Não se zanguem

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A cartomancia entrou decididamente na vida nacional. Os anúncios dos jornais todos os dias proclamam aos quatro ventos as virtudes miríficas das pitonisas.

Não tenho absolutamente nenhuma ojeriza pelas adivinhas; acho até que são bastante úteis, pois mantêm e sustentam no nosso espírito essa coisa que é mais necessária à nossa vida que o próprio pão: a ilusão.

Noto, porém, que no arraial dessa gente que lida com o destino, reina a discórdia, tal e qual no campo de Agra­mante.

A política, que sempre foi a inspiradora de azêdas polêmicas, deixou um instante de sê-lo e passou a vara à cartomancia.

Duas senhoras, ambas ultravidentes, extralúcidas e não sei que mais, aborreceram-se e anda uma delas a dizer da outra cobras e lagartos.

Como se pode compreender que duas sacerdotisas do invisível não se entendam. e dêem ao público esse espetáculo de brigas tão pouco próprio a quem recebeu dos altos pode­res celestiais virtudes excepcionais?

A posse de tais virtudes devia dar-lhes uma mansuetude, uma tolerância, um abandono dos interesses terrestres, de forma a impedir que o azedume fosse logo abafado nas suas almas extraordinárias e não rebentasse em disputas quase san­grentas.

Uma cisão, uma cisma nessa velha religião de adivinhar o futuro, é fato por demais grave e pode ter consequências desastrosas.

Suponham que F. tenta saber da cartomante X se coisa essencial à sua vida vai dar-se e a cartomante, que é dissidente da ortodoxia, por pirraça diz que não.

O pobre homem aborrece-se, vai para casa de mau humor e é capaz de suicidar-se.

O melhor, para o interesse dessa nossa pobre humanidade, sempre necessitada de ilusões, venham de onde vier, é que as nossas cartomantes vivam em paz e se entendam para nos ditar bons horóscopos.

Correio da Noite, Rio, 26-12-1914.