Minha vida e meus amores

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Mon Dieu, fais que je puisse aimer!
S. Beuve



Quando, no albor da vida, fascinado
Com tanta luz e brilho e pompa e galas,
Vi o mundo sorrir-me esperançoso:
— Meu Deus, disse entre mim, oh! quanto é doce,
Quanto é bela esta vida assim vivida! —
Agora, logo, aqui, além, notando
Uma pedra, uma flor, uma líndeza,
Um seixo da corrente, uma conchinha
À beira-mar colhida!

Foi esta a infância minha; a juventude
Falou-me ao coração: — amemos, disse,
Porque amar é viver.
E esta era linda, como é linda a aurora
No fresco da manhã tingindo as nuvens
De rósea cor fagueira;
Aquela tinha um quê de anelos meigos
Artífice sublime;
Feiticeiro sorrir dos lábios dela
Prendeu-me o coração; — julguei-o ao menos.

Aquela outra sorria tristemente,
Como um anjo no exílio, ou como o cálix
De flor pendida e murcha e já sem brilho.
Humilde flor tão bela e tão cheirosa,
No seu deserto perfumando os ventos.
—- Eu morrera feliz, dizia eu d'alma,
Se pudesse enxertar uma esperança
Naquela alma tão pura e tão formosa,
E um alegre sorrir nos lábios dela.

A fugaz borboleta as flores todas
Elege, e liba e uma e outra, e foge
Sempre em novos amores enlevada:
Neste meu paraíso fui com ela,
Inconstante vagando em mar de amores.

O amor sincero e fundo e firme e eterno,
Como o mar em bonança meigo e doce,
Do templo como a luz perene e santo,
Não, nunca o senti; — somente o viço
Tão forte dos meus anos, por amores
Tão fáceis quanto indi'nos fui trocando.
Quanto fui louco, ó Deus! — Em vez do fruto
Sazonado e maduro, que eu podia
Como em jardim colher, mordi no fruto
Pútrido e amargo e rebuçado em cinzas,
Como infante glutão, que se não senta
À mesa de seus pais

Dá, meu Deus, que eu possa amar,
Dá que eu sinta uma paixão,
Toma-me virgem minha alma,
E virgem meu coração.

Um dia, em qu'eu sentei-me junto dela,
Sua voz murmurou nos meus ouvidos,
— Eu te amo! — ó anjo, que não possa eu crer-te!
Ela, certo, não é mulher que vive
Nas fezes da desonra, em cujos lábios
Só mentira e traição eterno habitam.
Tem uma alma inocente, um rosto belo,
E amor nos olhos... — mas não posso crê-la.

Dá, meu Deus, que eu possa amar,
Dá que eu sinta uma paixao;
Torna-me virgem minha alma,
E virgem meu coração.

Outra vez que lá fui, que a vi, que a medo
Terna voz lhe escutei: — Sonhei contigo! —
Inefável prazer banhou meu peito,
Senti delícias; mas a sós comigo
Pensei — talvez! — e já não pude crê-Ia.
Ela tão meiga e tão cheia de encantos,
Ela tão nova, tão pura e tão bela ...
Amar-me! — Eu que sou?
Meus olhos enxergam, enquanto duvida
Minha alma sem crença, de força exaurida,
Já farta da vida,
Que amor não doirou.

Malgrado meu, crer não posso,
Malgrado meu que assim é;
Queres ligar-te comigo
Sem no amor ter crença e fé?

Antes vai colar teu rosto,
Colar teu seio nevado
Contra o rosto mudo e frio,
Contra o seio dum finado.

Ou suplica a Deus comigo
Que me dê uma paixão;
Que me dê crença à minha alma,
E vida ao meu coração.

Categoria;Primeiros Cantos