Mocinha
"Deus me dê forças para ser calmo", pensou Arsênio, sentando-se depois de não sei quantas voltas pelo gabinete. Atordoava-o a terrível certeza. Esteve alguns segundos à cadeira, mãos pendidas como em delíquio, olhar imóvel, magnetizado numa pausa de estupidez pelo brilho fixo, vivo do verniz da escrivaninha, num ângulo que a luz feria.
Por fim bruscamente, como sacudindo o entorpecimento, levantou-se e foi buscar ao guarda-relógio uma pequena chave de ouro que usava na corrente, talismã secreto de namorado e perene intriga dos amigos curiosos.
Sentado novamente, diante da pasta do trabalho, abriu com a chave uma gaveta à esquerda. Estava cheia de cartas, cartas em desordem, algumas abertas, mostrando nas folhas de cores pálidas estampas mínimas de pombos e flores, palavras de ternura que outras folhas truncavam encobrindo, cartas de amor d'onde evolava-se uma nuvem de perfumes muito tempo guardado, como a saudade dos antigos beijos.
Arsênio debruçou-se sobre as recordações.
Casara pela razão profunda de que eram vizinhos.
Era impossível afrontar o narcótico das ordenações e do Melo, amenizadas ainda pela comprovação textual que tem o incomparável atrativo de ser latim. Dormir diante da preleção era escandaloso. Ao menos, no tempo das chamadas o terror alertava.
Só havia um partido: ficar em casa. Ver passar o Capiberibe debaixo do sol e os matutos pelas pontes brancas, abalados sobre os jacás, ao chouto dos cavalinhos magros, valentes, encrustados de estrume seco nas ancas; ouvir do catre bambo de lona e pinho os gritos do cargueiro, as chicotadas no ar, ou a lamúria inacabável dos mendigos: "Pelas cinco chagas de Cristo! meu devoto... Uma esmolinha pelo divino amor de Deus!..." vozes de cegos no fulgor da luz, que com a temperatura das horas eram de um efeito de aborrecimento sem nome.
No principio lia, mas o clima venceu e a madraçaria acadêmica apoderou-se dele com todos os sintomas de morbidez incurável.
O companheiro de casa falava-lhe dos dias frios de S. Paulo. Como seria bom dormir num dia frio... Ele tinha de padecer o suplício único da preguiça quente, sob o cancã de reflexos espelhados do rio para o teto.
Erguia-se sobre o cotovelo para sorver o refrigério do coco verde e recaía.
De espaço a espaço, vibrava o silvo de uma locomotiva partindo; às vezes o rugido longo de um paquete ancorado diante da Lingueta. Era o tempo a correr. Bem lhe importava; a preguiça não tem horário.
— Mala para o Sul, dizia-lhe da janela o companheiro, olhando para o mastro dos sinais da navegação, sobre a cidade.
Ele com um bocejo, sem mesmo abrir os olhos:
— Mala para o Sul?...
Mas havia uma área nos fundos, espaçosa, ladrilhada de tijolo, partida ao meio por um muro. Metade era o quintal da casa; a outra metade era o lavadouro de uns vizinhos de frente para o lado oposto do quarteirão.
Antes do jantar, enquanto punham a mesa ou depois, esperando a noite para correr às cervejarias, ou às famosas visitas de um inolvidável corpinho azul de setineta, risonho e fácil, Arsênio cruzava os braços sobre o peitoril e olhava.
No pátio vizinho, diante de um tanque negro de limo, batia roupa uma velha escrava com a saia em nó sobre a barriga, requebrando-se a cada golpe das peças. Quando a roupa era demais, estendia-se sobre o telhado fronteiro, onde uma siriema aparecia a passear em cima, parando a períodos regulares para soltar o canto metálico.
Acontecia muito vir falar à lavadeira uma mocinha clara de cabelos pretos. Aparições fugitivas. Trazia alguma roupa ou dava um recado e sumia-se como o relâmpago. O tempo suficiente para deixar a impressão da graça rara dos seus modos e animar para Arsênio com um encanto permanente a vista insípida do ladrilho vermelho, do lavadouro, do melancólico passeio da siriema sobre as roupas úmidas.
"Mocinha" exatamente chamavam-lhe.
Arsênio modificou um pouco os seus hábitos de preguiça depois que notou as aparições. E agora estremecia quando chamavam "Mocinha!" na vizinhança. Acudia à janela como se por ele chamassem, como perguntando:
Que querem com o meu sossego?...
Falavam dela, que era namoradeira e leviana. O estudante poderia atestar que percorreu os transes da mais difícil escala de concessões.
Primeiro a concessão dos cabelos, pretos, abundantes, tempestuosos, destrançados sobre o paletó de tiras bordadas. Durante muito tempo só lhe pôde ver à vontade os esplêndidos cabelos. Mocinha sentava-se perto da janela, mas propositalmente voltada para um livro ou para o crochet; de costas como em recusa, oferecendo entretanto o espetáculo complacente do seu tesouro.
Arsênio apaixonou-se pelos cabelos como se apaixonara pelas aparições preliminares.
Mocinha passou a mostrar o rosto. Apresentava-se com os olhos baixos sobre o lavadouro. Ao retirar-se, fazia uma viagem com o olhar, de maneira que fosse para o vizinho exclusivamente o derradeiro relance.
Arsênio apaixonou-se pelo relance.
Prolongava-se a terceira fase da benevolência, quando ocorreu um transtorno.
Por uma madrugada de exceção entregava-se Arsênio à toilette rudimentar das ablusões em trajes menores, descuidoso, no pátio da casa, confiando na hora e no crepúsculo discreto. Inesperadamente cai-lhe da janela dos seus amores como se caísse do céu e da alvorada uma vaia de risos franca, argentina e cruel.
O rapaz voltou-se, a tempo de ver ainda escapando para dentro uma grande sombra de cabelos soltos.
Estava desmoralizado! Visto de ceroulas! Visto por ela! De ceroulas a lavar-se, imaginem, em plena situação idilial do seu romance!
Arsênio protestou não tornar ao posto de esperanças, à adoração parva dos favores da vizinha. Uma gargalhada assim era o rompimento afinal, ditado expressamente a um tolo
Mocinha percebeu o retraimento.
Junto do tanque de lavagem havia o banheiro. Todos os dias, cerca de onze horas, ela e a irmã, uma criança loura de dez anos, atravessavam o pátio com as toalhas. Momentos depois, da porta verde, por uma trama de sarrafos, ouviam-se gritos de prazer e um barulho fresco de chuveiro, de águas batidas. As irmãs saíam coradas, alegres, rindo, agitadas por um frêmito de penas de ave.
Uma vez que as sentiu passar, Arsênio chegou à janela.
Logo, como uma surpresa, abre-se a porta do banheiro e surge Mocinha. Cabelos soltos, como quase sempre, mas em saia branca e corpinho apenas, um apertado corpinho decotando-se sem reserva na pele virgem, rasgando-se aos alvos braços, inveja de Juno, que a sedutora criatura deixava que vissem.
Esquecera o lençol e o foi buscar. Passou tranqüila sem olhar para cima. Voltou enleada no lençol de feltro como uma túnica de arminho, d'onde escapavam-lhe os passos, os miúdos pés despidos, rosados de pisar assim, rápidos como um páreo de flores.
O estudante imaginou que fora proposital tudo aquilo; porque, antes mesmo das águas frescas, ouviu no quarto de banhos uma festa de galhofa.
Riam-se dele ainda, não há dúvida. Meditando, porém, no incidente, compreendeu que a saia branca fora a recíproca das ceroulas. Uma declaração positiva e originalíssima - a permuta dos ridículos de intimidade, sutilmente e ousadamente proposta para consolar da humilhação da madrugada.
Ou não fosse. Verdade é que três meses mais tarde, diante do altar de mármore da Penha de Santo Antônio, permutavam-se entre ambos os compromissos da intimidade consagrada.
Arsênio foi feliz. Fez-se ativo, formou-se, montou casa e começou a advogar no escritório do sogro, um dos mais procurados juristas no Recife.
Dous anos completos, recebeu ele uma carta de intriga anônima.
Veria logo que era uma calúnia infame quem soubesse a calma dos beijos da esposa, quando o advogado entrava do escritório, e o pressuroso carinho que provocava a mínima sombra de preocupação suspeitada e o longo abraço que o estreitava à noite, forte como a virtude, firme como a fidelidade.
Desvanecera-se a impressão do primeiro assalto. A carta de intriga voltou. Agora formulada com uma energia mais severa de boas intenções.
Arsênio ficou aterrado. Figurou-se o anônimo como uma individualidade fantástica, onipresente, demônio indivisível, elevando-se no caminho da vida para matar-lhe a ventura.
Acusavam-na, acusavam formalmente a querida companheira.
Não quis pensar; resolveu precipitar, arriscar-se ao desastramento, contanto que se libertasse do peso da angustiosa dúvida.
O carteiro veio às oito horas. Mocinha estava ainda na cama.
Arsênio foi vê-la. Dormia sobre a face direita, um pouco torcida, adiantando os lábios. As pálpebras desciam serenas, denunciando, na transparência escura, a cor negra do olhar velado. Uma das mãos pendia-lhe fora do leito. Tinha quase de costas o tronco, e a pele alvejava, do colo e dos ombros, tão branca sobre os lençóis, na meia claridade do aposento, tão cândida que parecia azul a candura do linho.
Arsênio abriu uma janela devagar que não despertasse a esposa. Os lençóis brilharam como prata amarrotada. Mocinha continuou a dormir na intensidade da luz.
Arsênio sentou-se à beira do colchão. A vista parou-lhe eventualmente sobre o tapete onde dormiam como a dona os exíguos pantufos de marroquim cor de bronze. No desenho da lã, fugia tempestuoso o galope de um búfalo das savanas de sólidos chifres curtos.
Olhou para Mocinha. A claridade violenta não conseguira despertar o repouso. Será possível que durmam assim os remorsos? Arsênio debruçado procurou-lhe na face branca, nas espáduas, no seio descoberto, o vestígio da traição, a marca do beijo estranho, a cicatriz do adultério. Que imaculada pureza! Um busto de anjo, na inocência feita mármore.
O marido quis beijar a mão pendente, mas resistiu.
A esposa agitou-se afinal, sentindo a cócega da luz. Um longo inteiriçamento estendeu-se sob as cobertas como um espasmo vibrante.
Abriu os olhos e fechou-os no mesmo instante, tocados pelo dia. Abriu-os de novo e teve um pequenino grito admirativo com a presença do marido. Bocejou, esfregando as pestanas, um adorável bocejo de romã de vez. Apoiou languidamente o braço na almofada e ergueu o corpo. Desatados num gracioso gesto, os cabelos correram-lhe sobre a atitude, suntuosamente.
A jovem persignou-se para a oração da manhã.
Arsênio deixou que ela orasse, segundo o precedente de Otelo.
— Rezaste? perguntou então.
Mocinha encarou-o com certo espanto de mau humor imperceptivelmente acentuado, mas que fez tremer ao marido.
— Que quer dizer esta pergunta?
— Lê esta carta, respondeu ele com brandura, entregando o papel anônimo. É curioso que haja indivíduos que se entretenham com estas revoltantes brincadeiras.
Fitava a mulher, falando. Mocinha leu e o enfrentou com os grandes olhos pacíficos. Um traço de amargura crispava-lhe um canto da boca.
— Tu não me devias mostrar... disse unicamente.
Uma lágrima saltou-lhe da pálpebra e escorreu pelo seio até à camisa. E, sem uma palavra mais, Mocinha atirou-se sobre a almofada com o rosto para a parede.
Arsênio despediu-se naturalmente; mas sem que lhe ocorresse a conveniência de atenuar de qualquer forma a desagradável colisão do seu expediente. Sentia-se atordoado. A desconfiança que esperava destruir, procedendo franco, parecia haver crescido. Qual a significação daquela lágrima? Seria a dor da injúria grosseira a uma consciência limpa? Mas supunha ter distinguido mais que simples desgosto na expressão queixosa. Dar-se-ia caso de ser aquilo uma confissão involuntária, colhida ali ao acordar-se, no descanso físico, no desalinho da alma, antes da dissimulação carinhosa que não fora lembrada na oportunidade?
A suspeita fixou-se-lhe formalmente no espírito.
A vigilância malvada do anônimo sobreveio para o remate.
Trouxeram-lhe misteriosamente ao escritório, surpreendida não sei como, uma carta da mulher, duas linhas:
"Não venha! não venha; porque estamos traídos."
A letra era a sua, absolutamente a sua, horrivelmente a sua!
Arsênio, trêmulo, agindo automaticamente como um sonâmbulo, correu à casa. Procurou a mulher e estendeu-lhe a mão com a carta aberta. Tentou um supremo esforço e pôde dizer:
— Não devia ainda mostrar...
Mocinha estava sentada diante da cesta de vime das costuras. O pano em que trabalhava desprendeu-se-lhe dos dedos. Cobriu-lhe o semblante uma palidez de morta. Nem um movimento, nem uma exclamação. Levantou, só para o marido, um olhar indefinível, esse olhar de aço simultaneamente límpido e mortífero, com que as mulheres se defendem na extrema emergência.
Arsênio trancou-se no seu gabinete.
Tratou de impor-se toda a possível calma para encarar a situação.
Lembrou-se das soluções literárias, sorrindo dolorosamente, as saídas apresentadas para o caso pelos dramas, pela teoria... Teses... Propor um código aos temperamentos!... A julgar pela vertigem que lhe obscurecia o cérebro, o seu temperamento reclamava a solução violenta, o desenlace sanguinário... Mas ponderou imediatamente que a simples observação do próprio temperamento provava que ele não era dos adequados ao rompante teatral.
Tomou então uma folha de papel e escreveu para mandar ao sogro:
"Restituo-lhe sua filha. Por ela saberá V. S. os motivos que me induzem a proceder assim. Não venha daí tristeza à sagrada velhice de um pai. Não há infâmia nos desvios irresponsáveis do coração. O casamento é a aliança da lei, mas é a confusão do sangue e do sentimento. Desfeita a sinceridade desta união, a infâmia é exatamente persistir a prostituição do registro civil."
Formulou ainda algumas frases de cortesia e assinou. Ao concluir, sentia-se abatido, como se se houvessem rasgado as veias.
Impeliu vagarosamente a gaveta das cartas restantes do seu amor, com o cuidado que se tem para o esquife de um cadáver querido. Abriu outra para tirar um envelope.
Achou dentro o revólver, um brilhante revólver americano, que nunca servira. Empunhou-o distraidamente... Estava carregado... como quem tem confiança no seu temperamento de homem avesso às soluções teatrais, certo de que era incapaz de matar alguém, a si muito menos..
E o descarregou na fronte.