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Minha formação/III

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Caí assim da Academia, tendo vencido o preconceito que torna relutante para certos espíritos a forma monárquica, isto é, o preconceito pela não-eletividade do chefe do Estado. Eu via claramente nessa não-eletividade o segredo da superioridade do mecanismo monárquico sobre o republicano, condenado a interrupções periódicas que são para certos países revoluções certas. Para não sair da relojoaria, a república era, para mim, um relógio de que fosse preciso renovar a mola no fim de pouco tempo; a monarquia, um relógio por assim dizer perpétuo. Não foi pequena aquisição esta que devi a Bagehot; sem ela, sem ter da monarquia parlamentar uma concepção que me fizesse aceitá-la como um aparelho mais sensível à opinião, mais rápido e mais delicado em apanhar-lhe as nuanças fugitivas, guardando ao mesmo tempo inalterável a tradição de governo e a aspiração permanente do destino nacional, eu teria sido arrastado irresistivelmente para o movimento republicano que começava. Ainda assim, não foi logo, de uma vez, que cheguei a dominar as minhas fascinações.

Em 1871 estava no poder o Ministério Rio Branco. Nesses três anos de 71, 72, e 73 escrevi na Reforma, por vezes, artigos políticos. Outras coisas, entretanto, me ocupavam então mais do que a política. A vida, a sociedade, o mundo, as letras, a arte, a filosofia mesmo, tinham para mim maior encanto do que ela. Desde muito moço havia uma preocupação em meu espírito que ao mesmo tempo me atraía para a política e em certo sentido era uma espécie de amuleto contra ela: a escravidão. Posso dizer que desde 1868 vi todo em nosso país através desse prisma. Nas três defesas de júri que fiz na Academia – o meu amigo Alberto de Carvalho há de rir –, alcancei três galés perpétuas. Eram todos crimes de escravos, ou antes imputados a escravos – devo ser coerente hoje com o que provavelmente disse no júri. No meu 5º ano no Recife levei a preparar um livro que ainda guardo, uma espécie de Perdigão Malheiro inédito, sobre a escravidão entre nós. Eu traduzia documentos do Anti-Slavery Reporter para meu pai que, de 1868 a 1871, foi quem mais influiu para fazer amadurecer a idéia da emancipação, formulada em 1866 em projeto de lei por S. Vicente (Pimenta Bueno). A iniciativa, o desejo de que se levasse a questão ao Parlamento, estou convencido, partiu do imperador, que não descansou enquanto o não conseguiu, a primeira vez de Zacarias, a Segunda de Rio Branco. Eu já disse uma vez que possuo o autógrafo, por letra dele, da carta em resposta aos abolicionistas franceses, carta que foi o ponto de partida de tudo. Eu tomava o maior interesse na atitude de meu pai nessa questão; desejava para ele a glória de ser pelo menos o Sumner brasileiro. Recordo-me do prazer que tive quando, em 1869, ele me referiu que se tinha posto de acordo com Sales Torres-Homem para moverem a idéia do Senado, e que Sales estava escrevendo sobre a escravidão um diálogo na forma de Platão.

Eu disse há pouco que não me tinha sido fácil desprender-me da minha atração para tudo que era democracia ultra. O imperador estava em 1871 a empreender a sua primeira visita à Europa. Um artigo que então escrevi na Reforma, com o título Viagem do Imperador, dá bem idéia de quanto era pequeno nesse tempo o meu ângulo de inclinação monárquica. É ainda um escrito de mocidade, não há nele senão mocidade, mas o traço individual que tem cada escritor já está fixo, não mudará mais; – não só não mudará mais, como, vinte anos depois, quando eu pensar em voltar, no escrever, à forma literária, é às medidas da minha frase dos vinte e um anos que hei de tornar. Esse artigo é quase republicano. As minhas novas idéias inglesas não estavam ainda senhoras, da casa, não tinham força para eclipsar as projeções, em parte fantásticas, que nesse tempo, com a sua lanterna mágica, Laboulave acabava de fazer do mundo americano. Por isso eu aconselhava ao imperador que, em vez de ir à velha Europa, fosse à jovem América:

“Sobretudo ele compreenderia uma coisa. Ao ver os estados Unidos à frente do progresso industrial e moral, compreenderia que os reis podem bem ser uma hipótese, um luxo, uma superfetação. Ao ver uma sociedade amplamente liberal e livre, governando-se sem rei, ele compreenderia que, em certas épocas, os povos podem dispensar qualquer tutela. Ao ver a família honrada e respeitada – eu referia-me à pureza do lar e ao respeito dos americanos pela mulher, – tornada uma religião; ao ver a religião feita o laço moral das almas e a trituração dos cultos chegando quase ao número dos indivíduos sem produzir outro efeito senão o de uma maior tolerância e maior fraternidade, ao ver a civilização crescendo” – em terra virgem – “como uma árvore de enormes raízes e de grande sombra; ao ver a vanguarda do progresso ocupada por uma república” – não merecia eu um primeiro prêmio-Laboulaye? –, “o imperador perderia o culto monárquico em que comungam os reis. Ao ver, por outro lado, esse poder que passa de um soldado para um lenhador, para um alfaiate, sempre o mesmo, íntegro e perfeito, ele, guardando o amor da família, que cresceria, porque já não era a dinastia, perderia o culto da hereditariedade.”

Essa era a minha linguagem aos vinte e um anos; nela encontra-se um mínimo de monarquismo e um máximo de republicanismo, o que produz esta preferência por uma monarquia sem hereditariedade, sem cerimonial, sem veneração, toda ao nível comum, como a magistratura popular da Casa Branca. É só gradualmente que a influência do sistema monárquico vai crescendo e prevalecendo sobre esse radicalismo espontâneo, esse igualitarismo inflexível. Aos 21 anos de certo eu não teria compreendido esta máxima política de meu pai no Senado: “A utilidade relativa das leis prefere à utilidade absoluta”; o relativo não existia para mim.

Nesses anos o Partido Liberal leva o Ministério Rio Branco para onde quer. Seguramente a opinião liberal teve muito mais poder sobre aquele Ministério do que sobre o Ministério Sinimbu ou qualquer outro do seu próprio partido, – exceto o Ministério Dantas, porque neste o presidente do Conselho era impressionável à menor censura do liberalismo. A verdade é que o Ministério Rio Branco foi um Ministério reformista como desde o Gabinete Paraná não se tinha visto outro e não se viu nenhum depois. O governo tinha o prurido das reformas, não talvez por inclinação própria, mas para desarmar a oposição liberal. Em dois pontos somente ele mostrou-se conservador, à moda antiga: na sua prevenção contra a eleição direta, que provavelmente era também do imperador, e em relação ao equilíbrio do Prata. Em sua política externa manteve firme a tradição conservadora, ou melhor, a política tradicional da Tríplice Aliança, e a maior probabilidade é que a política liberal da Aliança, continuando, depois da guerra, nos tratados de paz, teria criado uma situação no Prata muito diversa da situação estável e pacífica que resultou dessa mudança de atitude dos conservadores. Em tudo mais foi um Ministério inovador como o Partido Liberal não teria dado igual. O pano das reformas era fornecido pelos liberais; era todo de padrão liberal; mas o mestre conservador talhava nele com uma largueza de tesoura que faria chorar no poder toda a alfaiataria contrária. Na questão religiosa, principalmente, à atitude de Rio Branco só se poderia chamar conservadora por ser Pombalina, ultra-regalista. O Partido Liberal, em vez de exultar, dizia-se roubado, pleiteava as suas patentes de invenção, suas marcas de fábrica.

Nesse tempo, e durante alguns anos, o radicalismo me arrasta; eu sou, por exemplo, dos que tomam parte mais ativa na campanha maçônica de 1873 contra os bispos e contra a Igreja. Entro até nas idéias de Feijó, de uma Igreja nacional, independente da disciplina romana; faço conferências, escrevo artigos, publico folhetos. Não quisera mesmo hoje retirar uma só palavra do que disse então, advogando a liberdade religiosa mais perfeita; entendo ainda, hoje mais do que nunca, depois da esplêndida experiência do pontificado de Leão XIII, que a Igreja tem tudo a ganhar com a liberdade e que o futuro do mundo pode pertencer à aliança, já selada no atual pontificado, da Igreja católica com a democracia. Não é sob Leão XIII que o liberalismo há de mais ser suspeito, e provavelmente este pontificado não será um acidente feliz, mas sim um ponto de partida definitivo, a data de uma nova era na história do catolicismo. Do que preciso fazer renúncia, em favor das traças que o consumiram, é de tudo o que nesses opúsculos escrevi em espírito de antagonismo à religião, com a mais soberba incompreensão de seu papel e da necessidade, superior a qualquer outra, de argumentar a sua influência, a sua ação formativa, reparadora, em todo o caso consoladora, em nossa vida pública e em nossos costumes nacionais, no fundo transmissível da sociedade. Naquele tempo, porém, como teria eu acolhido uma manifestação como esta, cada vez mais verdadeira, mais de que só hoje sinto a profundeza e o alcance – do senador Nabuco, em 1860, no Senado: “Há duas necessidades, a meu ver, muito importantes na situação moral do nosso país: a primeira é a difusão do princípio religioso no interesse da família e da sociedade...”? Posso dizer, falando a nova gíria científica, que eu não tinha então nada de estático, era todo dinâmico.

Um ministério conservador que se encarrega de realizar as reformas liberais, produz, forçosamente, no campo liberal, uma grande confusão. Para quem começava, como eu, a vida política automática na imprensa e no clube do partido, a política do ministério pouco importava, o alvo continuava o mesmo; não obstante, instintivamente, pela voz do sangue, a discutir com o governo conservador que fazia as reformas liberais, eu preferia discutir com a fração que se separava do nosso partido para formar o Partido Republicano. Já nesse tempo a questão da forma de governo começa a dominar em mim todas as outras; eu só excetuaria a dos escravos, mas a lei de 28 de setembro estava votada e a ela se tinha seguido uma espécie de trégua dada à escravidão. Travo, então, na Reforma, um combate com a República, do ponto de vista monárquico. Se, em 1871, eu podia pretender, como disse, o prêmio americano Laboulaye, em 1873, no meu ano de fixação monárquica, eu entraria em concurso para o prêmio inglês Bagehot, com esses artigos também da Reforma. O seguinte trecho basta para mostrar, comparado ao da Viagem do Imperador, a mudança que eu tinha sofrido em dois anos:

“É preciso realmente ser iludido, ou pelas palavras ou pelos símbolos, para chamar ao rei do sistema parlamentar um tirano. Nem mesmo pode comparar-se um Lincoln com uma Vitória: o presidente americano governa, administra, tem à sua disposição milhares de empregos públicos, é o chefe de seu partido, tem uma responsabilidade inteira no governo e uma iniciativa poderosa; pode ser um Washington ou, se quiser, um Johnson. O soberano inglês não tem poder nenhum; o Parlamento indica-lhe o ministro que ele chama, não podendo chamar outro; esse ministro imposto torna-se o chefe de Estado, apresenta as leis a que o soberano não pode negar sanção, e dissolve a Câmara se ela lhe retira a confiança; e enquanto o ministro governa, o rei somente reina. Não terá esse tirano inglês muito menos poder do que o primeiro magistrado americano?”

Dessas idéias eu não devia sair mais, como se verá; não são como as de 1871, arrastamento, entusiasmo, paixão; são dessas formas do espírito que deixam mais a inteligência tomar outra forma; têm para ela a transparência, a clareza da evidência, como se fossem, e realmente são, primeiros teoremas de geometriapolítica.