Miloca/II

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Não confiava debalde na Providência Divina a Srª. D. Pulquéria da Assunção. Cinco dias não eram passados quando um acontecimento desastroso veio atar as relações entre Adolfo e a família de Miloca.

Rodrigo era um dos mais extremos partidários da escola romântico-estragada. Ia ver algum drama de senso comum só por comprazer à família. Mas sempre que podia assistir a um daqueles matadouros literários tão em moda há vinte anos, — e ainda hoje —, vingava-se da condescendência a que o obrigava às vezes o amor dos seus. Estava então fazendo bulha um drama em seis ou oito quadros e outras tantas mortes, obra que o público aplaudia com delírio. Rodrigo tinha ido ver o drama, e viera para casa entusiasmadíssimo, a tal ponto que D. Pulquéria também se entusiasmou e ficou assentado que iriam no dia seguinte ao teatro.

Miloca tentou impedir a resolução, mas não teve força para o conseguir. De tarde caiu sobre a cidade uma daquelas trovoadas de que o nosso clima vai perdendo a tradição, e Rodrigo, que em tempo seco preferia andar de carro, com mais razão desta vez mandou vir um e lá foi a família ver a peça da moda.

Não nos interessa saber que impressões trouxeram de lá as duas senhoras; ambas começaram a dormir apenas entraram no carro, e se em Miloca era talvez aborrecimento, em D. Pulquéria era evidentemente cansaço. A boa velha já não era para dramas tão compridos nem paixões tão fortes. Encostou a cabeça e começou a ressonar.

Rodrigo ficou reduzido a um completo monólogo. Elogiava ele o drama, soltava exclamações, interrogava inutilmente as senhoras, e parecia engolfado na idéia de tudo que vira quando sentiu que o carro descambava docemente para o lado esquerdo. O cocheiro passara a casa e dera uma volta com o fim de chegar mais à porta; nessa ocasião as rodas da frente ficaram debaixo e isto produziu a queda suave do veículo.

Os três passageiros deram um grito, que foi o prelúdio de muitos outros gritos, principalmente de D. Pulquéria que misturava atrapalhadamente preces e pragas. Felizmente havia na vizinhança um baile, e os cocheiros de outros carros acudiram depressa para impedir que os burros disparassem. Esta providência era de todo ponto inútil porque os burros, em cujo ânimo parece que também influíra o drama, aproveitaram a queda para dormir completamente.

O cocheiro saltou no chão e tratou de salvar os náufragos; mas já encontrou junto da portinhola que ficara voltada para cima um rapaz desconhecido, que parecia ter a mesma idéia.

Dizer-lhes que esse rapaz era Adolfo seria supor que os leitores nunca leram romances. Adolfo não passara por acaso; estava ali havia muito aguardando a volta de Miloca para ter a satisfação de a ver de longe. Quis a fortuna dele que houvesse desastre do carro. Levado por um duplo sentimento de humanidade e de egoísmo, o bom rapaz atirou-se ao veículo e começou a pescar as vítimas.

A primeira pessoa que saiu foi D. Pulquéria, que apenas se achou sã e salva, deu graças a Nossa Senhora e descompôs em termos brandos o cocheiro. Enquanto ela falava, estendia Adolfo a mão para dentro do carro, para tirar Miloca. A moça estendeu-lhe a mão, e o rapaz estremeceu. Daí a dois minutos saía ela do carro, e Adolfo tirava a terceira vítima, que gemia com a dor de uma ferida no nariz. Miloca apenas teve uma contusão no rosto. D. Pulquéria parece que por ser gorda ofereceu mais resistência ao choque.

Rodrigo estancava o sangue com o lenço; Miloca entrara no corredor da casa, o cocheiro tratava de levantar o carro ajudado por alguns colegas, quando D. Pulquéria, que já durante alguns minutos tinha os olhos pregados em Adolfo, exclamou:

— Foi o senhor quem nos salvou! Ó mano Rodrigo, aqui está a pessoa que nos salvou... Olhe!

— Mas não me salvou o nariz! objetou Rodrigo com mau humor. Pois quê! é o senhor! continuou ele aproximando-se do rapaz.

— É verdade, respondeu modestamente Adolfo.

Rodrigo estendeu-lhe a mão.

— Oh! fico-lhe muito obrigado!

— Devemos-lhe a vida, observou Dona Pulquéria, e creio que lhe seremos eternamente gratos. Quer descansar?

— Obrigado, minha senhora.

— Mas ao menos prometa que há de vir à nossa casa, disse D. Pulquéria.

— Se me permitem essa honra...

— Não permitimos, exigimos, disse Rodrigo.

— O meu serviço não vale nada, respondeu Adolfo; fiz o que faria outra qualquer pessoa. Todavia, se me permite, virei saber da saúde do senhor...

— Da saúde do meu nariz, emendou galhofeiramente Rodrigo; venha que nos dará grande prazer. Deixe-me apresentá-lo a minha filha...

Era tarde. Miloca, menos grata que os dois velhos, ou mais necessitada de descanso que eles, tinha subido havia já cinco minutos.

Adolfo despediu-se de Rodrigo e de D. Pulquéria e foi esperar na esquina a passagem do carro. Chamou o cocheiro e deu-lhe uma nota de cinco mil-réis.

— Aqui está o que você perdeu quando o carro tombou.

— Eu? perguntou o cocheiro que sabia não ter um vintém na algibeira.

— É verdade, disse Adolfo.

E sem mais explicações foi andando.

O cocheiro era sagaz como bom cocheiro que era. Sorriu e guardou o dinheiro no bolso.

Adolfo não era tão pouco fino que fosse logo apresentar-se em casa de Rodrigo. Esperou quarenta e oito horas antes que desse sinal de si. E não foi à casa da família, mas à loja de Rodrigo, que já lá estava com um pequeno emplastro no nariz. Rodrigo agradeceu outra vez o serviço que lhe prestara assim como à sua família na noite do desastre e procurou estabelecer desde logo uma salutar familiaridade.

— Não sabe, lhe disse ele quando o rapaz se dispunha a sair, não sabe como minha cunhada ficou morrendo pelo senhor...

— Parece ser uma excelente senhora, disse Adolfo.

— É uma pérola, respondeu Rodrigo. E se quer que lhe fale franco, eu estou sendo infiel à promessa que lhe fiz.

— Como assim?

— Prometi a minha cunhada que o levaria lá em casa apenas o encontrasse, e separo-me do senhor sem desempenhar a minha palavra.

Adolfo curvou levemente a cabeça.

— Muito agradeço essa prova de bondade, disse ele, e sinto realmente não poder corresponder ao desejo de sua cunhada. Estou pronto porém a lá ir apresentar-lhe os meus respeitos no dia e hora que me designar.

— Quer que lhe diga uma coisa? disse alegremente o comerciante. Eu não sou homem de etiqueta; sou cá do povo. Simpatizo com o senhor, e sei a simpatia que minha cunhada lhe tem. Faça uma coisa: venha jantar conosco domingo.

Adolfo não pôde conter a sua alegria. Evidentemente não contava com tamanha maré de felicidade. Agradeceu e aceitou o convite de Rodrigo e saiu.

No domingo seguinte, apresentou-se Adolfo em casa do comerciante. Ia de ponto em branco, sem que esta expressão se deva entender no sentido da alta elegância fluminense. Adolfo era pobre e vestia com apuro relativamente à sua classe. Estava longe porém do rigor e da opulência aristocrática.

D. Pulquéria recebeu o pretendente com aquelas carícias que as velhas de bom coração costumam ter. Rodrigo desfez-se em solícitos cumprimentos. Só Miloca parecia indiferente. Estendeu-lhe a ponta dos dedos, e nem olhou para ele enquanto o mísero namorado murmurou algumas palavras relativas ao desastre. O intróito foi mau. D. Pulquéria percebeu isso, e tratou de animar o rapaz, falando-lhe com animada familiaridade.

Nunca a filha de Rodrigo parecera tão formosa aos olhos de Adolfo. A mesma severidade lhe dava um ar distinto e realçava a incomparável beleza das suas feições. Mortificava-o, é verdade, a indiferença; mas podia ele esperar mais alguma coisa logo da primeira vez?

Miloca tocou piano a convite do pai. Era excelente pianista, e entusiasmou deveras o pretendente, que não pôde disfarçar a sua impressão e murmurou um respeitoso cumprimento. Mas a moça limitou-se a um gesto de cabeça, acompanhado de um olhar que parecia dizer: “O senhor entende disto?”.

Durante o jantar, a velha e o cunhado fizeram galhardamente as honras da casa. Adolfo ia perdendo a pouco e pouco as maneiras cerimoniosas, conquanto a atitude de Miloca lhe acanhasse o espírito. Era inteligente, polido e galhofeiro; a boa vontade dos olhos e as qualidades reais dele venceram em pouco tempo grande caminho. No fim do jantar era um conhecido velho.

— Tenho uma idéia, disse Rodrigo quando chegaram à sala. Vamos dar um passeio?

A idéia foi aceita por todos, exceto por Miloca que declarou estar incomodada, pelo que a idéia ficou sem execução.

Adolfo saiu de lá mal impressionado; e teria desistido da empresa, se o amor não fosse engenhoso em derrubar imaginariamente todas as dificuldades deste mundo. Continuou a freqüentar a casa de Rodrigo, onde era recebido com verdadeira satisfação, menos por Miloca que parecia cada vez mais indiferente ao namorado.

Vendo que a situação do rapaz não melhorava, e parecendo-lhe que a sobrinha não acharia melhor marido do que ele, interveio D. Pulquéria, não por meio da autoridade, mas com as armas dóceis da persuasão.

— Acho singular, Miloca, a maneira por que tratas o Sr. Adolfo.

— De que maneira o trato? perguntou a moça mordendo os beiços.

— Secamente. E não compreendo isto porque ele é um excelente moço, muito bem-educado, e além disso já nos prestou um serviço em ocasião séria.

— Tudo isso é verdade, respondeu Miloca, mas eu não sei como quer que o trate. Meu modo é esse. Não posso afetar o que não sinto; e a sinceridade creio que é uma virtude.

— É também a virtude do sr. Adolfo, observou D. Pulquéria sem parecer abalada com a sequidão da sobrinha; devias ter reparado que é um moço muito sincero, e eu...

Aqui parou D. Pulquéria por um artifício que lhe pareceu excelente: esperou que a curiosidade de Miloca lhe pedisse o resto. Mas a sobrinha parecia completamente ausente dali, e não deu mostras de querer saber o resto do período.

D. Pulquéria fez um gesto de despeito, e não disse palavra, enquanto Miloca folheava os jornais em todos os sentidos.

— Não acho casa, disse ela depois de algum tempo.

— Casa? perguntou D. Pulquéria admirada.

— É verdade, minha tia, disse Miloca sorrindo, eu pedi a papai para que nos mudássemos daqui. Acho isto muito feio: não faria mal que morássemos em algum bairro mais bonito. Papai disse que sim, e eu ando a ler os anúncios...

— Ainda agora sei disso, disse D. Pulquéria.

— Casas aparecem muitas, continuou a moça, mas as ruas não prestam. Se fosse no Catete...

— Estás doida? perguntou D. Pulquéria; lá as casas são mais caras do que aqui, e além disso transtornaria o negócio de teu pai. Admira como ele consente em semelhante coisa!

Miloca pareceu não atender às objeções da tia. Esta, que era sagaz, e vivia com a sobrinha havia muito tempo, atinava com a razão do recente capricho. Levantou-se e pôs a mão na cabeça da moça.

— Miloca, por que hás de ser assim?

— Assim como?

— Por que hás de olhar tanto para cima?

— Se titia está de pé, respondeu maliciosamente a moça, eu hei de por força olhar para cima.

D. Pulquéria achou graça à resposta evasiva que a sobrinha lhe deu e não pôde reter um sorriso.

— Tonta! lhe disse a boa velha.

E acrescentou:

— Tenho pensado muito em ti.

— Em mim? perguntou ingenuamente Miloca.

— Sim; nunca pensaste no casamento?

— Nunca.

— E se aparecesse um noivo digno de ti?

— Digno de mim? Conforme; se eu o amasse...

— O amor vem com o tempo. Há bem perto de nós alguém que te ama, um moço digno de toda a estima, laborioso, grave, um marido como não há muitos.

Miloca desatou a rir.

— E titia viu isso primeiro que eu? perguntou ela. Quem é esse achado?

— Não adivinhas?

— Não posso adivinhar.

— O Adolfo, declarou D. Pulquéria depois de um minuto de hesitação.

Miloca franziu o sobrolho; depois deu uma nova risada.

— De que te ris?

— Acho engraçado. Com que então o Sr. Adolfo dignou-se olhar para mim? Não tinha percebido; não podia esperar tamanha felicidade. Infelizmente, não o amo... e por mais digno que seja o noivo, se eu o não amar vale para mim o mesmo que um vendedor de fósforos.

— Miloca, disse a velha contendo a indignação que lhe causavam estas palavras da sobrinha, o que acaba de dizer não é bonito, e eu...

— Perdão, titia, interrompeu Miloca, não se dê por ofendida; respondia gracejando a uma notícia que também me pareceu gracejo. A verdade é que eu não desejo casar-me. Quando vier a minha hora, saberei tratar seriamente o noivo que o céu me destinar. Creio porém que não há de ser o sr. Adolfo, um pé-rapado...

Aqui a boa velha cravou um olhar de indignação na sobrinha, e saiu. Miloca levantou os ombros e foi tocar umas variações de Thalberg.