O Código Civil
Cumpriu quase a idade inteira de uma geração a tardígrada Alemanha, para elaborar um código civil. Seria talvez o fardo de sua cerebração, a carga do saber, o peso dos loiros que lhe atrasavam os passos. Em vão embebera até o âmago a sua cultura na essência luminosa desses eternos monumentos legislativos, em cuja obra pagã confessavam as constituições apostólicas resplandecer a justiça divina. Em vão erigira nas suas escolas, focos de atração para o universo, verdadeiros templos aos perpétuos lumina et numina jurisprudentiae. Foram-lhe precisos vinte e três anos, vinte e cinco in-fólios, meia dúzia de comissões, montanhas de livros, estudos e contra-estudos, para lavrar os dois mil e seiscentos artigos dessa condensação, cuja brevidade caberia nas modestas proporções de um manual.
Triste condição a das superioridades, que não produzem senão ronceira e laboriosamente. Pouco invejável temperamento o dessas raças, cujas entranhas vagarosas medem por quartéis de século o processo gestativo. Nos trópicos o viço intelectual é repentista como a seiva da terra. As grandes criações nacionais contam a sua fase embrionária por frações de ano, em vez de frações seculares. Ao remanchar da lenta Germânia vamos contrapor uma fulguração americana. O plano esboçado nas folhas vem nos dar o Código Civil numa improvisata.
Omnia vincit amor. Tudo vence o patriotismo. O ministro não tinha, no orçamento, verbas, que lhe permitissem meter mãos à obra, remunerando a encomenda, como se remuneraram tentativas anteriores. Conhecia, porém, os hábitos modestos de um dos seus ilustres colegas no magistério superior. Palpitava-lhe que não apelaria debalde para o seu desinteresse. Apelou para ele; e ei-lo que acode, sem mais contrato que a honra do chamado, sem mais compensação que o transporte da família. Mais vale que todos os estipêndios a glória de inscrever o nome numa criação, como deve ser um código civil, aere perennius.
Teremos assim a dupla vantagem da barateza na empreitada e da rapidez no desempenho. A excelência da mão-de-obra dá-se como abonada pela simples seleção do arquiteto. Ora, juntar a valia do trabalho à infimidade do preço, em negócios com artistas, ordinariamente não menos cobiçosos do lucro que do renome, é, sem dúvida o nec plus ultra da boa sorte. E, quando a raridade desse duplo achado se pode terçar com a presteza no remoto da encomenda, seria o caso de rir da fortuna bigodeada. A luta acidentada e malograda pelo Código Civil entre nós poderia acabar afinal por um Fortunae verba dedique meae.
Está, com efeito anunciado, que o governo espera apresentar o projeto às câmaras antes de terminada a sessão legislativa deste ano. Não sabemos se se ligará a este empenho a condição, imposta ao codificador como impreterível, de não arredar pé da metrópole. É absolutamente necessária a sua residência nesta capital. Por quê? Não calaria a suposta explicação de serem aqui mais fáceis os elementos da consulta.
Com esses mesmos elementos houve de lidar naturalmente o seu antecessor, a quem, pelo contrário, se afigurou muito mais profícuo o estudo à margem dos lagos da Suíça.
As capitais de mais bulício não são as mais propícias à fecundidade do trabalho mental. Nem poderíamos conceber centro mais adequado para este cometimento que uma faculdade jurídica, um núcleo de professores, como o do Recife, tão favorável, pelo seu remanso e pelo seu silêncio, à produção meditativa. Todos os elementos capitais da obra planejada estão impressos. O construtor não há de colher grande coisa, para ela, do projeto do Dr. Seabra, cadete honorário de um batalhão de Minas e oficial da ordem da Rosa; porque muito mais sabia o precoce projetista, quando, já então Visconde de Seabra, veio a dotar Portugal com o seu Código Civil, cujas edições andam aí por todas as livrarias.
Nessa antigüidade, pois, como nas outras, que acaso encerrarem os nossos arquivos, ou bibliotecas, não haverá, para a composição que se empreende, senão o mérito da curiosidade. E depois nada as chumba aos raios das estantes, ou aos escaninhos das papeleiras oficiais, de onde têm saído, sem prejuízo, confiados à honra de funcionários brasileiros, autógrafos, documentos capitais, verdadeiras preciosidades, para deixar o país, e transpor o oceano.
Dessa estipulação, pois, de estacionar no Rio de Janeiro o motivo não pode ser o que se dá. Ou o que se quer, consentaneamente à urgência do mandato, será não perder em viagens os dias, ou semanas, que elas absorveriam; e dirá então o bom senso público se esta consideração subalterna deve prevalecer a interesses superiores no feitio de uma coisa, que possa ter o nome de Código Civil. Ou, por uma inexplicável contradição com a alta confiança dispensada ao seu elaborador, o que em mente se tem, é exercer sobre essa elucubração a influência presencial, a superintendência direta das nossas secretarias de estado; o que seria, para a tarefa do erudito professor, uma calamidade, atento o divórcio radical, cujos escândalos se não contam, entre o senso jurídico e a nossa decadência administrativa.
Apuradas as contas, porém, de tudo isso transluz, acima de outra qualquer, no governo, a preocupação da celeridade. Se lhe surtir bem o processo, teremos batido todos os demais povos, e de ora em diante os códigos civis se manipularão por uma receita, de cujos produtos poderemos dizer sem lisonja, ou impostura: Velocius quam asparagi coquantur.
Ao nobre ministro da Justiça lhe arde no peito a legítima ambição da fama, tão preciosa nos moços, quando se abrasa no talento, tão profícua nos administradores, quando se acompanha com o juízo. Quis deixar a sua memória num pedestal condigno do seu merecimento.
Viu na galeria do futuro imensa lacuna: a codificação. Teve o nobre sonho de preenchê-la. Imaginou levantar, neste campo de ruínas, uma construção imortal; e o mesmo foi entrevê-la que vê-la concluída. Bateu à porta da amizade, recorreu à confraternidade, ao saber. E cuidou ter operado o milagre por uma espécie de evocação, dando-nos o Código Civil em um frigir d’ovos.
Conceber a idéia, gizar a traça, nomear o executor pouco era para a satisfação das suas aspirações. Cumpria circunscrever o maneio da empreitada em limites de tempo bastante estreitos, para assegurarem à administração atual o desvanecimento de sigilar, concluído, o progresso por ela mesma iniciado. Deve encerrar-se o congresso em princípio de setembro. Daqui até lá, menos de seis meses. Em quatro, ou cinco, terá surdido o improviso resplandecente, nova edição do parto cerebral de Zeus.
Mas, como essas imitações olímpicas têm derretido muitas asas, isso desde o tempo em que a fábula convivia e se confundia com a realidade, pena foi que o honrado ministro não consultasse a solene experiência do passado republicano, tão eloqüente contra esses açodamentos no lavor das grandes formações legislativas. O atual presidente da República certamente não assinaria nenhuma das leis fundamentais, que a sua passagem pela ditadura herdou ao novo regímen, se lhe fosse permitido amadurecê-la à luz da reflexão. O torvelinho da impaciência revolucionária precipitou a organização judicial, a reforma do processo, a Lei de Falências, o Código Penal; e cada um desses trabalhos, malamanhados pelo aforçuramento, exibe lamentavelmente os graves senões de tudo o que se faz sem ponderação, sem esmero, sem capricho, sem lima.
Na laboração do Código Civil subiam de ponto incomparavelmente as dificuldades; pois nesse empreendimento, o mais elevado a que pode mirar a civilização jurídica de uma raça, culmina, em síntese, em substratum, a ciência social. Acometer, portanto, uma criação destas, sem ter disponível, com o mármore e o escopro, o tempo, é renovar o erro de 1890, mas renová-lo com a agravante do desprezo pela experiência, e isso numa tentativa infinitamente mais delicada. Forçosamente sairá tosca, indigesta, aleijada a edificação. Teremos então de melhorá-la, ou piorá-la, pelo jeito do nosso barracão lírico, a remendos. Em vez de ser o padrão da cultura de uma época, ficará sendo o da sua incapacidade e da sua mania no criar embaraços às gerações vindoiras.
Falam nos subsídios, que, a este respeito, já enriquecem a nossa literatura jurídica, os projetos de Teixeira de Freitas, Felício dos Santos e Coelho Rodrigues. Mas esse concurso, de extrema utilidade para um estudo, para uma elaboração paciente, para uma urdidura meditativa, seria, pelo contrário, numa pressa, num repente, considerável embaraço. Quem tem diante de si exemplares magistrais, não lhes pode ficar aquém. Crescem desde então as responsabilidades. Não se sabe o que seja mais árduo: a escolha, a imitação, a emenda.
Verdade seja que, na opinião, não sabemos até que ponto exata, de um homem de espírito, cumpriria aviar nestes cinco anos o Código Civil, porque além desse termo talvez já não haja quem saiba ler. Não podemos verificar se este remoque, ou este prognóstico pessimista, zoou aos ouvidos do ministro da Justiça, e terá influído nele para a azáfama. Mas, se é por isto que nos aperta a necessidade, e bacorinha o coração ao governo; se, com o progresso que leva o nosso desamanho intelectual, estamos realmente ameaçados pelo eclipse geral do iliteratismo, melhor nos fora, em vez de nos metermos pelas funduras de uma codificação, guardar as Ordenações do Reino, mais fáceis de soletrar e entender à meia língua e à meia ração mental dos apedeutas.
Moço, como é, porém, o nobre secretário de estado, crê naturalmente no futuro. Foi para trabalhar, pois, com endereço a este que resolveu convidar o seu jovem e brilhante amigo. Lamentamos que a fascinação de gravar o seu fecit numa dessas obras patrióticas, cuja ocasião a tão poucas reserva o acaso, ou a nomeada, o seduzisse ao ponto de esquecer que o tempo só respeita as obras de que foi colaborador.
Esta comissão, que lhe encarregam, sob a cláusula de tomar por molde o projeto do seu antecessor, — sob a exigência de alinhavar em meses a sua revisão, transformação, ou hibridação pelo enxerto de outros elementos, — sob o barbicacho, em terceiro lugar, de uma espécie de assessoria ministerial, pelo ajuste de não sair, durante o serviço, das imediações do governo, amesquinha a esfera do artífice, constrange-lhe a liberdade, impõe-lhe a situação de atamancador, sem independência, originalidade, nem firmeza. Vamos ter uma compilação mistela, ou aferventada, um desses milagres da presteza, a que se poderia aplicar a frase, com que um velho professor de Latim costumava zombar das lições dos maus estudantes, preparados à carreira, detrás da porta, sobre uma perna: post januas, in pede uno.
Nessa mesma facilidade, se nos não enganamos, deu mostra sensível o ilustre jurista da imaturidade do seu espírito para incumbência tão assoberbadora. Este aliás fora o nosso voto, se no assunto o tivéssemos. Na esteira do caminho para o Código Civil cintilam nomes como o de Nabuco, Teixeira de Freitas, Felício dos Santos, Coelho Rodrigues. Falta o de Lafayette, que, pela designação da superioridade, seria hoje, de direito, o nosso codificador.
Pelo seu talento, pela sua vocação científica, pelos seus escritos, está fadado provavelmente o Sr. Clóvis Beviláqua a emparelhar com eles. Mas dizer que os rivaliza, ou se lhes aproxima, fora magoar com lisonjarias a consciência, que deve ser qualidade inata ao mérito real. Seus livros ainda não são, como alguém disse, monumentos. São ensaios notáveis: entremostram o brilhante antes da cristalização definitiva. Esboçam-se neles os predicados, que hão de constituir a gema: dar-lhe a pureza, a luminosidade, a solidez. Mas o que apresentam, por ora, é um formoso cristal, aparentemente da melhor água, ainda em lapidificação.
Aqui está por que, ao nosso ver, a sua escolha para codificar as nossas leis civis foi um rasgo do coração, não da cabeça. Com todas as suas prendas de jurisconsulto, lente e expositor, não reúne todos os atributos, entretanto, para essa missão entre todas melindrosa. Falta-lhe ainda a madureza das suas qualidades. Falta-lhe a consagração dos anos. Falta-lhe a evidência da autoridade. Falta-lhe um requisito primário, essencial, soberano para tais obras: a ciência da sua língua, a vernaculidade, a casta correção do escrever. Há, nos seus livros, um desalinho, uma negligência, um desdém pela boa linguagem, que lhes tira a concisão, lhes tolda a clareza, lhes entibia o vigor. Não somos os primeiros a lhes fazer este reparo. Sua frase não tem o sabor português: é mais estrangeira, repassada de laivos germânicos e francesismos, tropeçando por isso em impropriedades e obscuridades, que a desluzem.
O teor verbal de um código há de ser irrepreensível. Qualquer falha na sua estrutura idiomática assume proporções de deformidade. Esses trabalhos, em cada um dos quais se deve imprimir o selo de uma época e a índole de um povo, são feitos para longas estabilidades. Mas a limpidez da linguagem é o verniz, que preserva de corromperem-se as criações da pena. Um código não tolera jaças, desigualdades, achaquilhos, máculas no dizer.
Um código é, jurídica e literariamente, como do alemão se escreveu, “uma obra d’arte”. É uma construção secular. Deve apresentar as formas lapidares da duração: a sobriedade clássica na sua singeleza inteiriça e impoluta. Deve aspirar, pela correção artística, à perpetuidade, se bem, que, no direito humano nihil est quod stare perpetuo possit.
O caididissimus, expeditissimus, absolutissimus libellus de Dumoulin, o codex brevis, clarus sufficiens de Leibnitz há de ser esse primor d’obra, ou melhor será então que se não tente.
Sua obrigação é ser isso: um como esforço de epigrafia monumental do Direito: lógica, precisão, nitidez, em língua de bronze. E, para educar a mão capaz de esculpir na matéria-prima da palavra esse resumo da consciência do seu tempo, não basta o gênio: é mister a consumação da cultura. Tamanha vitória da arte não poderá ser senão o fruto supremo de uma vida na maturescência da sua força e na plenitude dos seus dias.