Mister Slang e o Brasil/Capítulo 10

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DO CAPITULO QUE FALTOU


— Lá se foi o meu escriba! exclamou Mr. Slang, de olhos postos na estatueta em cacos.

Era uma reproducção em terra côta do menos hieratico remanascente da arte egypcia, hoje no British Museum.

— Tinha valor a reproducção? perguntei.

— Apenas como documento de que até na Inglaterra se bronzea o barro, o que é um contrasenso. A patina de bronze dá ao barro o aspecto, não a dureza, que é o que vale. Comprei-a no Strand, por occasião da minha ultima visita a Londres.

— Mas voltando atrás, Mr. Slang, que acha de "Terra Deshumana"? insisti.

— Acho-a logica em excesso. O vulto ali descripto assume proporções carlyleanas e quasi caberia num segundo volume do "Heroes and Hero-Worship", que se intitulasse "Municipal-Herces and Municipal Hero-Worship". Na Grecia tambem havia deuses e semi-deuses. Vejo uma forma baixa de heroismo na resistencia municipal do retratado.

— Tambem me parece isso. Só não acceito os meios de que lançou mão.

— Poderia escolher outros meios?

— Devia escolhel-os. Fazendo o que fez, lançou mão de meios immoraes, deprimiu o paiz, rebaixou-lhe o caracter, já fraco, e com isso produziu um mal maior do que não resistindo.

Mr. Slang concluia com menos precipitação. Tinha sangue de juiz inglez nas veias e ponderava muito antes de emittir sentença.

— Os phenomenos sociaes são bastante complexos, meu caro. Do mal nasce o bem e não raro do bem nasce o mal. No governo passado eu vejo males terriveis que podem florir em maravilhosas messes de bem...

— Por exemplo...

— A hostilidade, a guerra, a destruição da economia paulista, sob pretexto de que estava em desequilibrio com o resto do paiz, trouxe, como reflexo, a idéa da estabilização, isto é, uma situação fixa que não permitta "nunca mais" taes attentados. O excesso de mal trouxe um bem. Outro mal que trouxe um bem foi a exagerada corrupção da imprensa. O governo novo já reagiu e saneou o paiz da innominavel infamia. Si essa corrupção tivesse sido moderada e discreta, quem sabe si não continuaria inda hoje esse regimen? Outro: o odio e o favoritismo levados ás ultimas. Esses excessos patentaram de tal arte os vicios do systema, que o instincto da conservação nacional fez surgir um homem cujo lemma é o opposto: "Nem rancor, nem favor". Em summa: o ex-governo forçou no actual uma verdadeira reversão de processos, que não viria, talvez, si houvesse commedimento na passada inversão moral. Tudo isto me leva a conclusões oppostas ás do autor da "Terra Deshumana". Acho que o ex-governo foi o mais fecundo de Republica em resultantes beneficas. Creou a mentalidade estabilizadora, que vae dar as verdadeiras bases da prosperidade deste paiz, e demonstrou a necessidade da moralidade administrativa.

— De modo que para bem julgar o ex-governo devemos esperar as realizações do seu successor. Pragmatismo...

— Perfeitamente. E si estas realizações forem o que eu espero, os brasileiros estarão no dever de erigir uma estatua ao homem mal comprehendido que, espancando sem piedade um organismo semi-inerte, arrancou-o, pela dôr, ao marasmo. Até a revolução, que esse homem provocou e conservou até o fim, vae resultar em frutos beneficos. A revolução é o meio mechanico que teem os povos de apressar o dia de amanhã. Assim na França, na Inglaterra, na Russia. em todos os paizes que evoluem.

Ora, a revolução se limitava aqui a episodios, curtos demais para produzirem effeitos. Elle fomentou a revolução longa de que o paiz precisava. Donde concluo que nenhum homem de governo, no Brasil, ainda lançou mão de meios mais adequados para forçar o advento das tres coisas que o paiz mais pedia: base fixa para os negocios, moralidade administrativa e reforma no processo da representação politica. A estatua ao ex-prestdente terá forçosamente este distico: "Ao creador, por meios indirectos, da moeda ouro, da moralidade no governo e do voto secreto, o povo agradecido".

— Voto secreto, tambem?

— Sim. Quem falava em voto secreto annos atrás? Um ou outro raro ideologo pregava-o ás brisas. E essa fórma eleitoral, hoje victoriosa no mundo inteiro, só neste paiz era desconhecida. Faltava-lhe propaganda. Faltava um chefe de estado que por excesso de abuso na formação dos poderes provasse a urgencia de ser instituido o voto secreto tambem no Brasil. Essa prova o ex-governo a fez. E fez mais: forçou a revolução a tomar como lemma o voto secreto, tornando-o conhecido e discutido no paiz inteiro. O voto secreto virá e a estatua ao ex-presidente consignal-o-á entre as benemerencias a elle devidas...

— Muito bem, Mr. Slang. Acha então que o prudente é suspendermos o juizo sobre o ex-governo, á espera das realizações do governo novo?

— Sim, porque o governo novo constitue a segunda parte do governo velho, do qual é filho. Constitue a parte constructiva. E taes sejam as suas construcções, quem sabe si um dia até os encarcerados da Trindade não abençoarão o homem que, consciente ou inconscientemente, forçou a nota do mal e fez que delle abrolhasse o bem? Deus escreve direito por linhas tortas, diz a sabedoria popular.

— De modo que "Terra Deshumana"...

— E' um precioso livro. Todas as finuras da logica ali se encontram empenhadas em fazer fiel um retrato. E podemos medir da bravura desse livro pela violencia dos ataques com que o aggridem. Acceito-o plenamente como obra de arte, como primor de esgrima. Apenas lhe reconheço uma falha, a ausencia do capitulo principal, o em que se ponha em suspenso o veredicto, pela admissão da hypothese que acabo de expender.

— A hypothese do ex-governo visar o bem pelas linhas tortuosas do mal, tem graça...

— Não digo "visar", pois não possuo elementos para essa averiguação puramente psychologica e, portanto, impenetravel. Digo "chegar".

— Si não houve a visada consciente do bem, isto desmerece a obra, tira-lhe a justificativa unica, que seria a intenção moral.

— Que importam ao paiz intenções? Só valem as resultantes positivas.

— Sempre pragmatista, o meu Mr. Slang! Creia que admiro a frieza desse seu cerebro britannico. Nós aqui, mais ardorosos, queremos, além dos resultados, as intenções.

— Infantilidade. O inferno está calçado de boas intenções e não ha motivos para que as pessimas não levem muita gente ao céo.

Mr. Slang tocou a campainha e guardou silencio até que apparecesse o criado.

— Leve daqui estes cacos, ordenou-lhe.

O criado trouxe uma vassoura e varreu os fragmentos do escriba. Emquanto isso Mr. Slang dizia:

— Tenho minhas opiniões sobre o Egypto. Parece-me uma civilização que morreu por excesso de escribas...

— Pobres escribas! Como poderiam esses humildes parasitas dar cabo de uma civilização?

— Por escriba entendo o burocrata, a gente que passa a vida a encher de letras o papel branco. Elles vão suffocando o paiz e matando a vida, porque substituem movimento por gatafunhos. Tenho a impressão de que os escribas é que suffocaram o Egypto, tornando-o inerme ante as invasões.

Mr. Slang ficou de olhar absorto, como quem está a ver para dentro ou muito longe. Tirei-o daquelle estado com uma pergunta que de longo tempo trazia engatilhada.

— E aqui, Mr. Slang? Que acha da nossa burocracia? Terão forças os nossos escribas para tambem asphyxiar a vida do Brasil?

Mr. Slang não respondeu de prompto. Continuou inda por uns instantes absorto. Depois acordou e, como que estremunhado, disse:

— Aqui? Sim, aqui... Aqui a burocracia já devorou todo o Norte, está paralysando esta cidade do Rio e tende a descer para o Sul. E assume aspectos ineditos no mundo. Mas depois veremos isto. O xadrez está arrumado e é impolido de nossa parte fazer que duas nobres damas nos esperem...

Arrumamos as pedras e Mr. Slang fez o gambito da rainha.





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