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Novellas extraordinarias/Silencio

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SILENCIO[1]





Escuta, — disse o demonio, pousando a mão sobre a minha cabeça. — O paiz de que te falo, é um paiz lugubre, na Libya, sobre as margens do rio Zaire. E alli não ha repouso nem silencio.

As aguas do rio, amarellas e insalubres, não correm para o mar, mas palpitam sempre sob o olhar ardente do sol, com um movimento convulsivo. De cada lado do rio, sobre as margens lodosas, estende-se ao longe um deserto sombrio de gigantescos nenuphares, que suspiram na solidão, erguendo para o céo os longos pescoços espectraes, meneando tristemente as cabeças sempiternas. E do meio d'elles sáe um sussurro confuso, semelhante ao murmurio de uma torrente subterranea. E os nenuphares, voltados uns para os outros, suspiram na solidão.

E o seu imperio tem por limites uma floresta alta, cerrada, medonha! Lá, com as vagas em torno das Hébridas, os pequenos arbustos agitam-se sem repouso, (comtudo não ha vento no céo!) e as grandes arvores primitivas oscillam continuamente, com um estrepito enorme. E dos seus cumes elevados, filtra gotta a gotta um orvalho eterno. E a seus pés estorcem-se, n'um somno agitado, flores desconhecidas e venenosas. E por cima das suas cabeças, com um ruge-ruge retumbante, precipitam-se as nuvens negras, a caminho do occidente, até rolarem em cataractas para traz da muralha abrazada do horisonte. E nas margens do rio Zaire não ha nem repouso nem silencio.

Era noite, e a chuva cahia; e emquanto cahia era agua, mas quando chegava ao chão era sangue! E eu estava na planície lodosa, por entre os nenuphares, vendo a chuva que cahia sobre mim. E. os nenuphares, voltados uns para os outros, suspiravam na solemnidade da sua desolação.

De repente, appareceu a lua através do nevoeiro funebre; vinha toda carmezim; e o meu olhar cahiu sobre um rochedo enorme, sombrio, que se erguia á borda do Zaire, reflectindo a claridade da lua; era um rochedo sombrio, sinistro, de uma altura descommunal!

Sobre o seu cume estavam gravadas algumas lettras. Caminhei através do pantano dos nenuphares, até á margem, para lêr as lettras gravadas na pedra; mas não pude decifral-as. Ia tornar para traz, quando a lua brilhou mais viva e mais vermella; olhando outra vez para o rochedo, distingui os caracteres. E esse caracteres diziam: Desolação.

Levantei os olhos; na crista do rochedo estava um homem de figura magestosa. Pendia-lhe dos hombros a antiga toga romana, cobrindo-o até aos pés. Os contornos da sua pessoa não se distinguiam, mas as feições eram as da divindade, porque brilhavam através da escuridão da noite e do nevoeiro. Tinha a fronte alta e pensativa, os olhos profundos e melancolicos. Nas rugas do semblante, liam-se-lhe as legendas da desgraça e da fadiga, o aborrecimento da humanidade e o amor da solidão. Escondi-me no meio dos nenuphares para vêr o que aquelle homem fazia alli.

E o homem sentou-se no rochedo, deixou pender a cabeça sobre a mão e espraiou a vista pela soledade; contemplou os arbustos buliçosos e as grandes arvores primitivas, depois, ergueu os olhos para o céo e para a lua carmezim. E eu observava as acções do homem escondido no meio dos nenuphares; e o homem tremia na solidão. Comtudo, a noite avançava, e elle ficava assentado sobre o rochedo.

Então, o homem desviou os olhos do céo para rio lugubre, para as aguas amarellas do Zaire, e para as legiões sinistras dos nenuphares, escutando-lhes os suspiros melancolicos e as oscillações murmurantes. E eu espreitava-o sempre do meu esconderijo; e o homem tremia na solidão. Comtudo, a noite avançava e elle ficava sentado sobre o rochedo.

Embrenhei-me nas profundezas longinquas do pantano; caminhei para a floresta dos nenuphares, e chamei os hippopotamos, que habitavam a espessura do bosque. E os hippopotamos ouviram o meu appello e vieram com os behemothes até ao pé do rochedo, e soltaram um rugido medonho. E eu, escondido por entre os nenuphares, espreitava os movimentos do homem; e o homem tremia na solidão. Comtudo, a noite avançava e elle ficava sentado sobre o rechedo.

Então evoquei os elementos; e uma tempestade horrorosa sobreveiu. E o céo tornou-se livido pela violencia da tempesdade, e a chuva cahia em torrentes sobre a cabeça do homem, e as ondas do rio trasbordavam, e o rio espumava enfurecido, e os nenuphares suspiravam com mais força, e a floresta debatia-se com o vento, e o trovão ribombava, e os raios flammejavam, e o rochedo estremecia. E eu espreitava sempre o homem do fundo do meu esconderijo; e o homem tremia na solidão. Comtudo, a noite avançava e elle ficava sentado sobre o rochedo.

Irritei-me e amaldiçoei a tempestade, o rio e os nenuphares, o vento e a floresta, o céo é o trovão. E á minha maldição os elementos emmudeceram; e a lua parou na sua carreira, e o trovão expirou, e o raio deixou de faiscar, e as nuvens ficaram immoveis, e as aguas tornaram a repousar no seu immenso leito, e as arvores cessaram de se agitar, e os nenuphares não suspiraram mais, e na floresta não se tornou a ouvir o minimo murmurio, nem a sombra de um som no vasto deserto sem limites. Olhei para os caracteres escriptos no rochedo, e os caracteres diziam agora: Silencio.

Volvi outra vez os olhos para o homem, e o seu rosto estava pallido de terror. De repente, levantou a cabeça, ergueu-se sobre o rochedo e poz o ouvido á escuta. Mas não se ouvia nem uma voz no deserto illimitado! E os caracteres gravados no rochedo diziam sempre: Silencio. E o homem estremeceu e fugiu; e para tão longe fugiu que jamais o tornei a vêr. . . . . . . .

Ora, os livros dos magos, os melancolicos livros dos magos encerram bellos contos, esplendidas historias do céo, da terra e do mar poderoso; dos genios que têm reinado sobre a terra, sobre o mar e sobre o céo sublime. Ha muita sciencia nas palavras das Sybillas. E das flores tão sombrias de Dodona sahiam outr'ora oraculos profundos. Mas jamais se ouviu uma historia tão espantosa como esta !

Foi o demonio que m'a contou, sentado ao meu lado na solidão do tumulo. Quando acabou de falar, desatou a rir, e como eu não pude rir com elle, amaldiçoou-me. Então o lynce, que vive eternamente no tumulo, sahiu do seu couto e veiu deitar-se aos pés do demonio, olhando-o fixamente nas pupillas.


  1. O Dr. Adherbal de Carvalho traduzia em bellos versos este conto. Vide Ephemeras, Aillaud, edit.