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Memorias de José Garibaldi/I/X

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X

As planicies orientaes

 

O espectaculo que então se me offereceu á vista, e que admirava pela primeira vez, teria, para ser dignamente descripto, necessidade da penna de um poeta ou do pincel de um pintor. Via ondular na minha frente como as vagas de um mar solidificado os immensos horisontes das — planicies orientaes — assim chamadas porque estão no lado oriental do rio Uruguay, que vae lançar-se no rio da Prata, defronte de Buenos-Ayres, abaixo de Colonia. Era, posso jural-o, um espectaculo cheio de novidade para um homem chegado do outro lado o Atlantico, e sobre tudo para um italiano, nascido em um paiz em que é difficultoso vêr um palmo de terra sem encontrar uma casa ou alguma obra dos homens.

Ali pelo contrario existia unicamente a obra de Deus, tal como havia sahido das suas mãos no dia da creação.

Era uma vasta, uma immensa campina, e o seu aspecto que é o de um tapete de verdura e flores, não muda senão nas margens do ribeiro Arroga, onde se elevam balanceando ao vento encantadores grupos de arvores com folhas luxuriantes.

Os cavallos, os bois, as gazellas, as avestruzes são, á falta de creaturas humanas os habitantes d’essas immensas solidões, que só são atravessadas pelos gauchos, esses centauros do novo mundo, como para dar a entender a essas turbas de animaes selvagens que Deus lhe deu um senhor... Mas esse senhor, como o veem passar os touros, as avestruzes, as gazellas! É a quem protestará primeiro contra a sua supposta dominação: o touro pelos seus mugidos, a avestruz e a gazella pela fuga.

Esta vista fez-me pensar na patria, onde quando passa o austriaco que os opprime, os homens, essas creaturas creadas á imagem de Deus, cumprimentam-no e se curvam, não ousando dar os mesmos signaes de independencia que os animaes selvagens dão á vista do gaucho.

, até quando permittireis tão grande aviltamento da vossa creatura!?

Deixemos o velho mundo, tão triste e aviltado, e voltemos ao novo, tão joven, e tão cheio de esperanças!

Como é bello o cavallo das planicies orientaes, com os seus jarretes estendidos, com as ventas fumantes, com os seus labios que nunca sentiram a friesa do aço! Como respiram livremente debaixo do contacto da sua clina e juba, os seus flancos que nunca foram apertados pelo joelho dos cavalleiros, nem ensanguentados pelas suas esporas! Como é soberbo quando reune, chamando pelos seus rinchos a sua horda de eguas dispersas e que verdadeiro sultão do deserto, evita, fugindo em sua companhia, a presença dominadora do homem!

Oh! maravilha da natureza! Milagre da creação! Como heide exprimir a emoção que á vossa vista experimentou esse corsario de vinte e cinco annos, que pela primeira vez estendia os braços para a immensidade.

Mas como esse corsario estava a pé, nem o touro nem o cavallo o reconheciam por um homem. Nos desertos da America o cavallo é um complemento do homem, e sem o saber, o ultimo dos animaes. Primeiramente pararam estupefactos pela minha vista, mas bem depressa desprezando sem duvida a minha fraqueza, aproximaram-se de mim a tal ponto que sentia o rosto humedecido pela sua respiração. Ninguem deve ter receio do cavallo, animal nobre e generoso; mas todos devem desconfiar do touro, animal dissimulado e traiçoeiro. As gazellas e avestruzes depois de terem, como os cavallos e touros, mas mais circumspectamente, feito o seu reconhecimento, partiram rapidas como a flecha, e chegando ao alto d’um montezinho voltaram-se para verem se eram perseguidas.

N’este tempo, isto é, pelos fins de 1834 e principios de 1835, esta parte do terreno oriental estava ainda virgem de toda a guerra; eis o motivo porque ali se encontrava tanta quantidade de animaes selvagens.