Mulheres e creanças/Capítulo IX

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CAPITULO IX

A uma noiva

 

 
Minha querida Maria:

A tua carta conta-me as tuas primeiras e adoraveis alegrias de noiva.

Estás radiante!

Subiste ao setimo céo da ventura humana e crês que não é possivel cahir de lá.

Fallas-me do teu véo branco, da tua corôa, das palavras enternecidas que elle te disse, das opulencias do teu enxoval, do teu quarto de cama á Pompadour, do amor que tens ao teu maridinho, do futuro que sonhas radioso, eu sei; fallas-me de tudo, filha, e eu li esse poema gentil da tua mocidade com um verdadeiro enternecimento bem sincero.

Fallas-me de tudo, digo eu; engano-me.

Não me fallaste de uma cousa importantissima, filha.

Não me fallaste da panella.

Sou eu, pois, que vou fallar-te, com a mais profana das irreverencias, d’este assumpto que é um dos mais graves n’um ménage que principia.

Credo! exclamas tu com aquella moue engraçadissima, que eu te conheço do collegio, e que sempre teve a habilidade de me fazer rir immenso.

— «Pois eu sei lá sequer se ha em minha casa uma panella! Pois eu hei de misturar as confidencias extaticas da minha mysteriosa e ideal felicidade com a relação das minhas cassarolas! Que tem este amor que me enleva e me arrebata, com a comida que se manipula na cosinha! Deixa que eu te descreva as rendas e os setins com que me enfeito para lhe agradar a elle; mas, por Deus, pelo amor da arte, da poesia, da delicadeza feminil, não queiras que eu ajunte a essas descripções uma nova receita de refugado.»

Ouve-me, filha; ninguem attende por ahi estas verdades, que são elementares, tudo quanto ha de mais elementar.

Sabes onde se fabríca e se consolída a felicidade de um ménage?

Na cosinha.

Sabes de onde sahe muitas vezes a ruina de uma casa?

Da cosinha.

Sabes qual é a origem de tantas doenças que por ahi nos desconsolam com os seus aspectos repulsivos?

A cosinha.

E tu entrando na vida conjugal, acceitando o encargo d’almas, porque a dona da casa acceita-o, recebendo nas tuas pequenas mãos delicadas a responsabilidade complexa de mãe de familia, tu pobre querida ignorante, ousas dizer desdenhosamente que nem sabes sequer se em tua casa ha cosinha.

Pois sabe.

Estás habituada a evocar com a aerea ligeireza dos teus longos dedos brancos as notas immortaes em que Beethoven, Rossini, Mayerbeer nos legaram as mysteriosas riquezas da sua alma?

Gostas dos delicados lavores inventados, pela paciencia feminal, dos bordados custosos, das matizadas sedas, de todo esse conjunto de graciosas futilidades em que nós dispendemos horas e horas da nossa vida?

Pois, minha querida, logo que a mulher penetra no limiar da sua casa de esposa tem de antepôr tudo que é util a tudo que é agradavel, tem de adoptar como suprema divisa da sua vida a palavra — sacrificio!

E não creias que isto seja uma dolorosa e inutil mutilação do teu ser.

Quanto mais te sacrificares, crê que maior e que melhor te has de sentir.

Será como um progressivo ascender a uma esphera superior.

Cá em baixo ficam as pequenas vaidades, as frioleiras inuteis, as puerilidades infantis, os despeitos raivosos, toda a expressão mesquinha e imperfeita do teu organismo; lá em cima está a larga tranquillidade que ha de envolver-te como um delicioso banho tepido, a consciencia plena de haveres attingido o fim para que foste creada, a certeza divina da felicidade que communicas em torno de ti, a satisfação do dever preenchido, tudo emfim que nos eleva, que nos depura, que nos faz comprehender o motivo para que viemos a este mundo — aqui para nós — eminentemente estupido!

Não te deslumbrem, pois, as primeiras alegrias da tua lua de mel.

Entre parenthesis, é esta uma phrase que eu abomino, pela simples razão de a achar falsa, e causadora de falsas e funestas interpretações da vida conjugal.

A lua de mel é uma mentira; não existe, ou, se existe, não deve de modo nenhum existir, o que vem a dar na mesma.

Esse periodo officialmente consagrado, que se funda em toda a especie de impostura, deve ser abolido sem appellação por todos os pares honestos que se estimem e prezem.

Imagine-se por um instante que os novos conjuges assumiram a liberdade de formularem em palavras tudo que tivessem no pensamento, o que diziam um para o outro:

«Já conheço todos os teus defeitos, já sei que hei de vir a dar-me muito mal comtigo: achei-te ainda agora profundamente ridiculo n’aquella phrase que me disseste; mas como estamos na lua de mel, deixa-me que te beije com transporte, que te recite ao piano o idyllio apaixonado da minha ventura, que olhe para ti com a sentimentalidade piégas com que os caixeiros romanticos olham para as namoradas, que minta emfim conscienciosamente, como compete a quem se acha de posse de uma posição official e a quem não póde renunciar sem desdouro!»

Não seria profundamente ridiculo este dialogo?

Pois sabe, minha querida, que em cada cem casaes, oitenta podiam em boa consciencia traval-o entre si.

Muitas vezes a lua de mel não passa de uma dolorosa iniciação.

Mais tarde as circumstancias modificam-se, o que nos parecia prenuncio de desgraças transforma-se em tranquilla felicidade; os caracteres, que no fundo se repelliam, embora na apparencia se afagassem, adaptam-se e identificam-se em resultado da ultima convivencia; a paz domestica conquista-se, com esforços meritorios de parte a parte; o que ha pouco era mentira, torna-se uma verdade luminosa e pura.

E o que prova tudo isto, minha amiga?

É que o tempo mais difficil da nossa vida de casadas é aquelle que os tolos e os impostores chamam, seguindo a estupida rotina de seculos, o mais delicioso!

Sou adoravelmente feliz, porque ainda não conheço bem meu marido, nem meu marido me conhece a mim...

Palavra, que acho isto uma esplendida interpretação da vida domestica!..

Commentem bem esta phrase implicitamente incluida em todos os louvores que se tecem á celebre lua de mel, e ahi téem os divorcios, os adulterios, os intimos dramas conjugaes, as luctas atr, e ahi téem os divorcios, os adulterios, os intimos dramas conjugaes, as luctas atrozes em que dous entes se dilaceram até que n’elles morra a alma e o corpo! Mas, minha Maria, que longe me arrastou esta digressão apaixonada.

Perdoa-me.

Se bem me lembro, estavamos ambas muito mais terra a terra.

Eu tinha conseguido fazer-te largar o teu piano de Erard, as tuas aquarellas e os teus bordados, e tinha-te arrastado até á cosinha de tua casa, cuja existencia tu teimavas em ignorar.

Talvez tu penses, minha pobre amiga, que esse senhor, discreto, ameno, gracioso, condescente, que acha graça a tudo que tu dizes, que concorda com todas as tuas opiniões, que ás vezes se ajoelha submissamente aos teus pés, e te diz baixinho — adoro-te! — com uma expressão de tenor em disponibilidade, que se delicia com as tuas toilettes, que dá muita attenção á variedade artistica do teu penteado, que é, emfim, todo teu no sentido falso d’esta palavra, pensa tudo quanto diz, e se conservará por muito tempo n’esse adoravel e massador diapasão?..

Enganas-te.

Elle enfastia-se soberanamente do seu papel, estuda-te com ar sorrateiro, e pede a Deus que acabe o periodo em que tem de renunciar á sua individualidade, para se conformar com os usos e costumes da sociedade elegante, de que faz ou quer fazer parte.

Acabado que seja esse periodo que tem limites determinados, dize-me tu qual o meio de que tencionas usar para o prenderes junto de ti, para que elle comece então a ser sincera e dignamente o teu marido, isto é, o teu melhor e mais fiel amigo, para que a vossa vida commum assente em bases solidas e perduraveis.

Julgas que basta para isso vestires o teu mais bonito vestido, penteares o teu bello cabello louro do modo mais excentrico e original, dizeres com a tua voz sonora e grave os paradoxos mais scintillantes, mostrares-lhe as riquezas com que uma esmerada educação povoou o teu espirito?

Innocente creatura! não conheces o que é o homem, o animal mais prosaico e positivo da creação!

O que elle quer depois das suas luctas com os outros homens, das farças que é obrigado a representar para o publico, dos combates em que é alternativamente vencido e vencedor, o que elle quer é descanso, conchego, esquecimento de todos os artificios que vão lá por fóra, e sobretudo (não te horrorises, minha sonhadora!) e sobretudo commodidades physicas.

Dá-lhe a melhor das poltronas, o mais confortavel dos gabinetes, o mais suave e caricioso dos sorrisos, e, principalmente, dá-lhe um bom jantar.