Mulheres illustres do Brazil/Cecilia Barbalho

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CECILIA BARBALHO


 

Filha do Mestre de Campo Luiz Bezerra, Cecilia Barbalho, viuva de um governador desta cidade, foi distinctissima senhora nascida aqui no Rio de Janeiro, a 8 de Novembro de 1618.

Naturalmente pelos preconceitos do sexo, aquella que fora espoza de Agostinho Barbalho, possuia esta altivez que se infiltra em certos organismos; por isso, desde que o pesado véu de viuva cobrio-lhe a grisalha cabeça, de coração religiosa, resolveu fundar um convento, onde, com suas filhas, podesse estar abrigada das tempestades da vida, por especial graça de Deus, motivando tambem essa resolução achar abaixo da sua grey os rapazes que na colonia quizessem com as senhoritas contrahir matrimonio.

Muito devota, suggestionada pelas glorias do christianismo e ceremonias do culto, seduziamn’a as impressões das phrazes do «Cantico dos Canticos», as nuvens de incenso, o mysterio dos altares, o doirado do sacrario, o suave bruxolear dos cyrios, o aroma das rosas, a alvura do tabernaculo que occulta o a Espirito Santo» n’essa hostia immaculada, n’esse «Agnus Dei» salvador do mundo, esse cordeiro sem macula, que o «Homem da Dôr» depois explicou a seus discipulos a origem e a eternidade entre Elle e o homem...

O canto das préces fallava ao sentimento, o silencio das cellas, a obrigaria a reflectir sobre as miserias das cousas, perdoando para ser perdoada, como manda o Deus immortal, aquelle que appareceu a Moyses na «Sarca ardente». Como mulher colonial, anciosa por ver realisado o intento, declarou que se faria freira, ao perguntar-se-lhe alguma cousa sobre o assumpto.

O mundo feminino bateu palmas á idéa e principiou a dar esmolas a fim de lançar-se a primeira pedra de um grande convento para o seu sexo, em razão de ser pequeno o recolhimento de Mata-Cavallos, onde apenas havia algumas recolhidas, mas não professas.

A antiga capella foi demolida e deu-se começo ao edificio que ainda vemos disposto a atravessar seculos.

A severa matrona, ajoelhada no seu oratorio, via se erguerem as paredes de um enorme casarão sem architectura, sem forma de templo, sem esthetica, uma especie de prisão com grades, symbolisando a separação do seculo, com uma varanda ao meio, onde se davam os oiteiros, prohibidos depois pelo Bispo.

Rodeiava-o uma grande cêrca para recreio das freiras, da qual restam ainda alguns metros sómente.

N’aquella época, no Brazil, as casas de oração eram todas iguaes. Ainda não se olhava para esse grande colosso de marmores e riquezas que se chama «Candelaria», nem para aquelle mimo d’arte conhecido pela «Immaculada Conceição de Botafogo», onde o espirito se eleva, se purifica, sentindo-se pequeno para adorar o Ser dos Seres, á vista dessas magnas preciosidades dos marmores, dos florões, das canelluras, dos tons suaves e rendilhados das peças architectonicas, desse feixe de columnas róseas, onde as delicadas linhas da esthetica trazem á mente a estructura dos templos antigos, quando a arte nos periodos classicos dava á imaginação do artista a força no conjuncto do bello.

Participa desses predicados a architectura christă, que foi precedida da architectura romana...

N’aquelles dias, o coração afflicto não se consolava com a palavra moderna de um orador de agora, como um Monsenhor Britto ou o fallecido Arcebispo Esberard. Hoje, as devotas modernas, de accordo com à civilisação, vestem os seus melhores trajos para irem visitar os templos onde oram sem hypocrisia nem vaidade indo alli como a um logar de cerimonia, dando com o encanto do trajo a idéa de um espirito educado, que vae pedir bafejos de graças entre as espiraes do fume do incenso, compenetrandose de que a oração é a conta corrente entre Deus e a creatura, cujos juros são inapreciaveis.

Os conventos tiveram a sua época, o seu fim util, caritativo, civilisador, christão, quando no auge da dissolução S. Bento surgiu d’uma gruta dos Apeninos no intuito de converter o preguiçoso em um amante da actividade e o devasso em um levita da abnegação.

Logo que se concluio o edificio, já se contavam varias senhoras na milicia sagrada que professavam com Cecilia Barbalho e suas filhas as regras de Santa Clara, autorisadas por uma Bulla papal. Nos nossos dias, depois que separou-se a «Egreja do Estado», continuam as profissões, interronipidas d’antes.

Agora, pela reforma por que está passando o predio, esle está mais alegre, por tanto menos tetrico pelo tom de tristeza que lhe dava o pó do tempo[1].

Lá dentro, jaz a sepultura da sua aristocratica fundadora.

No pio inicio dos seus sentimentos, as illustres senhoras educam um punhado de orphãs, a quem dão o pão do ensino, sem comtudo acharem-se aptas quando de lá sahirem, a serem optimas mães de familia, por lhes faltar o convivio do seculo.

Serão felizes?

Permittam-me esta interrogação.

Ainda existem, é certo, vocações monasticas, sobretudo quando as viscissitudes da vida ferem as mais bellas illusões; mas, se a préce do espirito humano é o balsamo que desce ao coração afflicto, todavia o fluxo e refluxo do sentimento que brilha no plenilunio das crenças, respeitando aquellas, diz em triumpho á mulher moderna: «Crede em Deus, mas vivei para a familia.»



  1. Não posso privar à minha leitora de ticar ao facto de um episodio que deu-se comigo ácerca do convento da Ajuda. Indo com uma amiga ver as obras do mesmo, um operario que nol-as mostrava, introduzio-nos n’uma capella particular que dava accesso para as tribunas reservadas ás religiosas. Entrando, vimos um terraço circulado de canteiros, tendo no centro uma esculptura com a dacta de 1625, representando, naturalmente, um santo qualquer.
    Em quanto eu colhia flôres e olhava para um grande pateo cimentado, tendo no centro dous grandes tanques cobertos, onde algumas religiosas lavavam roupa, reparei as cellas qne o circulam, só têm uma unica janella. Nisto, uma revoada de pombos fui parar na beira do telhado, indo um delles, porem, passar n’uma janella, onde appareceu uma jovem religiosa vestida de branco que nos olhava com espauto, por ver no interior do convento pessoas desconhecidas à comunidade.
    O accaso quiz que à obscura historiadora do esboço de Cecilia Barbalho visse indiscretamente o mosteiro, sem ordem superior e colhesse com as suas mãos profanas as violetas «o alecrim plantadas por mãos santificadas e respirasse por alguns minutos o ambiente perfumado pelas rosas mysticas dessas esposas do Senhor. Creio e quasi afirmo, que a minha amiga e eu fomas as unicas sehoras que por unia coincidencia gozamos de tal excepção. Com que carinho guardo eu flôres tão raras!