No leito (Casimiro de Abreu)
Se eu morresse amanhã!
A. de Azevedo
I
Eu sofro; - o corpo padece
E minh'alma se estremece
Ouvindo o dobrar dum sino!
Quem sabe? - A vida fenece
Como a lâmpada no templo
Ou como a nota dum hino!
A febre me queima a fronte
E dos túmulos a aragem
Roçou-me a pálida face;
Mas no delírio e na febre
Sempre teu rosto contemplo,
E serena a tua imagem.
Vela à minha cabeceira,
Rodeada de poesia,
Tão bela como no dia
Em que vi-te a vez primeira!
Teu riso a febre me acalma;
- Ergue-se viva a minh'alma
Sorvendo a vida em teus lábios
Como o saibo dos licores,
E na voz, que é toda amores,
Como um bálsamo bendito,
Ouvindo-a, eu pobre palpito,
Sou feliz e esqueço as dores.
II
Se a morte colher-me em breve,
Pede ao vento que te leve
O meu suspiro final;
- Será queixoso e sentido,
Como da rola o gemido
Nas moitas do laranjal.
Quisera a vida mais longa
Se mais longa Deus m'a dera,
Porque é linda a primavera,
Porque é doce este arrebol,
Porque é linda a flor dos anos
Banhada da luz do sol!
Mas se Deus cortar-me os dias
No meio das melodias,
Dos sonhos da mocidade,
Minh'alma tranqüila e pura
À beira da sepultura
Sorrirá à eternidade.
Tenho pena... sou tão moço!
A vida tem tanto enlevo!
Oh! que saudades que levo
De tudo que eu tanto amei!
- Adeus oh! sonhos dourados,
Adeus oh! noites formosas,
Adeus futuro de rosas
Que nos meus sonhos criei!
Ao menos, nesse momento
Em que o letargo nos vem
Na hora do passamento,
No suspirar da agonia
Terei a fronte já fria
No colo de minha mãe!
III
Mas eu bendigo estas dores,
Mas eu abençôo o leito
Que tantas mágoas me dá,
Se me jurares, querida,
Que meu nome no teu peito
Morto embora - viverá!
- Que às vezes na cruz singela
Tu irás pálida e bela
Desfolhar uma saudade!
- Que de noite, ao teu piano,
Na voz que a paixão desata,
Chorarás a - Traviata
Que eu dantes amava tanto
Nas ânsias do meu amor!
- E que darás compassiva
Uma gota do teu pranto
À memória morta ou viva
Do teu pobre sonhador!
Bendita, bendita sejas,
Se nas notas benfazejas
Tua alma falar co'a minha
Nessa linguagem do céu
Que o pensamento adivinha!
Eu - o filho da poesia -
Dormirei no meu sepulcro,
Embalado em harmonia
Ao som do piano teu!
IV
Que tem a morte de feia?!
- Branca virgem dos amores,
Toucada de murchas flores,
Um longo sono nos traz;
E o triste que em dor anseia
- Talvez morto de cansaço -
Vai dormir no seu regaço
Como num claustro de paz!
Oh! virgem das sepulturas,
Teu beijo mata as venturas
Da terra, mas rasga o véu
Que a eternidade nos vela;
E nós - os filhos do erro -
Libertos deste desterro,
Vamos comtigo... donzela,
No branco leito de pedra,
Onde a miséria não medra,
Sonhar os sonhos do céu!...
Ha tantas rosas nas campas!
Tanta rama nos ciprestes!
Tanta dor nas brancas vestes!
Tanta doçura ao luar!
- Que ali o morto poeta
Nos seus íntimos segredos,
À sombra dos arvoredos
Pode viver a sonhar!
V
Assim, - se amanhã, se logo,
Sentires na face amada
Passar um sopro de fogo
Que te queime o coração,
E uma mão fria e gelada
Comprimir a tua mão
Frisando os cabelos teus;
- Não tenhas tu vãos temores,
Pois é minh'alma, querida,
Que ao desprender-se da vida
- Toda saudade e amores -
Vai dizer-te o extremo - adeus!...
Agosto - 1858.