Muitos anos depois/II

Wikisource, a biblioteca livre

O Padre Vilela que entrou por incidente no período acima, tinha uma grande parte na vida do Padre Flávio. Se este abraçara a vida religiosa foi por conselho e direção do Padre Vilela, e em boa hora o fez porque, dos seus contemporâneos, nenhum honrou melhor o hábito sagrado.

Educado pelo Padre Vilela, Flávio achou-se aos dezoito anos com todos os conhecimentos que podiam prepará-lo para as funções religiosas. Contudo estava resolvido a seguir outra carreira, e tinha já em vista o curso jurídico. O Padre Vilela esperava que o moço escolhesse livremente a profissão, não querendo comprar mediante uma condescendência de rapaz o futuro arrependimento. Uma circunstância que interessa à história fez com que Flávio abraçasse a profissão sacerdotal a que já o dispunham, não somente a instrução do espírito, mas também a severidade dos costumes.

Quando num dia de manhã, à mesa do almoço, Flávio declarou ao padre que queria servir à Igreja, este que era sincero servidor dela, sentiu imenso júbilo e abraçou o moço com efusão.

— Eu não podia pedir, disse Vilela, melhor profissão para o meu filho.

O nome de filho era o que lhe dava o padre e com razão lhe dava, porque se Flávio não lhe devia o ser, devia-lhe a criação e a educação.

Vilela fora muitos anos antes vigário em uma cidade de Minas Gerais; e aí conhecera um lindo menino que uma pobre mulher educava como podia.

— É seu filho? perguntou-lhe o padre.

— Não, reverendíssimo, não é meu filho.

— Nem afilhado?

— Nem afilhado.

— Nem parente?

— Nem parente.

O padre não perguntou mais nada, suspeitando que a mulher ocultava coisa que não podia dizer. Ou fosse por essa circunstância, ou porque o menino lhe inspirava simpatia, o fato é que o padre não perdeu de vista aquela pobre família composta de duas pessoas. Naturalmente caridoso, não poucas vezes o padre ajudava a mulher nas necessidades de sua vida. A maledicência não deixou de abocanhar a reputação do padre com respeito à proteção que dava à mulher. Mas ele tinha uma filosofia singular: olhava por cima do ombro os caprichos da opinião.

Como o menino já tivesse oito anos, e não soubesse ler, quis o Padre Vilela começar a educação dele e a mulher agradecida aceitou os obséquios do padre.

A primeira coisa que o mestre admirou no discípulo foi a docilidade com que ele ouvia as lições e afinco e zelo com que as estudava. É natural da criança preferir os brincos aos labores do estudo. O menino Flávio fazia do aprender uma regra e do brincar uma exceção, isto é, primeiro decorava as lições que o mestre lhe dava, e só depois de as ter sabidas é que se ia divertir com os outros rapazes seus companheiros.

Com este merecimento, tinha o menino outro ainda maior, era o de uma inteligência clara, e imediata compreensão, de maneira que ia entrando nos estudos com pasmosa rapidez e inteira satisfação do mestre.

Um dia, adoeceu a mulher, e foi caso de verdadeira aflição para as duas criaturas a quem ela mais estimava, o padre e o pequeno. Agravou-se a moléstia a ponto de ser necessário aplicarem-se os sacramentos. Flávio, já então de doze anos, chorava que fazia dó. A mulher expirou beijando o menino:

— Adeus, Flávio, disse ela, não te esqueças de mim.

— Minha mãe! exclamou o pequeno abraçando a mulher.

Mas ela já o não podia ouvir.

Vilela pôs-lhe a mão sobre o coração, e voltando-se para Flávio disse:

— Está com Deus.

Não tendo ninguém mais neste mundo, o menino ficara à mercê do acaso, se não fosse Vilela que imediatamente o levou consigo. Como já havia intimidade entre os dois, não foi difícil ao pequeno a mudança; contudo nunca se lhe varria da memória a idéia da mulher que ele, não só chamava mãe, como até a tinha por isso, visto que não conhecera outra.

A mulher, na véspera de morrer, mandou pedir ao padre lhe viesse falar. Quando ele chegou, mandou sair o pequeno e disse-lhe:

— Vou morrer, e não sei o que há de ser de Flávio. Não ouso pedir-lhe, reverendíssimo, que o tome para si; mas quisera que fizesse alguma coisa por ele, que o recomende a algum colégio da caridade.

— Descanse, respondeu Vilela; eu me incumbo do rapaz.

A mulher olhou agradecida para ele.

Depois fazendo um esforço tirou debaixo do travesseiro uma carta lacrada e entregou-a ao padre.

— Esta carta, disse ela, foi-me entregue com este menino; é escrita por sua mãe; tive ordem de lhe entregar quando ele completasse vinte e cinco anos. Não quis Deus que eu tivesse o gosto de cumprir a recomendação. Quer V. Revmª. incumbir-se dela?

O padre pegou na carta, leu o sobrescrito que dizia assim: A meu filho.

Prometeu entregar a carta no prazo indicado.