na minha melancolia de vencida da vida, no meu doloroso cansaço de amorosa estéril e desafortunada...
Terça-feira, 23
Esta tarde, em casa do tio Mauricio, tive um momento de verdadeira angustia. Tudo nervos, finalmente... Pobre da mulher nervosa, delicada harpa-cólia cujas cordas subtilíssimas vibram com intensidade á mais leve aragem de jubilo ou tristeza que por elas perpassa!
Três ou quatro pessoas, na sala, falavam sobre trivialidades, mas, na saleta contígua, os dedos prodigiosos de M. de M. tiravam do velho Steinway uns sons impressionantes. Era um impromptu de Schubert, em si menor, de frases caprichosas e passagens cromáticas, que desde a minha infancia conheço. Tocava-o frequentemente a minha querida mademoiselle Dupont, que já não existe, nublando a minha habitual alegria e a minha sensibilidade numa acentuada impressão de tristeza. Lembro-me distintamente de que, sempre que o ouvia, as minhas mãozitas débeis largavam o livro de contos maravilhosos ou a boneca de olhos de esmalte e cabelos de estopa que sustinham, numa abstracção completa de tudo quanto não fosse aquela musica enervante. Um dia, depois de a têr ouvido, abri um volume de versos escolhidos, que os meus olhos infantis percorreram, curiosos. Li um pouco mais de metade de «A andorinha ferida», de Julio Diniz, e fui convulsionada por um ataque de chôro. Só a mademoiselle conseguiu aquietar-me, acariciando-me e afirmando-me que os queixumes — expressos em verso-da pobre avezinha, não passavam duma fantasia de poeta e que, por consequencia, il ne fallait pas y songer...
E, há cerca de duas horas, escutando mais uma vez esse impromptu, com a dupla recordação de Gilberto e Luciano fixa no espirito e perto de mim o sussurro duma conversação banal, a custo dissimulel as minhas lágrimas rebeldes...
Quinta-feira, 25
Como em todas as minhos crises de desalento, o instinto leva-me a recorrer ao afecto de Luciano. Apesar dos momentos dificeis, dos relampagos de febre que perturbam sempre toda a amisade amorosa, que preciosas consolações tenho colhido na inteligencia calma e nobre daquele excelente amigo!
Tenho saudades de Gilberto, ou, antes, das suas caricias. Mas penso, contudo, que se ele, em vez de se apartar de mim, tivesse demonstrado egoismo e autoridade, impondo-me um rompimento com Luciano, eu não teria ânimo de trocar uma amizade segura por um amôr duvidoso, substituindo uma nascente inexgotavel de terno conforto pela chama trémula duma paixão em verdade repreensivel e mais do que provavelmente passageira...
Sabado, 27
Estou recordando, ainda impressionada, a minha sensação de ontem á noite. A viela imunda, sinistra, alongava-se até um pequeno largo escuro, de altas paredes humidas, que o tempo escalavrou, salpicando-as de manchas esverdeadas. Aqui e ali, recantos negros, sombras estranhas que sugerem horror... A atmosfera pesada daquele bairro abjecto tornou-se-me insuportável. E, arrependida da fantasia que me levara, vestida de escuro, na cabeça um largo chapéu que mal deixava entrevêr-me o rosto, a visitar aquelas ruelas infames, semeadas de homens de olhar oblíquo e aparencia repelente, e ladeadas de prostitutas bocejando, sentadas e insensiveis ao frio, ás portas das suas lojas, segurei-me ao braço de Luciano, quasi sufocada por efluvios nauseantes que pareciam emanar daqueles entes lamentaveis...
Batiam as onze horas numa igrejinha longinqua. Toda a tradição sangrenta do velho antro, povoado pelas mais intimas mercenárias do amor e pela pior especie de rufiões, toda a tragédia vivida nas baiucas daquele labirinto de crime, reconstituí, compungida. Luciano, como é sentimental e delicado, não se sentia em melhor disposição...
— Estes passeios não são para nós, minha amiga — disse-me, nervoso — Vamos embora, vamos embora já...
Fugimos dali a passos largos e só respirámos fundo na primeira rua honesta que encontrámos...
Como é horrivel aquele meio! O luxo e a elegancia aristocratizam o vício, perfumam, dissimulam, por vezes, a decadencia moral... Mas a miséria depravada, a rudeza espontânea dos instintos, o vestigio do golpe traiçoeiro, não molestam apenas as almas impecáveis; ferem, tambem, a sensibilidade dos pecadores requintados, sensibilidade exacerbada, que não suporta êsses aspectos inferiores e brutais...
Domingo, 28
Vi ontem, á tarde, de relance, contornando uma es- quina, o meu ex-marido. E toda a noite pensei no que poderia ter sido a minha vida se, menos cega pelo orgulho e mais indulgente pelas fraquezas dos outros, eu não tivesse exigido a anulação, perante a lei, do meu casamento... Só hoje, que aprendi a observar o mundo e os homens, hoje, que a experiencia criou em mim uma dolorosa perspicácia, compreendo que é melhor, incomparavelmente melhor, perdoar as faltas alheias, por mais graves que sejam, do que necessitar que os outros nos perdõem aquelas que praticamos...
Foi com indiferença que vi passar ao longe o homem a quem, por capricho da sorte, couberam as minhas primeiras caricias tão puras, tão desartificiosas!...
Em meio de tantos raciocinios desoladores, que desoladora é a prova de que todo o amor humano, ainda o mais fogoso e o mais profundo, esfria e morre como tempo ou com o afastamento!...
Há na vida horas tristes em que a nossa alma se sente só, inteiramente só, não obstante os mil protestos de afecto, interesse e ternura que cáem sobre nós, em lisongeiro dilúvio... Atravesso neste momento uma dessas horas em que o único refugio da minha alma é a minha alma... Sofro desde que pela primeira vez mergulhei na vida e dêsse penar nasceu esta amarga filosofia, filosofia de mulher garrida, escrava inquieta do Amor.
Para afugentar estas crises de desânimo, tenho cultivado as artes, praticado o bem e tentado refugiar-me na Religião. Mas, como artista, os meus talentos são infimos e a caridade — que eu considero um dever moral de todos aqueles que conhecem as agruras da miséria propria — não ocupa exclusivamente o meu espirito e muito menos desde que, algumas vezes, uma ingratidão malévola e consciente me tem ferido...
A Religião? Oh, eu creio, eu creio! No entanto, não logro sufocar as minhas tentações mundanas e, irresistivelmente, peço a Deus que me anime o coração com a ardencia do amor profano — em vez de lhe pedir que me inunde o espírito com a doçura infinita do amor divino...
Fevereiro, sexta-feira, 2
Admiro-me, hoje, de ter chegado a supôr que esqueceria facilmente Gilberto. A verdade é que não posso libertar-me dos pensamentos obsecantes que para ele me impelem. Soube interessar-me profundamente, soube prender-me; havia entre mim e ele, apesar dos nossos pequeninos duelos de ironia, de alfinetadas reciprocas, não sei que atracção mutua, que inconfessado e intimo equilibrio.
E quem sabe se, apesar de tudo, voltará ainda a refulgir a centelha rubra que de nós se desprendia em momentos de comunhão suprema ?...
Domingo, 4
Ólho para o passado quasi com desespero. Comparo a senda florida, esperançosa, que foi a minha vida até aos vinte anos, com a minha vida de hoje, estrada abrolhosa e pulverulenta que vou pisando, afadigada...
E, mais do que nunca, me punge a saudade do que fui, a dôr irremediavel de não poder voltar atráz, agora que sei o que é o mundo e principiar de nôvo a viver...
novela