Minha formação/XII
A impressão mundana, aristocrática, era para mim uma influência política puramente negativa, como o tinha sido a impressão artística da Itália ou a impressão literária de Paris. O efeito da sociedade, como o das artes e das letras, não era outro senão o de impedir o desenvolvimento do gérmen revolucionário que as leituras francesas dos vinte anos tinham deixado em meu espírito. Sem aquelas influências, entregue a meus próprios impulsos, do mesmo modo que meu liberalismo inato degenerou em radicalismo, – o qual foi em mim um puro fenômeno de estagnação em um espaço político fechado, – o radicalismo teria degenerado em republicanismo.
Um distinto escritor, que costumo encontrar na Revista Brasileira, o dr. Pedro Tavares, dessa ordem de republicanos a que chamarei prematuros, mais de uma vez me tem estranhado o que chama o desvio de minha evolução política. Para ele o liberalismo desenvolve-se, completa-se, termina, naturalmente, pelo republicanismo. Terá ele, porém, certeza de que Mirabeau, se vivesse, havia de figurar na Convenção? A crítica é igual à que se fizesse, por exemplo, a Lafayette, por não ter abraçado a República em França depois de ter ajudado a fundá-la na América. O fato é que no republicanismo, falo do sincero, do verdadeiro, há um ideal, mas há também um ressentimento das posições alheias, como no socialismo, no comunismo, no anarquismo há ideal, mas há também inveja, e desta é que parte, quase sempre, o impulso revolucionário.
Sem as influências negativas da imaginação, eu teria sido talvez levado até à República, como tantos que depois se arrependeram; aquelas influências me contiveram somente porque me desviaram, ou me distraíram da política. Eu era, porém, por natureza, um temperamento político. Cedo ou tarde, a política tornaria a seduzir-me, e só uma influência positiva, que criasse em mim uma segunda natureza e modificasse o meu temperamento em suas tendências absolutas, radicais, podia tornar-me monárquico de razão e de sentimento, como fiquei. Essa influência foi o contágio do espírito inglês, o que pude apropriar-me dele.
A minha passagem pela Inglaterra deixou-me a convicção , que depois se confirmou nos Estados Unidos, de que só há, inabalável e permanente, um grande país livre no mundo. A Suíça é um país livre, mas é um pequeno país. Os Estados Unidos são um grande país, mas há nele, sem falar da sua justiça, da lei de Lynch, que lhe está no sangue, das abstenções em massa da melhor gente, do desconceito em que caiu a política, uma população de 7 milhões, toda a raça de cor, para a qual a igualdade civil, a proteção da lei, os direitos constitucionais são contínuas e perigosas ciladas. A França é um grande país e um país livre, mas sem espírito de liberdade arraigado, sujeito sempre às crises das revoluções e da glória.
O que deixa tão funda impressão na Inglaterra é, antes de tudo, o governo da Câmara dos Comuns: a suscetibilidade daquele aparelho, ainda perante as mais ligeiras oscilações do sentimento público, a rapidez dos seus movimentos e a força, em repouso, de reserva, que ele concentra. Mas ainda, porém, do que a Câmara dos Comuns, é a autoridade dos juízes. Somente na Inglaterra, pode-se dizer, há juízes. Nos Estados Unidos a lei pode ser mais forte que o poder; é isto que dá à Corte Suprema de Washington o prestígio de primeiro tribunal do mundo, mas só há um país no mundo em que o juiz é mais forte que os poderosos: é a Inglaterra. O juiz sobreleva à família real, à aristocracia, ao dinheiro, e, o que é mais do que tudo, aos partidos, à imprensa, à opinião; não tem o primeiro lugar no Estado, mas tem-no na sociedade. O cocheiro e o groom sabem que são criados de servir, mas não receiam abusos nem violência da parte de quem os emprega. Apesar de seus séculos de nobreza, das suas residências históricas, da sua riqueza e posição social, o marquês de Salisbury e o duque de Westminster estão certos de que diante do juiz são iguais ao mais humilde de sua criadagem. Esta é, a meu ver, a maior impressão de liberdade que fica da Inglaterra. O sentimento de igualdade de direitos, ou de pessoa, na mais extrema desigualdade de fortuna e condição, é o fundo da dignidade anglo-saxônica.
Exceto essa idéia da justiça, que se foi formando e crescendo em mim, à medida que lia no Times a seção dos tribunais, curso prático de liberdade que a nenhum outro se compara, posso dizer que não fiz na Inglaterra senão verificar por mim mesmo a precisão, a penetração, a agudeza de espírito de Bagehot. O seu pequeno livro, cotejado com o que eu via, ouvia e sabia, explicava-se, tornava-se claro, sensível, palpitante no que antes era obscuro, indiferente; fazia-me compreender o mecanismo de que ele formulara a teoria: passava a ser para mim, em direito constitucional, um verdadeiro evangelho. Uma coisa era ter assimilado aquelas idéias logo ao sair da academia a outra ver funcionar o próprio sistema, receber a impressão viva do que apenas eu aprendera ou decorara.
Essa dupla influência do governo inglês e da liberdade inglesa era, por sua natureza, monárquica. Não podia deixar de inclinar-me interiormente à Monarquia a idéia de que o governo mais livre do mundo era um governo monárquico. Ainda assim um estrangeiro inteligente não seria no seu país inabalavelmente monarquista somente porque o governo chegou na Inglaterra a um grau maior de perfeição do que nos Estados Unidos, que tomaram a forma republicana, Desde que não tínhamos no Brasil os elementos históricos que a liberdade inglesa supõe, a não querer ou cometer o maior erro que se pode cometer em política, – o de copiar de sociedades diferentes instituições que cresceram, – eu não podia repelir a República no Brasil somente por admirar a Monarquia inglesa de preferência à Constituição americana. Era preciso alguma coisa mais, no que respeita à forma de governo, para eu não me deixar arrastar.
A transformação, ou, melhor, a modificação de ideal político que sofri na Inglaterra era, todavia, a preliminar, o preparo para a impenetrabilidade que ofereci depois à aspiração republicana. Até então, a forma republicana me parecera superior a monárquica pelo lado da dignidade humana. Foi na Inglaterra que senti que nunca a nossa raça atingiu ao mesmo ponto de altivez moral que em uma Monarquia. Como o privilégio dinástico, que também o meu radicalismo rejeitava, eu agora o via bem, não se fazia no século 19 senão aproveitar a tradição nacional mais antiga e mais gloriosa para neutralizar a primeira posição do Estado. A concepção monárquica ficava sendo esta: a do governo em que o posto mais elevado da hierarquia fica fora de competição. Era uma concepção simples como a da balança, como a do eixo. Nenhum direito se transformou tanto no decurso deste século no Ocidente como o direito real, que de divino passou a ser passivo. O rei da Inglaterra, se quiser influir na política com as suas idéias próprias e a sua iniciativa, tem primeiro que abdicar e – se a hipótese é admissível –, fazer-se eleger à Câmara dos Comuns ou tomar a decisão da casa dos Lordes. Entre o czar e a rainha Vitória a diferença de autoridade é infinitamente maior do que entre a rainha Vitória e o presidente dos Estados Unidos. O governo pessoal é possível na Casa Branca; é impossível em Windsor Castle.
O chamado privilégio é assim um cargo honorífico, uma tradição nacional, uma conveniência pública, quase uma fórmula algébrica de equilíbrio de forças, de conservação de energia, de moto contínuo. É tão absurdo ressentir-se alguém em sua dignidade da existência desse ponto fixo do sistema político, como seria o ressentir-se da existência do eixo da terra ou da estrela polar. A muitos é impossível deixar de ver no ocupante do trono o homem ou a mulher, o acidente, a pessoa, para ver a função, a existência tradicional, a lei do movimento político. Desses pode-se dizer que são deficientes em imaginação simbólica; mas desaparecendo o simbolismo, podemos estar certos de que desaparecerá também o ideal na religião, na poesia, na arte, na sociedade, no Estado.
A Monarquia constitucional ficava sendo para mim a mais elevada das formas de governo: a ausência de unidade, de unidade, de permanência, de continuidade no governo, que é a superioridade para muitos da forma republicana, convertia-se em sinal de inferioridade. Esse ideal republicano, de um Estado em que todos pudessem competir desde o colégio para a primeira dignidade, passava a ser a meus olhos uma utopia sem atrativo, o paraíso dos ambiciosos, espécie de hospício em que só se conhecesse a loucura das grandezas. Não era este, de certo, o termo da evolução humana, pela qual rezamos todos os dias, quando repetimos o adveniat regnum tuum. Desistir da idéia monárquica não é tão fácil como parece. Mesmo o sistema planetário é monárquico, diz Schopenhauer. O universo é a Monarquia por excelência. Em vez de Cosmos, Humboldt podia ter dado ao seu livro o título de Monarquia. A idéia central de infinito, isto é, Deus, não podia deixar de ser em toda a esfera da inteligência e da atividade humana o verdadeiro ideal. Até hoje a força, transformada em direito e em tradição, terá sido a gênese do ideal monárquico; um dia ele sairá da ciência, da inteligência, da virtude, da santidade. O ideal humano, todo ele, toda a estética religiosa, social, artística, podemos ficar certos, está inteiro na linha: “E criou Deus o homem à sua imagem”
Eu encontrava republicanismo na Inglaterra em espíritos de primeira ordem; havia republicanismo, mais ou menos consciente, em Spencer, em Mill, em Bagehot, em Bright, em Morley, em George Eliot, em G. Henry Lewes, mas era republicanismo sine die, conservado no sentimento monárquico, para impedi-lo de corromper-se. A Inglaterra não seria a nação livre que é se não houvesse no seu caráter uma fibra que impede a veneração dinástica de degenerar em superstição, a “loyalty” de tornar-se servilismo... No coração inglês a fidelidade à Câmara dos Comuns precede a fidelidade à realeza, e dessa regra não faz exceção a própria dinastia, que sente como a nação. Esse fundo de republicanismo, latente, esquecido até, mas que a menor provocação faria ressuscitar o mesmo que sob os Stuarts, longe de ser incompatível com o monarquismo, é que o tem conservado, restringindo, reduzindo o poder real à função que é hoje, puramente moderadora e, só raras vezes, provisoriamente arbitral. Esse republicanismo não impedirá – pelo contrário –, os que o têm em reserva, de inclinar-se diante da rainha e defender a integridade da sua prerrogativa esvaecente.
Como eu disse, porém, não me bastaria mesmo essa profunda modificação de ideal político para impedir-me de acompanhar o movimento republicano entre nós, dadas certas contingências. Eu podia ser monarquista de ideal e julgar a República, em um momento dado, o melhor governo praticável, como se pode ser republicano de ideal – e muitos o são na própria Inglaterra –, e fazer da Monarquia o seu noli me tangere. Além disso, eu podia deixar arrastar-me por uma corrente de entusiasmo, por uma solidariedade de partido, por amizades políticas, ou, mesmo, por algum interesse que soubesse disfarçar-se e insinuar-se-me no espírito, – sob a forma de um sacrifício à causa pública. As idéias para espíritos que vêem os lados opostos das coisas, o que tudo tem de bom e de mau, são pobres, frágeis, antemurais. É preciso, para sustentar a fé política, mais do que a lucidez da inteligência; a não haver um sentimento que interesse o coração, ou uma espécie de ponto de honra que se imponha ao caráter, é indispensável um espírito uniforme de conduta, uma regra certa de direção. No meu caso particular, o que me poupou da ilusão republicana foi um toque apenas do espírito inglês.