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Morfologia do verbo Tupi

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ARION DALL’IGNA RODRIGUES

MORFOLOGIA DO VERBO TUPI

Separata de “Letras”, Curitiba, 1953, n.º 1.
MORFOLOGIA DO VERBO TUPI
Arion Dall’Igna Rodrigues
Instituto de Pesquisas da Universidade do Paraná


  1. Introdução.
  2. O verbo: generalidades.
  3. Primeira conjugação.
  4. Segunda conjugação.
  5. Vozes.
  6. Aspectos.
  7. Modos.
  8. Nomes deverbativos.
  9. Verbos ditemáticos.
  10. Negação.


0.1. Generalidades. O presente artigo constitui um ensaio de sistematização da morfologia do verbo em Tupi antigo. A expressão Tupi antigo é aqui empregada para designar a língua falada pelos índios Tupinambá do Brasil oriental no período abrangido pelos séculos XVI e XVII. As fontes para o conhecimento desta língua estão especificadas em outro artigo do autor [1]; por isso aqui se faz referência apenas às que mais diretamente forneceram material para êste trabalho: são as gramáticas de Anchieta e Figueira [2][3] e, subsidiàriamente, o “Vocabulário na língua brasílica” [4]; os textos contribuiram para ra esclarecer, confirmar ou completar o material contido nas gramáticas e no vocabulário. Alguns aspectos da morfologia verbal já foram apresentados em artigo anterior [5].

O tratamento do sistema verbal do Tupi antigo aqui apresentado não pretende ser exaustivo e, muito menos, definitivo. Há lacunas que ficam a solicitar novos estudos e há pontos controvertíveis cuja fixação definitiva dependerá, igualmente, de investigações ulteriores (particularmente os parágrafos respeitantes aos aspectos verbais são apresentados com não pequena reserva). A análise lingüística por meio da qual se deduziu o sistema é o que talvez se poderia chamar uma análise “tradicional”, no sentido de que se prende, em suas linhas gerais, a uma tradição gramatical européia, vigente em nossas escolas, e que se distingue das novas técnicas de análise estrutural desenvolvidas pela lingüística norte-americana ou pela glossemática de Hjelmslev. A vantagem que pode apresentar esta análise “tradicional” é a de ser a mais acessível aos leitores brasileiros, dos quais as novas técnicas são ainda pouco conhecidas.

0.2. Fonemas. Os fonemas do Tupi antigo são os seguintes: a) consoantes p t k (oclusivas surdas não nasalizadas), mb nd ng (oclusivas sonoras nasalizadas), m n ñ (oclusivas sonoras nasais), b (em posição final, oclusiva; em posição inicial e medial, fricativa sonora bilabial), s x (fricativas surdas, dental e palatal resp.) r (vibrante apical); b) semivogais î û; c) vogais orais i e a o u y (esta última, alta posterior, não-arredondada), vogais nasais ĩ ẽ ã õ ũ ỹ; são nasalizadas as vogais precedidas ou seguidas por consoante nasal ou precedidas por vogal nasal. A semivogal û, quando inicial ou intervocálica, apresenta-se em geral consonantizada, como oclusiva lábio-velar sonora; esta variante é aqui escrita gû [6].

0.3. Fenômenos fonéticos. São indicados aqui, sumàriamente, os fenômenos fonéticos que mais interessam à morfologia verbal: a) p t k quando precedidos por vogal nasal ou nasalizada mudam-se em mb nd ng; nas mesmas condições s muda-se em nd, r em n.

b) r pode mudar-se em n quando, à sílaba em que êle figura, segue-se sílaba com vogal nasal ou nasalizada; nas mesmas condições, î pode mudar-se em ñ.

c) b em sílaba átona muda-se em m quando precedido por vogal nasal ou nasalizada.

d) s muda-se em x quando precedido por i ou î.

e) e + e > e.

f) mb nd alternam com m n.

0.4.1. Categorias de temas. Segundo o conceito que exprimem, distinguem-se três categorias de temas: 1) temas de substantivos — os que designam um sêr, 2) temas de adjetivos — os que exprimem uma qualidade, 3) temas verbais — os que denotam um processo (ação, estado, mudança de estado).

0.4.2. Os temas podem ser vocálicos ou consonânticos. Vocálicos são os que terminam em vogal; consonânticos são os que terminam em consoante ou em semivogal. As consoantes que ocorrem no final dos temas são b k ng m n r. Todos os temas são oxítonos.

0.4.3. Classes de temas. Há duas classes de temas:

I — temas que não recebem prefixo de relação,

II — temas que recebem prefixo de relação.

A classe I pertencem todos os temas começados por consoante ou semivogal e parte dos temas começados por vogal; à classe II pertencem só temas começados por vogal.

0.4.4 Aspectos temáticos. Todos os temas podem apresentar-se em dois aspectos: nominal e verbal. No aspecto nominal significam:

os temas de substantivos — os nomes dos sêres,

os temas de adjetivos — os nomes das qualidades ou sêres que possuem essas qualidades,

os temas verbais — os nomes dos processos (nomes de ação).

  1. Rodrigues, Arion Dall'Igna, Esbôço de uma introdução ao estudo da língua Tupi. Logos (Curitiba), n. 13 (1951), pp. 53-54.
  2. Anchieta, Joseph de, Arte de gramática da língua mais usada na Costa do Brasil, feita pelo p. ... Ed. da Bibl. Nac. do Rio de Janeiro Rio, 1953. (É idêntica a edição da Editôra Anchieta, S. Paulo, 1946).
  3. Figueira, Luís, Arte de grammatica da lingua brasilica do padre.... Nova edição dada à luz e anotada por Emilo Allain. Rio de Janeiro, 1880.
  4. Vocabulário na língua brasílica. Manuscrito português-tupi do séc. XVII, coordenado e prefaciado por Plinio Ayrosa. Col. do Dep. de Cultura, vol. XX. S. Paulo, 1938.
  5. Rodrigues, Arion Dall'Igna, Análise morfológica de um texto tupi. Logos (Curitiba), n. 15 (1952), pp. 56-77.
  6. Segundo a fonêmica norte-americana trata-se de um só fonema, razão por que deveria ser representado de uma só maneira.