Mundo da Lua/135
Feminilidades.
TODOS temos uma galeria de retratos femininos. Para a minha entrou um novo — o de dona Chiquinha. Mau nome, que não condiz o diminutivo com tão esplendida mulher. Trinta e cinco, por ahi, em pleno verão já laivado de outono. Carnes cheias, apertadas com fina elegancia em casemiras collantes. Nos cabellos negros — como santelmo desnorteado no escuro da noite, linda mécha a grisalhar. Seduz com a bocca. Como a tem viva, espirituosa! Labios irrequietos, com que arte elles affeiçoam as palavras que saem da bocca! Realmente, é isso! Os labios della dão um ultimo retoque ás palavras, retoque gentilissimo, e fazem-nas revoar como aves raras. Todo o mundo diz — cadeira e se não junta qualificativos crea a mais incolor das imagens. Dona Chiquita, porêm, modula tal palavra com nuanças que dispensam adjectivos. Se estofada, sae-lhe um cadeira macio; se de palhinha, dá-lhe tom de secca sobriedade.
Deixa cahir, quando conversa, a mais ironica, viva, mordaz e "pinturesca pintura" das coisas, dos factos e dos typos.
Imperceptivel cecioso contribue tambem, qual condimento subtilissimo, para reforçar o valor sensitivo das palavras que modula. Modula, é bem isso!
A ouvil-a, como quem ouve musica nova, pilhei-me varias vezes. Falando de coisinhas insignificantes, ourivesaria miuda, affigurou-se-me uma Cellini instantanea, que idéa e realiza, incontinente, os mais caprichosos capriccios verbaes. Seus labios valem por magico apparelho de transformar os sons que a garganta emitte em irrequietas joias, lavradas com arte que é a um tempo musica, expressão physionomica, sensação visual e capitoso vinho para o espirito.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.