Miss Kate/Prefacio

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PREFACIO


«A ração é o perfeito equilibrio de
todas as faculdades; fora dahi insonia,
insonia, e só insonia.»

Machado de AssisPapeis avulsos,
O alienista, pag. 22.


 

«A Natureza, mãe previdente, dispoz que tudo na terra fosse temperado com um grão de loucura...» É uma ironia de Erasmo, levemente comica, mas cruelmente verdadeira, como toda ironia, de que apenas os espiritos leves têm visto a face aprazivel e ainda os mais reflectidos desattendem ao avesso tremendo. Feitio dessa emphase ingenua que lhe fez ver um reflexo proprio em todas as coisas, creadas ad usum de sua utilidade ou deleite, o homem fez passar as coordenadas da immensa natureza por sua fragilidade de anjo decahido, mas ainda assim guardando a scentelha divina da origem. E dessa intelligencia subtil de todo o mundo, como da loucura diffusa que lhe é componente necessaria, fez privilegio da sua pessôa, claro e escuro que deviam marcar-lhe a perspectiva na creação. 08 Padres da Egreja, discutindo ainda na edade-media se a mulher era provida de alma, como o homem, e até bem perto de nós philosophos, como Malebranche, negando a sensibilidade aos animaes, representam todo o pensamento humano nessa prolongada tolice anthropocentrica que veiu dos primeiros simios logicos e que irá disfarçada, sob chrismas diversas, aos superhomens progenerados com que nos ameaça o futuro da especie.

Se só o homem tinha alma, só elle teria o beneficio da loucura. E foi preciso uma longa evolução philosophica, em que a fé, armada dos argumentos piedosos das fogueiras, dos supplicios, dos exorcismos, e a sciencia remissa na obstinação inconvencida e na pugnacidade recalcitrante, atravéz de epochas e seculos, para chegarmos a aposentar a alma e conferir ao cerebro suas prerogativas soberanas. Ainda assim, era do cerebro humano que se tratava. A mesma sciencia, revendo na paleontologia os archivos da creação, pretendia, pela auctoridade de Cuvier, uma ascendencia hierarchica da especie, e, examinando o inventario da historia natural, pelo criterio de Geoffroy de Saint-Hilaire, reclamava para o homem um reino honorifico que o separasse da ralé zoologica.

Só começadas em Gall, por ensaios de psichophysiologia, chegando a Pierquin, que em 1839 teve a coragem de publicar o seu Traité de la folie des animaux, continuando nos Prichard, Darwin, Romanes, Houzeau, Espinas, Forel, Bucher, Lubbock..., que tentaram a ethica zoologica, a observação e a experiencia da physiologia, da pathologia e da sociologia dos animaes con seguiram estabelecer a continuidade somatica e funccional do systema nervoso, na evolução gradativa das especies.

Estavam irmanados, em principio, os homens e os brutos nesse favor da loucura. Mas Erasmo deve ter razão ainda além, pois ficam as reivindicações dos outros comparsas da natureza. E terão sentença justa no dia em que o criterio da loucura, que foi a alienação da alma a um corpo possuido por espiritos damnados, na crença theologica, — e veiu a ser doença da vicera cerebro-espinal, traduzida em symptomas physicos e disturbios psychicos, na doutrina medica — passar, como deve, na concepção philosophica, a ser apenas a alteração da individualidade, transitoria ou permanente, capaz de variar a identificação ontogenica de um ser com a sua caracteristica natural.

Sim; porque, sem paradoxo, a loucura não é somente uma doença como a iatria estreita nos procura convencer. É mais que isto, no proprio homem, porque é um modo de ser, ephemero ou definitivo, anomalo ou doente ou até collateral da normalidade.

O idiota microcephalo ou o cretino, cujo cerebro abortado parou definitivamente num atrazo rudimentar; o degenerado eivado de taras que o descompassam na vida psychica e social dos outros homens; o melancolico, cujo metabolismo se desconcerta e se traduz emotivamente nessa tristeza organica, a mais funda das dores psichicas; o paranoico legitimo emfim, cuja observação começou em Westphal e se difiniu em Kraepelin, como um deseixado do espirito, razoado senão razoavel, logico e coherente no seu caminho falso, raciocinando certo sobre premissas erradas; — todos estes mostram que a formula geral que os abriga é estreita para os conter Já nos hospicios a loucura não é só uma doença do cerebro... é tambem uma monstruosidade da organisação, envenenada ou pêca; é ainda uma anomalia, desviada, desafinada, desacertada da traça, concerto ou taxia humana; é até um desvio da racionalidade commum, por isso que é apenas uma bastardia da rotina psychica, porque é seu collateral na vida da intelligencia.

Se taes noções, em sua extensão e traducções correlatas, não se podem ainda delinear uma forma especifica definida, culpa da estreiteza philosophica da epocha, ainda atada aos poderosos compromissos do’passado, é certo, porem, que já no ambiente palpitam verdades ou paradoxos, idéas comtudo, e fecundas, como aquella poeira cosmica que no sonho panspermico de Coin deve trazer os germens da vida para a creação do mundo.

Um exemplo temos nessa hypothese interessante da psychologia contemporanea, dd assimilação da superioridade de espirito e da rebeldia social ao processo complexo das phrenoses, definida em forma lapidar por um dos nossos poetas mais intellectuaes:

 

«O genio, a loucura, o crime
São faces de um só cristal»

 

Outro, é uma das idéas mais brilhantes da anatomia pathologica, na investigação da origem dos tumores malignos — essa loucura cellular, aberrante e prolixa, que produz um tecido morbido, differenciado e monstruoso, como do nucleo das ideas sans se geram as desformidades dos delirios vesanicos.

Apagada de vez a separação entre animaes e plantas, a sciencia prosegue desfazendo aquella outra existente entre corpos brutos e corpos vivos. As hypotheses physicas são hoje essencialmente activas: a materia ou seus avatares-o ether, os ions, os atomos, as molleculas — têm uma alma eterna — a energia. Vibrações, attrações, affinidades, movimentos, são correspondencias funccionaes a essas somas elementares. E até, num intuito de simplificação intelligente dessa phenomenologia natural, a phisico-chimica contemporanea estuda a fadiga da elasticidade, a fadiga do tacto electrico dos metaes, a defeza das ligas á ruptura, a adaptação do vidro á flexão, a migração das particulas materiaes, a cicatrisação, crescimento e geração dos corpos cristalinos, e até a criação dos cristaes de glycerina, factos todos dessa energia complexa, cujo transumpto mais apparente é a vida, que nossos sentidos imperfeitos e nossa intelligencia rudimentar sentem passar do scenario da natureza.

O cerebro, ultima expressão actual da evolução da materia no mundo e herdeiro de todos os modos de ser de seus antecedentes physicos e biologicos, tem apenas em maior os apanagios e as contigencias communs. Da materia cosmica ao pensamento humano o caminho pode ser infinito, mas continuo sempre.

A loucura, até agora deformada e diminuida no espelho concavo de nossa imaginação, hade buscar uma caracteristica que lhe defina a comprehensão na extensa natureza, de que é uma fortuita, mas immanente condição.

E assim, a palavra de Erasmo palpitará como uma eterna verdade.

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Se de facto é tão amplo o dominio da loucura na natureza, porque então, nos mesmos homens, cuja observação é mais facil a physicos e medi008, ficou restricta a uma minoria insignificante, segregada nos hospicios e estudada com raridade?

A resposta é facil.

Só os casos extremos e incompativeis com a vida social, exigindo segurança propria e respeito alheio, movem a internação e os estudos para esse feito ou delle consequentes. Se das mesmas doenças, em geral, Héricourt chegou a dizer que o medico e o vulgo só conhecem as que acabam com a saude ou com a morte, muito mais se dirá da loucura, condição diffusa de ser, extensa e variada, em gradações infinitas de intensidade e apparencia, das quaes apenas uma infima proporção reclama uma assistencia social, que mais vela pela defesa de todos, que pelo interesse de cada um.

Não se estranhará que habituados a considerar apenas a loucura hospitalisada ou hospitalisavel, ficassem os clinicos unilateralisados por esse véso secular, não logrando distinguir a verdade que lhes avisinhava.

Desconheceram o caracter humano. Nenhuma noção de psychologia possuiram; não podiam, e quasi todos, por ignorancia, deleixo ou remissão, não podem ainda comprehender como das raizes do normal brotam as ramadas dos delirios vesanicos. Porque a psychologia scientifica tem de edade uma porção do seculo passado e a psychiatria philosophica começa apenas a ensaiar os passos pelo braço da primeira...

Foi nesse estado que, quando a myopia medica não via e a cegueira philosophica não permittia ver, a litteratura e as bellas artes, apenas com a observação, chegaram a se antecipar seculos.

Da tragedia grega ao drama escandinavo accumulou-se colossal archivo de observações exactas, desattendidas sempre pela jactancia profissional e só agora havidas por presciencia de taes estudos.

A epilepsia psychica de Orestes, a hysteria de Hamleto, a dissolução paranoica de D. Quichote antecederam de muito as noções das equivalencias mentaes das crises convulsivas, da possibilidade de attingir a nevrose proteiforme ao sexo masculino, da organisação systematica das de lusões e sua ruina numa lenta desaggregação demencial.

Emquanto os homens de sciencia viam pouco e viam curto, os artistas viram antes e viram longe.

Se isto lhes é louvor, cabe não esquecer que a verdade foi sempre a mesma. Observaram fartamente o que existia por toda a parte.

Esse mesmo pensamento, que me dá razão á these favorita, confirma-se no depoimento de um illustre psychiatra slavo.

«É parte minima dos alienados, diz Orchansky, a que se encontra nos asylos, na Russia; ao envéz, grande massa de muitas centenas de milhares desses invalidos do espirito vive em liberdade.»

Não é de surprehender, pois, a notavel copia de observações que se encontra na litteratura russa, em Gogol, Tourguenieff, Garchine, Tcherkhof, Tolstoi... e sobremodo nesse divino Dostoiewsky, a maior retentiva que ainda teve o soffrimento humano...

Mas não é só na Russia que tal occorre, senão no mundo inteiro. E quando psychiatras deliberam ver somente a fauna dos hospicios, grande admiração deve ficar aos homens de arte, que, sem tal senso parcial, integram o conhecimento humano com observações proficuas de sua historia natural.

Todos esses pensamentos e lembranças acudiram-me ao espirito lendo Miss Kate. Deparouse-me ahi uma noção tão exacta, tão precisa, daquillo que sinto realidade frequente, e, entretanto, quasi ignorada dos profissionaes e dos livros da especialidade, que me não contive nas generalisações precedentes.

Porque nem os asylos, nem as casas de saude, nem os diagnosticos dos clinicos, nem os tratados de doenças mentaes, contém casos como o do Dr. Agrippino Simões... mas na vida, e por esses motivos, como elles pullulam nos nossos consultorios, em nossa convivencia, mal equilibrados, mas todavia a prumo semidoidos como lhes chama o Prof. Grasset, num eufemismo que já é uma concessão, mas é ainda uma condescendencia ao vêso antigo?

Subiu ainda mais minha admiração, porque é destes ultimos annos a noção da Phrenastenia, de Dana, ou, mais acertadamente, da Psychastenia, de Janet. Da fórmula analytica das nevroses, junto da neurastenia, entre a hysteria e a epilepsia, com a participação talvez de estados constitucionà es da degeneração e quiçá de desvios educativos originarios da paranoia, fez-se, syntheticamente, uma formação nova, modalidade esbatida e complexa, mas verdadeira e distinguivel na pratica, conhecida por aquellas emphaticas designações.

Sem a symptomatologia definida como a neurastenia na sua triade caracteristica; sem a limitação do campo da consciencia e a localisação topographica limitada da hysteria; sem a queda da tensão mental, tão rapida, tão profunda e tão prolongada, como nas crises epilepticas; sem as perversões multiplicadas e virias que são apanagio desse protéo da degeneração; sem a logica systematisação da paranoia, — a psychastenia, se por estes caracteres todos, imperfeitos, irregulares, mitigados, inconstantes se lhes avisinha, tem por outro lado uma physionomia propria nas lesões profundas da rontade, da attenção, do sentimento e da emoção adaptada ao presente, faculdades que relacioo espirito com a realidade. A tensio mental baixa determina um mal estar, uma inquietação, uma sensação de deficiencia que podem conduzir á tristeza, á anciedade ou ao desespero.

Em tal estado persistem funcções subalternas, como a intelligencia discursiva, a extenamriorisação pela linguagem, estados de humor incoherentes e desproporcionadas, movimentos inadaptados e automaticos, dando origem a ruminações psychicas obsidentes, a loquacidade analytica e prolixa, a emoções angustiosas, a agitações motoras, a tics, etc.

As idéas que se formam para interpretar estes estados, guardam os caracteres dessa genese torturada, sedimentam-se, arraigam-se, tornam-se habito mental, na oscillação continua entre idéas fixas e emoções angustiosas, novos circulos de inferno dentro da consciencia.

Agrippino Simões foi provavelmente um hereditario degenerado, educado sem principios, cultivado precocemente, de uma intelligencia aguçada e propensa aos estudos philosophicos, rico e portanto sem as ligações salutares á vida de trabalho, ocioso e procurando no jogo desporto ou absorpção, perdendo consideravelmente no Encilhamento e creando graves apprehen8ões, alcoolisando-se por habito de bohemia a principio, para adormecer cuidados ou apagar preocupações dolorosas, depois, exhaurindo-se em philosophias improficuas e em viagens sem objectivo...

Nesse terreno physico e nessa estafa mental preparada, começa o quadro inteiro da psychastenia, aqui e ali, por influencia das nevroses visinhas, sombreada de tintas que a um clinico inexperto podem falsear o diagnostico.

A epilepsia se lhe reconhece nas auras, ausencias, vertigens, na amnesia retrogada, nos acces808 de movimentação, no automatismo ambulatorio, no delirio de acção, na irregularidade de humor, nas crises de susceptibilidade e desconfiança, na facilidade da suggestão, na hypnotisação prompta, no somnambulismo natural, na hyperesthesia quasi telepathica, nas crises de hypesthesia ao cançaço physico da marcha e ausencia de somno, e até nas allucinações oniricas e polygonaes, das quaes um exemplo typico, digno de illustrar uma pagina de Regis, está naquelle sonho erotico da aranha, do Capitulo III.

A neurastenia lhe confere a hypocondria, a dyspepsia acida, a dor diffusa na base do cerebro, a sensação de vasio cerebral, a anciedade e a angustia subitas, a estafa das forças physicas, a anaphrodisia e as mais das vezes o erotismo morbido.

Não ha dizer da degeneração, tanto a observação inteira reproduz o quadro mental e social da vida desses desequilibrados, exentricos e ataxicos do espirito.

E até, lá por volta do Cp. XI uma idéa paranoide surge para marcar a identidade do doente observado com os descriptos por Pierre Janet: é quando reconhece que o medico Salcedo e Miss Kate se combinavam para o perseguir.

Nada falta, pois, nos accessorios: e ahi está entretanto a psychastenia inteira, na abulia ou paralysia da vontade, tornando-o irresoluto e ás vezes incapaz de deliberar, agir, pensar, viver...; nos disturbios do sentimento e da emoção, levando-o aos extremos mais afastados, ora alegre, ruidoso, credulo, loquaz, impaciente, já desconfiado, colerico, choroso, vencido, em momentos visinhos, sem correspondencia exacta com as impressões recebidas; nas agitações emotivas, em phobias diversas, desde o horror á curva, até o medo dos angulos; nas agitações intellectuaes, desde a mania da precisão, até a mania da duvida; nas obsessões bem definidas no livro todo, n’essa synthese aguda, trabalho do cerebro em operação continua, infernal mecanica da logica synthetica, continuo entrechocar de theoremas, racionação, metaphysismo, A < B...

Esse estado de espirito tem como componentes idéas fixas que vão alem da verdadeira arithmomania e que não são bem comprehendidas naquella rubrica que lhes destina Janet, entre as manias do au-dela: são diversamente mathematicas e vão até ao subjectivismo transcendente.

Para exemplificar, bastam as expressões desse agrippinismo inconsciente, como lhes chama o proprio doente, e que se expressam pelo livro afora, em termos que taes: «allucinação das alavancas conjugadas, potencial da vida, certeza do quociente triumphal, dansa macabra de schemas historicos e topographicos, sensação de circulos viciosos cujo eixo se deslocava a cada instante...

Junte-se a um tal estado de espirito, o trato de um medico charlatão e explorador e as aventuras de uma amante exotica e complicada por philosophias dissolventes, um meio de reporters bohemios e estudantes pernosticos, e o fim da psychastenia do Dr. Simões não podia ser senão uma impulsão suicida, antecedida por um delirio de acção e uma recapitulação de percepções illusorias, angustias, erotismos, desesperos, e terminada por um cadaver precipitado na via publica, contundido e escorrendo sangue.

Fatalidade preparada pelas circumstancias, no juizo da superstição obsoleta, eliminação necessaria da incapacidade de viver, no determinismo contemporaneo, ahi ha uma lição e um exemplo, em paginas escriptas de tal arte, que muitas vezes a realidade concreta dos successos se mistura á phantasia onirica da nevrose, para um effeito incomparavel de perplexidade e de sonho.

Como obra de arte, Miss Kate fica na retentiva um momento da dor humana, com precisão photographica que raramente possue a retina da observação; obra de sciencia, coincide, alonga, completa, sem o pretender, aliás, e 86 pelo prestigio de observar bem, essa noção actual da psychastenia e das nevroses congeneres.

Sequencia nova, portanto, das paginas anciosas de Dostoievsky e complemento amavel II volume da obra magnifica de Janet e Raymond.

 

Afranio Peixoto