Novellas extraordinarias/O poço e o pendulo

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O POÇO E O PENDULO




...Estava extenuado, completamente extenuado por aquella lenta agonia... Quando me desligaram, emfim, e me deixaram sentar, conheci que ia perder os sentidos. A sentença! a terrivel sentença de morte, foi a ulti- ma phrase que me vibrou aos ouvidos distinctamente. Depois, pareceu-me que as vozes dos inquisidores se perdiam no sussurro indefinido de um sonho. Esse ruido despertava-me na alma como uma idéa de rotação (talvez porque o confundia no pensamento com a roda de um moinho). E não ouvi mais nada.

Comtudo, durante algum tempo ainda tive a visão de um espectaculo terrivel! Via os juizes vestidos de negro, pronunciando os decretos do que para mim representava o destino. Os seus labios (que se me afiguravam mais brancos que esta folha de papel) finos até ao grotesco, afilados por uma expressão energica de crueldade, de resolução firme e de rigoroso desprezo pelas dôres humanas, agitavam-se n'uma phrase de morte, figurando as syllabas do meu nome; mas aquelle movimento não era seguido de nenhum som! Vi, tambem, durante um momento de horroroso delirio, as ondulações brandas quasi imperceptiveis dos cortinados negros, que revestiam as paredes da sala; e sete grandes archo tes que estavam collocados em cima da mesa. Estes appareceram-me primeiramente sob o aspecto da caridade, semelhantes a anjos esbeltos e brancos que deviam salvar-me, depois, de repente as fórmas angelicas converteram-se em espectros insignificantes, com cabeças de lume. Comprehendi que não tinha protecção alguma a esperar d'elles, e todo o meu corpo estremeceu como se houvesse tocado os fios de uma pilha voltaica.

Então, a idéa do repouso delicioso que nos espera no tumulo, passou-me pela imaginação como uma harmonia divina. Essa idéa veiu lenta, furtivamente. Demorei-me muito tempo a percebel-a; e no momento em que começava a sentil-a perfeitamente no espirito e a acaricial-a, as figuras dos juízes desvaneceram-se, como por magia, os grandes archotes apagaram-se, sobreveiu a escuridão das trevas... Todas as sensações pareceram submergir-se, como se de um mergulho louco a minha alma se houvesse precipitado no Hadés. E o universo não foi mais senão noite, silencio e immobilidade!

Estava desmaiado. Comtudo, não direi que tivesse de todo perdido os sentidos. Não tentarei definir nem mesmo descrever a pouca consciencia que me restava; mas ainda tinha alguma.

No somno mais profundo, no delirio, no desmaio, na morte... sim! até no tumulo, ha sempre um resto de consciencia! D'outro modo não haveria immortalidade para o homem. Quando accordamos de um somno profundo, rasgamos a tela de aranha de algum sonho, e, um segundo depois (tão franzino era talvez aquelle tecido) não nos lembramos de ter sonhado. Na passagem do desmaio á vida ha dois gráos: o primeiro é o sentimento da existencia moral ou espiritual, o segundo o sentimento da existencia physica. É provavel que se quando chegamos ao segundo gráo pudessemos evocar as impressões do primeiro, achassemos n'ellas todas as lem- branças eloquentes do abysmo transmundano. E que é esse abysmo? Como poderemos ao menos distinguir as suas sombras das do tumulo?

Mas se as impressões d'aquillo a que chamei primeiro grão não acodem ao mando da vontade, todavia, depois de um intervallo, muitas vezes grande, não apparecem ellas em ser chamadas; então que já não sabemos de todo d'onde nos possam vir. Quem nunca perdeu os sentidos, não pode descobrir palacios estranhos e physionomias curiosamente familiares nas brazas ardentes, não póde contemplar, fluctantes no meio dos ares, visões melancolicas, que o vulgo não percebe; não medita sobre o perfume de uma flor desconhecida, nem póde o seu ouvido deleitar-se na audição longinqua de uma melodia mysteriosa!

No meio de esforços repetidos e intensos, para recolher alguns vestigios d'essa especie de morte transitoria, pela qual a minha alma passou, tem havido momentos em que a minha energica applicação parece triumphar; instantes, pequeninos instantes, em que tenho conjurado lembranças que a razão me demonstra não poderem referir-se senão a esse estado de anniquilamento apparente. Estas lembranças confusas apresentam-me, muito indistinctamente, grandes figuras transportando-me silenciosamente e descendo, descendo sempre até ao momento em que me assaltou uma vertigem horrivel, á idéa do infinito na descida. Depois vem o sentimento de uma paragem repentina como se as pessoas que me levavam (um cortejo de espectros) houvessem ultrapassado n'aquella marcha os limites do illimitado e tivessem estacado, vencidos pelo infinito da jornada. Em seguida, encontro a lembrança de uma sensação de humidade, de mal-estar; depois, nada mais senão loucura, a loucura de uma memoria que se debate no abominavel...

Emfim, voltou-me a consciencia do som e o movimento; o movimento tumultuoso no coração e no ouvido, o ruido das suas palpitações. Depois, a simples consciencia da existencia, sem nenhum outro pensamento (situação que durou muito tempo). De repente veiu a intelligencia, e com ella um terror gélido e um esforço violento para comprehender a realidade do meu estado. Depois, um grande desejo de recahir na insensibilidade. Depois, brusco renascimento da alma, a sensação do tacto e a faculdade da locomoção. E então, a lembrança clara, precisa do processo, dos cortinados negros, da sentença, do desmaio. Mas d'ahi por deante o completo esquecimento. Foi só muito mais tarde, á força de perseverançà, que cheguei a descortinar vagamente as lembranças confusas d'esse periodo de inanimação quasi absoluta.

Ainda não tinha aberto os olhos; sentia-me deitado de costas e sem algemas. Estendi a mão, que cahiu pesadamente sobre o solo humido e duro. Deixei-me ficar assim durante alguns minutos, esforçando-me por adivinhar onde estava e o que tinha sido feito de mim. Tinha vontade de abrir os olhos; mas não ousava fazel-o, tanto terror me infundia o primeiro olhar que ia lançar sobre os objectos que me rodeavam!

Não era que tivesse medo de vêr cousas horriveis; o que me aterrava era a idéa de não vêr nada. Por fim, com uma agonia indescriptivel, abri os ollos. A minha horrorosa apprehensão achava-se confirmada. Envolvia-me a escuridão da noite eterna. Fiz um esforço para respirar; parecia que me suffocava a intensidade das trevas; a atmosphera era intoleravelmente pesada! Deixei-me ficar pacificamente deitado, diligenciando sempre por exercitar o entendimento. Lembrei-me dos processos da Inquisição, e, partindo d'esse principio, appliquei-me a deduzir a minha posição real. A sentença fôra pronunciada. Afigurava-se-me que um seculo havia decorrido depois d'isso. (Comtudo, não cheguei a julgar-me já morto: tal idéa, não obstante todas as ficções litterarias, é inteiramente incompativel com a existencia real). Mas onde estava eu, e em que estado? Sabia que os condemnados morriam ordinariamente nos autos de fé. Tinham-se celebrado uma d'essas solemnidades, mesmo na vespera do meu julgamento. Acaso me teriam reconduzido á masmorra para esperar o proximo sacrificio, o qual só teria logar d'ahi a alguns mezes? Vi logo que aquella solução não podía ser a verdadeira. O contingente das victimas havia sido immediatamente requisitado. Além d'isso, a minha antiga masmorra, como todas as cellulas dos condemnados em Toledo, era calçada e tinha alguma luz.

De repente, a uma idéa terrivel, todo o sangue me affluiu ao coração, e, durante alguns instantes, recahi na insensibilidade. Quando voltei a mim, ergui-me n'um pulo, tremendo convulsamente dos pés até á cabeça. Estendi loucamente os braços em todas as direcções. As minhas mãos não encontraram nada; comtudo, tremia de dar um passo, com medo de esbarrar nas paredes do tumulo. O suor manava-me da fronte em bagas grossas e geladas. Por fim a agonia da incerteza tornou-se intoleravel; avancei com precaução, estendendo os braços, e esbogalhando os olhos para fóra das orbitas, na esperança de surprehender algum raiosinho de luz. Dei muitos passos; tudo era negro e vacuo. Respirei melhor. Emfim, pareceu-me evidente que o mais horroso dos supplicios não era o que me estava reservado.

Enquanto continuava a avançar cautelosamente, todos os rumores vagos que corriam sobre os horrores de Toledo, atravessaram de tropel a minha imaginação. Contavam-se cousas extraordinarias d'aquellas masmorras (cousas que eu considerára sempre como fabulas) tão estrahas e tão espantosas, que não se diziam senão em voz baixa. Seria acaso a minha sorte morrer á fome n'aquelle mundo de trevas? Ou que destino ainda mais cruel me estaria reservado? Que o resultado havia de ser a morte, e uma morte barbaramente escolhida, d'isso não me restava a menor duvida, a mim que conhecia bem o caracter dos meus juizes. O que me preoccupava era a fórma e a hora.

D'ahi a pouco as minhas mãos estendidas encontraram um obstaculo solido. Era uma parede que parecia de pedra, muito lisa, humida e fria. Caminhei ao longo d'ella com a cautelosa desconfiança que me inspiravam certas historias antigas. Comtudo, por aquelle processo, nunca chegaria a verificar as dimensões da masmorra; porque podia percorrel-a toda em redor, e voltar ao ponto d'onde tinha partido, sem dar por isso, tão perfeitamente uniforme parecia a parede. Procurei a navalha que trazia na algibeira na occasião de entrar para o tribunal; mas não a achei, porque o meu fato fôra trocado por uma tunica de sarja grosseira. Tinha-me lembrado enterral-a n'alguma fendasinha, para servir de signal ao ponto de partida. A difficuldade, comtudo, não era grande; mas a principio, com a desordem que me ia no pensamento, pareceu-me invencivel. Rasguei um pedaço da orla da tunica e estendi-o ao comprido, no chão, perpendicularmente á parede. Agora, seguindo o meu caminho, ás apalpadelas, em torno da masmorra, não podia deixar de encontrar o trapo, quando tivesse completado a volta. Pelo menos assim pensava eu; mas não tinha feito conta nem da extensão da masmorra, nem da minha propria fraqueza. O terreno era humido e escorregadio. Fui cambaleando durante algum tempo, depois tropecei e cahi. O cançaço decidiu-me a ficar deitado, e insensivelmente adormeci.

Quando accordei, tinha ao meu lado um pão e uma bilha d'agua. O meu cerebro estava muito fraco para reflectir sobre aquella circumstancia, mas comi e bebi com avidez. Pouco tempo depois, recomecei a minha viagem á roda da prisão, e, com muito custo, cheguei ao boccado de sarja. No momento em que cahi, tinha já contado cincoenta e dois passos; recomeçando o meu passeio, contei ainda quarenta e oito, antes de chegar ao trapo. Portanto, ao todo, tinha andado cem passos. Suppondo cada dois passos eguaes a uma jarda, calculei o circuito da masmorra em cincoenta jardas. Todavia, como encontrára muitos angulos na parede, continuava a não fazer idéa nenhuma da fórma do subterraneo, porque não podia deixar de crêr que estava n'um subterraneo.

A dizer a verdade, aquellas investigações não me inspiravam grande interesse, e esperança absolutamente nenhuma; mas uma curiosidade vaga impelliu-me a continual-as. Resolvi pois atravessar a superficie circumscripta. Afastando-me da parede, comecei a andar com toda a precaução; porque o solo, embora parecesse feito de uma materia dura, era traidor e viscoso. Por fim, ganhei coragem, e entrei a caminhar afoitamente, diligenciando por ir o mais possível em linha recta. Tinha avançado assim uns dez ou doze passos, quando o resto da orla que ficára pendurada ás roupas se me embaraçou nas pernas, fazendo-me cahir para a frente.

Na atrapalhação da queda, não notei logo uma circumstancia algum tanto extraordinaria, que, comtudo, passado um momento, e emquanto estava ainda por terra, me fixou toda a attenção. Eil-a: a minha barba pousava no solo da prisão, mas os labios e a parte superior da cabeça estavam em falso e como situados a maior elevação que a barba. Ao mesmo tempo, pareceu-me sentir a fronte banhada por um vapor glutinoso, e veiu-me ao nariz um cheiro exquisito, particular aos cogumellos podres. Estendi o braço, e estremeci ao descobrir que tinha cahido mesmo á borda de um poço circular, cuja extensão não podia, n'aquelle momento, medir de maneira nenhuma, Apalpando-o à roda do boccal, consegui arrancar uma pedrinha que deixei cahir lá dentro. Durante alguns instantes ouvi-lhe os ricochetos nos muros do abysmo, depois o choque lugubre na agua, seguidos de echos estridentes. N'aquelle momento senti por cima da cabeça como o ruido de abrir e fechar uma porta, e ao mesmo tempo, um raiosinho de luz atravessou subitamente a escuridão, desvanecendo-se quasi logo.

Vi claramente o destino que me fôra preparado e dei parabens á minha fortuna pelo accidente opportuno que me salvára. Um passo mais e o mundo estava acabado para mim. Aquella morte, evitada a tempo, tinha perfeitamente o caracter terrivel e mysterioso das historias que se contavam da Inquisição, historias que eu tivera sempre por fabulosas e absurdas. Para as victimas d'aquella tyrannica instituição, não havia outra alternativa: ou a morte com as suas mais crueis agonias physicas, ou a morte com as suas abominaveis torturas moraes. Eu estava reservado para a segunda. Os meus nervos, excitados ao ultimo gráo pelo soffrimento moral, tornavam-me um magnifico exemplar para o genero de tortura que me esperava.

Convulso e trémulo de terror, recuei ás apalpadelas até á parede, resolvido a deixar-me antes alli morrer do que a affrontar novamente o horror dos poços (a minha imaginação multiplicava-os agora por toda a parte nas trevas da masmorra). N'outra disposição de espirito, teria tido coragem de acabar por uma vez com as minhas miserias, precipitando-me de mergulho n'um d'esses abysmos; mas então, o espanto tornara-me o mais cobarde de todos os homens. Além d'isso, não podia esquecer o que tinha lido a respeito d'aquelles poços (que a morte instantanea era uma possibilidade cuidadosamente excluida pelo genio infernal do seu inventor).

A agitação do espirito conservou-me accordado durante algumas horas; mas por fim tornei a pegar no somno. Ao despertar, achei ao meu lado, como da primeira vez, um pão e uma bilha d'agua. Consumido por uma sêde devoradora, despejei a bilha de um só trago. Aquella agua continha por força qualquer droga soporifera, porque apenas a bebi, senti um somno irresistivel e adormeci profundamente; parecia o somno da morte! Não posso dizer quanto tempo assim dormi; mas quando tornei a abrir os olhos, os objectos que me cercavam já não estavam immersos nas trevas. Graças a uma claridade singular, sulfurosa, cuja origem não soube primeiro interpretar, podia vêr o tamanho e o aspecto da prisão.

Tinha-me enganado muito sobre as suas dimensões. As paredes não podiam ter mais de vinte e cinco jardas de circuito. Durante alguns minutos aquella descoberta produziu em mim grande perturbação; perturbação pueril na verdade, porque, no meio das circumstancias terriveis que me ameaçavam, que me importavam as dimensões da prisão? Entretanto, a minha alma interessava-se caprichosamente por aquellas bagatellas. Appliquei-me sériamente a perceber o erro que havia commettido na medição, até que a verdade me appareceu como um relampago. Na minha primeira tentativa de exploração tinha contado cincoenta e dois passos, até ao momento de cahir. Devia estar então a um ou dois passos do trapo de sarja, isto é, quasi que tinha dado a volta ao subterraneo. Adormecera então; quando accordei, devo ter necessariamente voltado para traz, creando assim um circuito duplo do circuito real. Na confusão de idéas em que me achava, não reparei que tinha começado o meu giro com a parede á direita e que o acabava com a parede á esquerda.

Tambem me havia enganado com relação á fórma. Sondando o meu caminho, tinha achado muitos angulos, e d'ahi deduzido a idéa d'uma grande irregularidade (tão poderoso é o effeito da escuridão total sobre quem sáe d'um lethargo ou d'um somno!) Aquelles angulos eram simplesmente produzidos por ligeiras depressões, a intervallos deseguaes. A fórma geral da prisão era um quadrado. O que eu tinha tomado por alvenaria, parecia ferro ou qualquer outro metal, em chapas enormes, cujas juntas produziam as taes depressões. Toda a superficie d'aquella construcção metallica era grosseira e toscamente pintada com os differentes emblemas medonhos e repellentes que a superstição sepulcral dos frades tinha inventado. Figuras de demonios com ares ameaçadores, esqueletos, e outras imagens ainda mais horrorosas, manchavam as paredes em toda a sua extensão. Os contornos d'essas monstruosidades distinguiam-se bem, mas as côres estavam desbotadas e gastas, como que pelo effeito d'uma atmosphera humida. Reparei então no solo, que era de pedra. No centro abría-se o poço circular, ás guelas do qual eu tinha escapado. Não havia senão aquelle na masmorra.

Vi tudo isso indistinctamente e não sem esforço, porque a minha situação physica tinha mudado singularmente durante o somno. Agora estava deitado de costas, ao comprido, sobre uma especie de tarima, muito baixa, e solidamente ligado a ella por uma faixa comprída, que parecia uma cilha. Aquella faixa enrolava-se-me ao corpo em muitas voltas, não deixando livres senão a cabeça e o braço esquerdo; ainda assim, precisava fazer um grande esforço para chegar ao alimento, contido n'um prato de barro, collocado no chão, ao meu lado. Vi com terror que a bilha d'agua tinha desapparecido; digo com terror, porque sentia uma sêde intoleravel. Além d'isso, parecia-me que entrava nos projectos dos meus carrascos o exasperar-m'a, porque o alimento contido no prato era carne cruelmente picante.

Levantei os olhos e examinei o tecto da prisão. Tinha trinta ou quarenta pés de altura, e pela construcção era semelhante ás paredes lateraes. Attrahiu-me a attenção uma figura singular, pintada lá em cima. Era a imagem do tempo, tal como se costuma representar, com uma differença só: em vez da foice, tinha na mão um objecto, que á primera vista me pareceu um pendulo enorme, como aquelles que se vêm nos relogios antigos.

Havia comtudo n'aquella machina alguma cousa que me obrigou a consideral-a com mais cuidado. Como eu a observasse directamente, com os olhos erguidos (porque estava collocada exactamente por cima de mim) pareceu-me vêl-a agiar-se. Bastou um momento para confirmar a minha idéa. As oscillações do pendulo eram curtas e por conseguinte muito lentas. Observei-o durante algum tempo, não sem uma certa desconfiança, mas sobretudo com espanto. Aborrecido, emfim, de vigiar o seu movimento monotono, voltei os olhos para os outros objectos da cellula. D'ahi a pouco ouvi um ruido ligeiro e vi um bando de ratos enormes, que sahiam do poço ao cheiro da carne, precipitando-se sobre o prato com olhos vorazes. Tive de empregar esforços violentos para os enxotar.

Haveria decorrido meia hora ou uma hora, talvez (porque não tinha meio de medir o tempo precisamente) quando tornei a levantar os olhos para o tecto. O que então vigelou-me de pavor! O percurso do pendulo tinha avançado quasi uma jarda; a sua descida era evidente e a sua velocidade muito maior.

Notei então (não preciso dizer com que espantoso terror!) que a sua extremidade inferior tinha a fórma de um crescente de aço scintillante, tendo pouco mais ou menos um pé de comprimento, d'um ao outro bico. Estes estavam voltados para cima; e o gume inferior, afiado como uma navalha de barba, dilatava-se a partir do fio, n'uma fórma larga e solida. Estava preso a uma grossa vara de cobre, e tudo aquillo sibilava balouçando-se no espaço.

Adivinhei immediatamente a sorte que me tinha preperado a atroz imaginativa monacal. Os agentes da inquisição tinham-me visto descobrir o poço (o poço cujos horrores eram reservados aos hereges temerarios como eu! o poço symbolo do inferno, considerado pela opinião como Ultimo Thule de todos os castigos!) Ora, como a arte de fazer do supplicio uma surpresa, formava um ramo importante de todo aquelle phantastico systema de execuções secretas, desde o momento em que eu tinha, pelo mais fortuito dos accidentes, escapado ao abysmo, não entrava no plano demoniaco precipitar-me n'elle. Estava pois votado (e d'esta vez sem alternativa possivel) a um novo modo de destruição.

Para que hei de relatar as longas, longas horas de agonia mais que mortal, durante as quaes contei as oscillações vibrantes do aço?

Pollegada por pollegada, linha por linha, a machina terrivel operava uma descida graduada, só apreciavel a intervallos, que me pareciam seculos! E descia sempre, sempre cada vez estava mais baixa! Decorreram dias, muitos dias talvez antes de chegar a balançar-se assaz perto de mim para me ventilar com o seu sopro medonho.

O cheiro do aço afiado mettia-se-me já pelo nariz. Pedi a Deus (fatiguei-o com as minhas preces!) para que o fizesse descer com mais rapidez! Enlouqueci; debati-me em esforços freneticos e inuteis para ir ao encontro da terrivel cimitarra movediça. Depois, subitamente, cahi n'um grande abatimento e fiquei immovel, sorrindo áquella morte scintillante, como uma creança sorri a um brinquedo precioso.

Houve um novo intervallo de completa insensibilidade; intervallo muito curto, porque ao recuperar os sentidos não achei que o pendulo tivesse descido extensão apreciavel. Mas talvez que o meu desmaio tivesse sido longo e que os demonios, que me espionavam, tivessem parado a vibração durante a minha insensibilidade.

Quando voltei a mim, senti necessidade de comer, tão certo é que a natureza humana reclama sempre os seus direitos, mesmo no meio das agonias mais terriveis. Estendi o braço esquerdo com um esforço penoso e agarrei um resto de carne, que os ratos se tinham dignado deixar-me. No momento de o levar á bocca, atravessou-me o espirito um pensamento informe de alegria, de esperança. Mas que podia haver de commum entre mim e a esperança? Era, digo, um pensamento informe (o homem tem muitas vezes pensamentos semelhantes, que nunca chegam a completar-se). Senti que aquelle era um pensamento de alegria, de esperança; mas senti tambem que morrera ao nascer. Em vão me esforcei por o recobrar, por completal-o.

O soffrimento quasi que me havia anniquilado as faculdades ordinarias do espirito; estava imbecil, idiota!

A vibração do pendulo se effectuava n'um plano perpendicular ao meu comprimento. O crescente estava disposto de modo a atravessar-me a região do coração. Escarpelar-me-ia primeiro a sarja da tunica, em seguida voltaria a repetir a mesma operação, depois outra vez, e ainda outra vez. Apesar da enorme dimensão da curva percorrida (alguns trinta pés ou mais), e da energia sibilante da sua descida, que teria cortado juntas todas aquellas paredes de ferro, o mais que podia fazer, durante alguns minutos, era escarpelar-me a tunica. N'este pensamento fiz uma pausa, não ousando levar mais longe a reflexão. Insisti n'elle com pertinaz attenção, como se aquella insistencia pudesse parar a descida do aço. Appliquei-me a meditar sobre o som que produziria o crescente ao atravessar o meu vestuario; sobre a sensação particular e penetrante que produz nos nervos a fricção do ferro. Cogitando sobre taes futilidades, os meus dentes batiam uns nos outros.

Mais baixo! cada vez mais baixo!... o pendulo escorregava sempre! o meu espírito comprazia-se, n'uma especie de voluptuosidade feroz, a comparar a sua velocidade longitudinal com a sua velocidade lateral. Para a direita! para a esquerda! e depois fugia, fugia! e depois voltava, com o rugido d'um espirito damnado e o andamento furtivo d'um tigre, direito ao meu coração! Eu ria e urrava alternativamente, conforme os pensamentos que me assaltavam o cerebro.

Mais baixo! invariavelmente mais baixo, impiamente mais baixo!... O aço vibrava agora a tres pollegadas do meu peito! Fiz um esforço violento, furioso para desembaraçar o braço esquerdo; foi em vão. Livre só do cotovello para baixo, mal podia levar a mão desde o prato, collocado ao meu lado, até á bocca e nada mais! Se houvesse conseguido desamarral-o, teria agarrado o pendulo, tentando detel-o. Teria sido o mesmo que querer parar uma avalanche.

Cada vez mais baixo! incessante, inevitavelmente mais baixo! Suspirava dolorosamente e estremecia a cada vibração do medonho pendulo. Encolhia-me convulsivamente a cada um dos seus balanços. Os meus olhos, loucos de desespero, seguiam-lhe os movimentos ascendentes, fechando-se espasmodicamente no momento da descida. Posto que a morte tivesse sido uma consolação (oh! que indizivel consolação!) todo eu tremia ao pensar que bastava a machina descer mais um furo, para me enterrar no peito aquelle gume amolado e scintillante. Era a esperança que me fazia assim tremer, que me me levava a querer ainda demorar. Era a esperança! a esperança que triumpha do homem, até no cavallete; que fala ao ouvido do condemnado, até nas masmorras da Inquisição!!

Bastavam mais dez ou doze vibrações para pôr o aço em contacto immediato com o meu vestuario! Com esta observação, entrou-me no espirito o socego pungente do desespero. Pela primeira vez, desde bastantes horas (desde días, talvez), pensei. Pensei que se a faixa que me cingia, fosse feita d'uma só tira, a primeira mordedura do crescente devia deslaçal-a bastante para permittir á minha mão esquerda o movimento preciso para a desenrolar toda. Mas quão terrivel se tornaria então a proximidade do aço! E o resultado do mais pequeno tremor, mortal! Além d'isso, era verosimil que os meus graciosos carrascos não houvessem previsto e impedido aquella possibilidade? Era possivel que a ligadura me atravessasse o peito no caminho do pendulo? Tremendo de vêr frustrada a minha fraca, a minha unica esperança, levantei um pouco a cabeça, para vêr distinctamente o peito a faixa envolvia-me escrupulosamente o corpo e os membros em todos os sentidos, excepto no caminho do crescente homicida.

Apenas deixei recahir a cabeça na primeira posição, senti que me brilhava no espirito uma idéa que eu não saberia definir sinão como a metade não formada d'aquelle pensamento de libertação, de que acima falei, e do qual só metade me tinha vagamente fluctuado no cerebro, no momento em que levava o alimento aos labios. A idéa inteira apparecia agora; fraca, mal definida, viavel apenas, mas emfim completa; comecei immediatamente a pôl-a em execução, com a energia do desespero.

A vizinhança immediata da tarima onde eu jazia, regorgitava de ratos. Tumultuosos, vorazes, atrevidos, com os olhos vermelhos cravados em mim, pareciam não esperar senão a immobilidade da morte para tomar conta da sua prêsa. A que especie de alimento, pensei eu, estão elles habituados n'este poço?

Apesar dos meus esforços, aquella bicharia voraz havia devorado quasi todo o conteúdo do prato, e os seus dentes agudos tinham-se, por mais de uma vez, ferrado na mão, que eu estendia constantemente para defender o meu alimento. Agarrei o resto da carne gordurosa e esfreguei com ella a atadura, por toda a parte onde pude chegar-lhe. Depois, deixei-me ficar immovel e sem respirar, fingindo-me morto.

Intimidados primeiro com a minha inercia repentina, os ratos alvoroçaram-se, voltaram as costas e tornaram a entrar no poço. Mas vendo que eu continuava sem movimento, voltaram atraz. Um ou dois dos mais atrevidos treparam á tarimba e começaram a cheirar a faixa. Foi o signal de uma invasão geral. Sahiram tropas frescas do poço, agarraram-se todos ás taboas, escalaram nas e saltaram aos centos em cima de mim.

O movimento regular do pendulo não os perturbava absolutamente nada. Evitavam-lhe a passagem e trabalhavam activamente sobre a ligadura engordurada. Apertavam-se, formigavam, empilhavam-se em cima de mim. Enroscavam-se-me na garganta; os seus labios frios procuravam os meus; suffocava-me o seu peso multiplicado. Uma repugnancia, que não tem nome, revolvia-me o estomago em nauseas intoleraveis! Mas com uma resolução sobrehumana, deixei-me ficar immovel. Conhecia que a ligadura devia já estar cortada em mais de um ponto; senti-a positivamente alargar. Ainda um momento e a horrivel operação estava terminada! Não me tinha enganado nos meus calculos, não soffrera em vão! Emfim, senti que estava livre; a faixa cahiu em farrapos á roda do meu corpo. Era tempo! o movimento do pendulo atacava-me já o peito. A sarja da tunica estava rota; a camisa cortada... Fez ainda duas oscillações, e a sensação de uma dôr aguda arripiou-me o corpo todo. Felizmente, o instante da salvação estava chegado! Fiz um gesto, e os meus libertadores fugiram tumultuosamente. Então, com um movimento tranquillo, prudente e obliquo, lentamente, encolhendo-me todo, escorreguei para fóra da ligadura e para longe dos golpes da cimitarra. Estava livre!

Livre! e nas garras da inquisição! Mal tinha sahido do meu leito de horror, dera apenas alguns passos no solo da prisão, quando a machina infernal parou e tornou a subir ao tecto, attrahida por uma força invisivel. Aquella manobra foi uma lição terrivel para mim. Indubitavelmente todos os meus movimentos eram espionados.

Livre! Escapo á morte sob uma fórma de agonia; mas para recahir n'ella sob outra talvez ainda peior. A este pensamento, percorri a masmorra com um olhar desvairado. Um phenomeno singular, que a principio não pude apreciar distinctamente, tinha mudado o aspecto da prisão. Durante alguns momentos de distracção, de sonhos e de terrores, perdi-me em conjecturas vagas e incoherentes. N'esse meio tempo percebi pela primeira vez a origem da luz sulfurosa, que esclarecia a cellula. Procedia de uma fenda, da largura de meia pollegada pouco mais ou menos, alongando-se em redor da prisão, junto á base das paredes, e separando-as completamente do solo. Abaixei-me e tentei em vão espreitar por aquella abertura. No momento em que me levantava, desanimado, o mysterio da metamorphose do quarto revelou-se subitamente á minha intelligencia. Os contornos e as côres das figuras muraes, d'antes desvanecidas, acabaram de ganhar um brilho surpreendente e intenso, que augmentava a cada instante, dando aquellas imagens phantasticas e diabolicas um aspecto que teria feito arripiar nervos mais solidos que os meus. De todos os lados surgiam olhos de demonios, dardejando sobre mim com uma ferocidade sinistra e brilhando com o esplendor lugubre de um fogo, que eu me esforçava em vão por julgar imaginario.

Imaginario! Bastava-me respirar para sentir no pulmão o vapor do ferro aquecido e no nariz o cheiro suffocante que se derramava por toda a prisão! Os olhos diabolicos, que contemplavam a minha agonia, brilhavam com ardor cada vez mais fundo, emquanto as pinturas horriveis das paredes vermelhas purpureavam-se de um modo progressivo e terrivel! O designio dos meus algozes era evidente. Oh! impios entre os impios, oh! homens demoniacos !

Offegante, podendo apenas respirar, fugi do metal ardente para o centro da masmorra, onde a frescura do poço se me apresentava como um balsamo, em face d'aquella destruição pelo fogo. Corri para elle; sondei-o com a vista. A claridade da abobada inflammada illuminava-lhe todos os recantos. Comtudo, durante um momento de delirio, o espirito negou-se-me a comprehender o que viam os olhos. Mas a evidencia entrou, emfim, na minha alma, a força, victoriosamente, imprimindo-se-me no cerebro em caracteres de fogo. Oh! horror! Oh! todos os horrores excepto aquelle! Com um grito de terror, fugi para longe do poço e, escondendo o rosto entre as mãos, chorei amargamente.

O calor augmentava de um modo atroz. Levantei outra vez os olhos, tremendo, como n'um accesso de febre. A cellula tinha soffrido nova mudança, e agora essa mudança era evidentemente na fórma. Como das outras vezes, comecei por não entender o que se passava. Mas não me deixaram muito tempo em duvida. A vingança da Inquisição caminhava a passos largos. Duas vezes a minha felicidade a tinha derrotado; não se brincava muito tempo com o rei do Terror!

O quarto tinha sido quadrado. Agora dois dos seus angulos tinham-se tornado agudos; por conseguinte obtusos os outros dois. O terrivel contraste augmentava rapidamente, com um ruido surdo e prolongado. N'um instante a cellula tinha tomado a fórma de um losango. Mas a transformação não parou alli. Nem eu esperava, nem eu queria que parasse. Vinham-me tentações de cingir ao corpo aquellas paredes vermelhas como um vestuario de paz eterna. A morte, dizia eu commigo, a morte não importa qual, excepto a do poço!

Insensato! Como não via eu que o poço havia de ser por força; que o poço era o fim do ferro em braza, que me cercava? Podia acaso resistir ao fogo? Teimar com a sua pressão?

E o losango achatava-se! achatava-se com uma rapidez que me dava tempo de reflectir. O seu centro coincidia justamente com o abysmo aberto. Tentei recuar; mas as paredes apertando-se, empurravam-me irresistivelmente, Emſim, chegou o momento em que o meu corpo queimado e contrahido, mal tinha logar no espaço da prisão... Desisti de luctar; e a agonia da minha alma exhalou-se n'um grito supremo de desespero! Senti-me cambalear para o abysmo. Fechei os olhos...

Subitamente, chegou-me aos ouvidos um ruido discordante de vozes humanas, uma explosão, uma tempestade de trombetas! Um rugido formidavel como o de um milhar de trovões! As paredes de fogo recuaram precipitadamente. Um braço salvador agarrou o meu, no momento em que ia tombar no abysmo. Era o braço do general Lassalle. O exercito francez tinha entrado em Toledo. A Inquisição estava vencida...