Minha formação/VIII
Agora, as razões pelas quais eu naufragaria sempre no verso. Se o que estava nas páginas de Amour et Dieu fosse novo, eu poderia, de certo, orgulhar-me do meu pensamento; ainda assim, entretanto, não seria poeta. Não era novo, porém. Tomem-se essas quadras:
La terre est une triste et bien sombre demeure:
Pour que l’homme s’attache à ce terrible lieu,
Il faut que le poète avec lui souffre et pleure,
Et lui fasse espérer l’adoption de Dieu.
Car Dieu toujours est loin, et notre humble prière
Ne le fait poit descendre à ce séjour du mal;
En vain nous l’appelons et crions: Notre Père!
Il n’est encore pour nous qu’un soupir, l’idéal.
Se ninguém tivesse dito o mesmo antes, essa humanidade esperando a adoção de Deus, que ainda, por enquanto, um suspiro do seu coração, seria o gérmen de uma sedutora filosofia; aquele trecho, porém, é a tradução, em verso fraco e mal trabalhado, do que Renan mesmo tomara aos alemães e tinha expressado de modo perfeito na mais elegante das prosas. O que me enganava nos meus versos, parecendo-me sonoro e elevado, não pertencia à poesia, pertenceria à eloqüência. Aqui está uma ode à França; é a Alsácia-Lorena que fala à Alemanha:
Tu penses arréter le sang de notre vie,
En t’emparant des rails de nos chemins de fer;
Nous avons cinquante ans pour changer de patrie,
Pour nous enrôler, tous, contents, dans la landwehr?
Ah! la force t’inspire autant de confiance
Que nous en puiserons dans le droit éternel?
Nous sommes les deux bras mutilés de la France,
Qu’elle tend toujours vers le ciel!
Mme Caro, no agradecimento que me manda, escreve: “Os dois braços mutilados levantados para os céus, acabarão, tenho confiança, por vencer o destino.” Os dois braços mutilados podiam ser os dois joelhos dobrados em oração, os dois pés acorrentados, ou o fígado do Prometeu dos Vosges devorado pela águia negra da Prússia e renascendo sempre. Tudo isto é do domínio da retórica e do panfleto político: é um líbelo em hemistíquios como a Nemésis de Barthélemy. Nada é mais contrário à poesia do que a ênfase, o lugar-comum e o patético da oratória. Onde começa o advogado ou o tribuno, acaba o poeta.
O fato é que não possuo a forma do verso, na qual a idéia se modela por si mesma e donde sai com o timbre próprio da verdadeira rima, que nenhum artifício nem esforço pode imitar. Isto, por um lado, quanto à pequena poesia, à poesia solta, ao que se pode chamar a música da poesia. Quanto à grande poesia, à poesia de imaginação e criação, poema, romance, balada que fosse, para essa eu seria incapaz, além da insuficiência do talento, pela falta de coragem para habitar a região solitária dos espíritos criadores, os quais vivem naturalmente entre figuras tiradas de si mesmos, sem vida própria, autômatos da sua inteligência e da sua vontade, como em um sonho acordado. Nessa altura, onde tudo é fictício, tudo irreal, tudo fantástico, a poesia tem para mim o terror do adytum da Pítia. Mesmo quando as figuras sejam meigas, suaves, humanas, a criação envolve sempre alguma coisa de misterioso e terrível; a completa abstração, que ela supõe, da realidade exterior, do mundo dos sentidos, me daria vertigem.
Há, além da poesia de sentimento e da poesia de criação, outra poesia. O verso é a mais nobre forma do pensamento, a mais pura cristalização da idéia, e, como se tem dito, o que não se pode expressar em verso não vale quase a pena ser conservado. Essa poesia, porém, que engasta as belas idéias na mais durável e perfeita das cravações, pertence quase à espécie dos provérbios, em que se condensa e perpetua a sabedoria humana. Em Homero ela confunde-se com a história; em Dante com o catolicismo; em Goethe com a arte e com a ciência. Essa é do domínio dos mais altos gênios.
A poesia ao meu alcance só podia ser a humilde nota individual; mas, como eu disse, não encontrei em mim a tecla do verso, cuja ressonância interior não se confunde com a de nenhum timbre artificial. Quando mesmo, porém, eu tivesse recebido o dom do verso, teria naufragado, porque não nasci artista. Acredito ter recebido como escritor, tudo é relativo, um pouco de sentimento, um pouco de pensamento, um pouco de poesia, o que tudo junto pode dar, em quem não teve o verso, uma certa medida de prosa rítmica; mas da arte não recebi senão a aspiração por ela, a sensação do órgão incompleto e não formado, o pesar de que a natureza me esquecesse no seu coro, o vácuo da inspiração que me falta... Ustedes me entienden. “O artista, disse Novalis, deve querer e poder representar tudo.” Dessa faculdade de representar de criar a menor representação das coisas – quanto mais uma realidade mais alta do que a realidade, como queria Goethe –, fui inteiramente privado. Nem todos os que têm o dom do verso são por natureza artistas, e nem todos os artistas têm o dom do verso; a prosa os possui como a poesia; a mim, porém, não coube em partilha nem o verso nem a arte.
É singular como entre nós se distribui o título de artista. Muitas vezes tenho lido e ouvido falar de Rui Barbosa como de um artista, pelo modo por que escreve a prosa. No mesmo sentido poder-se-ia chamar a Krupp artista: a fundição é de alguma forma uma arte, uma arte ciclópica, e de Rui Barbosa não é exagerado dizer, pelos blocos de idéias que levanta uns sobre outros e pelos raios que funde, que é verdadeiramente um ciclope intelectual. Mas o artista? Existirá nele a camada da arte? Se existe, e é bem natural, ainda jaz desconhecida dele mesmo por baixo das superposições da erudição e das leituras. Eu mesmo já insinuei uma vez: ninguém sabe o diamante que ele nos revelaria, se tivesse a coragem de cortar sem piedade a montanha de luz, cuja grandeza tem ofuscado a República, e de reduzi-la a uma pequena pedra. Aqui está outro, José do Patrocínio, que não é também um artista, ainda que em sua prosa se encontre o veio de ouro da poesia, filão, é certo, fugitivo, e que se perde a cada instante na rocha política. Dela poder-se-ia extrair verdadeira poesia; fazer com as palhetas da sua frase pelo menos uma imagem, a da loura mãe dos cativos, assim como com o sopro da sua eloqüência de combate se faria um baixo-relevo para um arco de triunfo: o Chant du Depart da abolição. Também ele não tem a faculdade do verso, no qual naufragaria como naufragou no romance, porque o seu reflexo intelectual tem a vibração e a rapidez do relâmpago, e o verso é por natureza diamantino. Por isso mesmo também sua prosa, em que por vezes há o toque da poesia, e quase o calor do sentimento criador, ainda não pertence à arte, como pertence a de Chateaubriand, a de Renan, por exemplo, porque não é um estilo. Não tem governo, tem apenas medida; reflete a ação confusa, a agitação perpétua de uma época desequilibrada, sem um instante de calma, de eternidade, em sua obra, no todo, genial. Agora outro muito diverso. Haverá quem não sinta a música inata de Constâncio Alves? Este é bem da ordem dos pássaros, tem o canto; a prosa dele gorjeia, sobe, trina; no entanto, se quisesse reduzir a uma obra d’arte a ironia melodiosa que tem em si, que restaria dela?
Eu disse que me faltava o dom do verso. O timbre do verso reconhece-se em qualquer quadra. Tome-se Olavo Bilac, por exemplo. Não posso falar de Luís Murat, que tem maior voadura de imaginação, porque tenho até hoje respeitado instintivamente o caos da sua arte; sinto que há no seu talento os elementos da poesia, menos a ordem, o principal de todos, mas que, felizmente para ele, se adquire, ao passo que os outros são de herança. Suas formas confusas e intricadas parecem-me de muda, e eu o aguardo na época em que a mocidade tiver gastado a sua violência e ele entrar no bosque das Musas levando o silêncio e a tranqüilidade na alma. “Ele ensinou-me, disse Goethe falando de Oeser, que a beleza é simplicidade e repouso, do que se segue que nenhum jovem pode tornar-se um mestre.” De Murat esperarei para falar que primeiro ele encontre o seu Oeser. Tome-se Bilac, porém. Basta ler a Profissão de Fé em Panóplias, para ver que o verso nasceu com ele, que não é um esforço, um trabalho, mas a expressão livre, franca, natural do pensamento:
Invejo o ourives quando escrevo;
Imito o amor
Com que ele em ouro o alto relevo
Faz de uma flor.
Não me cabe inquirir se o artifice se cingiu sempre em sua obra às regras do ofício, que tão perfeitamente esculpiu; o buril da rima, porém, está em sua mão e ninguém se pode enganar sobre a espécie de metal que ele é digno de lavrar.
O fato que eu queria assinalar, é somente que contraí em França neste ano de 1873-74 a aspiração de autor, a qual se desenvolveu a contato de grandes espíritos da época, que me acolheram como eu podia desejar, especialmente Renan, Scherer, George Sand.
Renan me dera o conselho, que transmito à nova geração de literatos, de entregar-me a estudos históricos. Não há em regra nada mais ingrato, mais fútil, do que a produção que o indivíduo tira toda de si, e é o que acontece quando o talento não tem uma profissão literária séria. Há estudos, como as humanidades, que são apenas a habilitação do espírito para a carreira das letras: quem os tem pode dizer que possui a ferramenta do seu ofício; além da ferramenta, há, porém, que escolher o material. O material em que trabalham os nossos homens de letras, são os costumes, a sociedade, quando são romancistas, ou dramaturgos; as leituras, quando são críticos, a própria vida ou impressões, quando são poetas.
O material preferido é, como se vê, todo ele pouco consistente, efêmero, em parte grosseiro, em parte imprestável ou insuficiente, e assim a produção é quase toda fácil, improvisada, sem trabalho anterior, sem investigação, sem esforço, sem tempo, sem nenhum elemento que revele continuidade, ambição. Faltando a disciplina e a emulação de uma especialidade, que acontece? A inteligência contrai o hábito da dissipação, da indolência, do parasitismo; o talento relava-se, perde todo o peso específico. Temos por isso uma literatura desocupada; o nosso campo literário é composto de flâneurs. A verdade é que vai aumentando consideravelmente em nosso tempo o que Matthew Arnold traduziu por inacessibilidade às idéias, e que esse novo Filistinismo reduzirá a arte dos nossos banquetes literários a um só gênero de iguarias, o gênero nature. O público, o protetor moderno das letras, cuja generosidade tem sido tão decantada, não passa de um Mecenas de meia-cultura, mesmo em França e na Inglaterra. Aconselhar a jovens brasileiros que se dediquem a estudos históricos desinteressados, é aconselhar-lhes a miséria; mas as leis da inteligência são inflexíveis e a produção do espírito que não se alimenta senão de sua própria imaginação, tem que ser cada dia mais frívola e sem valor.
Não me aproveitei do conselho de Renan senão tarde demais na vida, quando comecei a preparar a biografia de meu pai, que é uma perspectiva da época toda de d. Pedro II. O aviso, porém, aí fica para os que quiserem desenvolver e aperfeiçoar o talento literário que possuem, em vez de dispersá-lo e nada apurar dele. O conselho não deixou, entretanto, de influir no meu espírito, se não para me disciplinar a mim mesmo, ao menos para me fazer aquilatar o valor do trabalho e da indagação e sentir a inutilidade, a vacuidade do que é puramente pessoal e espontâneo, desde que não seja característico.
Das minhas conversas com Scherer, o que me contagiou foi a sua admiração pelo romance inglês, que parecia ser a literatura da casa. – Adam Bede, Jane Eyre, etc. Em mim a conquista anglo-saxônia começou por Thackeray, que li então, como já disse, no retiro de Fontainebleau. A respeito de meus versos, o grande crítico manteve esse silêncio desanimador dos médicos que não sabem enganar, quando os doentes ingênuos que se fizeram auscultar, querem surpreender e penetrar com perguntas insidiosas a realidade do seu estado.
A febre poética que se tinha apossado de mim com esse primeiro ensaio de Amour et Dieu, não devia ceder facilmente; eu queria resgatar esse esboço, que me parecia inferior e imperfeito, substituí-lo, e uma idéia, que estava em gérmen em uma de suas poesias, desprendeu-se dele e tomou em meu espírito as proporções extravagantes de um grande drama em verso. Deste falarei mais tarde. Como se vê, bem pouco do político militante restava depois dessa primeira viagem à Europa; eu trocara em Paris e na Itália a ambição política pela literária, crítica, isto é, com uma espessa camada européia na imaginação, camada impermeável à política local, a idéias, preconceitos e paixões de partido, isoladora de tudo que em política não pertencesse à estética, portanto também do republicanismo – porque a minha estética política tinha começado a tornar-se exclusivamentemonárquica.