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O Abolicionismo/XI

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CAPÍTULO XI
Os fundamentos gerais do Abolicionismo


Pouco tempo falta para que a humanidade inteira estabeleça, proteja e garanta por meio do direito internacional o princípio seguinte: Não há propriedade do homem sobre o homem. A escravidão está em contradição com os direitos que confere a natureza humana, e com os princípios reconhecidos por toda a humanidade.

Bluntschli

Não me era necessário provar a ilegalidade de um regime que é contrário aos princípios fundamentais do direito moderno e que viola a noção mesma do que é o homem perante a lei internacional. Nenhum Estado deve ter a liberdade de pôr-se assim fora da comunhão civilizada do mundo, e não tarda, com efeito, o dia em que a escravidão seja considerada legalmente, como já o é moralmente, um atentado contra a humanidade toda. As leis de cada país são remissivas a certos princípios fundamentais, base das sociedades civilizadas, e cuja violação em uma importa uma ofensa a todas as outras. Esses princípios formam uma espécie de direito natural, resultado das conquistas do homem na sua longa evolução; eles são a soma dos direitos com que nasce em cada comunhão o indivíduo por mais humilde que seja. O direito de viver, por exemplo, é protegido por todos os códigos, ainda mesmo antes do nascimento. Na distância que separa o mundo moderno do antigo, seria tão fácil na Inglaterra ou em França legalizar-se o infanticídio como reviver a escravidão. De fato, a escravidão pertence ao número das instituições fósseis, e só existe em nosso período social numa porção retardatária do globo, que escapa por infelicidade sua à coesão geral. Como a antropofagia, o cativeiro da mulher, a autoridade irresponsável do pai, a pirataria, as perseguições religiosas, as proscrições políticas, a mutilação dos prisioneiros, a poligamia e tantas outras instituições ou costumes, a escravidão é um fato que não pertence naturalmente ao estádio a que já chegou o homem.

A teoria da liberdade pessoal, aceita por todas as nações, é a que Bluntschli, o eminente publicista suíço, discípulo de Savigny, define nestes quatro parágrafos do seu Direito internacional codificado:

1. Não há propriedade do homem sobre o homem. Todo homem é uma pessoa, isto é, um ente capaz de adquirir e possuir direitos. [1]

2. O direito internacional não reconhece a nenhum Estado e a nenhum particular o direito de ter escravos.

3. Os escravos estrangeiros tornam-se livres de pleno direito desde que pisam o solo de um Estado livre, e o Estado que os recebe é obrigado a respeitar-lhes a liberdade.

4. O comércio de escravos e os mercados de escravos não são tolerados em parte alguma. Os Estados civilizados têm o direito e o dever de apressar a destruição desses abusos onde quer que se encontrem. [2]

Esses princípios cardeais da civilização moderna reduzem a escravidão a um fato brutal que não pode socorrer-se à lei particular do Estado, porque a lei não tem autoridade alguma para sancioná-la. A lei de um país só poderia em tese sancionar a escravidão dos seus nacionais, não a de estrangeiros. A lei brasileira não tem moralmente poder para autorizar a escravidão de africanos, que não são súditos do Império. Se o pode fazer com africanos, pode fazê-lo com ingleses, franceses, alemães. Se não o faz com estes, mas somente com aqueles, é porque eles não gozam da proteção de nenhum Estado. Mas, quanto à competência que tem o Brasil para suprimir a liberdade pessoal de pessoas existentes dentro do seu território, essa nunca poderia ir além dos seus próprios nacionais.

Se os escravos fossem cidadãos brasileiros, a lei particular do Brasil poderia talvez e em tese aplicar-se a eles; de fato não podia, porque pela Constituição os cidadãos brasileiros não podem ser reduzidos à condição de escravos. Mas os escravos não são cidadãos brasileiros, desde que a Constituição só proclama tais os ingênuos e os libertos. Não sendo cidadãos brasileiros, eles ou são estrangeiros ou não têm pátria, e a lei do Brasil não pode autorizar a escravidão de uns nem de outros, que não estão sujeitos a ela pelo direito internacional no que respeita à liberdade pessoal. A ilegalidade da escravidão é assim insanável, quer se a considere no texto e nas disposições da lei, quer nas forças e na competência da mesma lei.

Mas os fundamentos do Abolicionismo não se reduzem às promessas falsificadas na execução, aos compromissos nacionais repudiados, nem ao sentimento da honra do país compreendida como a necessidade moral de cumprir os seus tratados e as suas leis com relação à liberdade e de conformar-se com a civilização no que ela tem de mais absoluto. Além de tudo isso, e da ilegalidade insanável da escravidão perante o direito social moderno e a lei positiva brasileira, o Abolicionismo funda-se numa série de motivos políticos, econômicos, sociais e nacionais, da mais vasta esfera e do maior alcance. Nós não queremos acabar com a escravidão somente porque ela é ilegítima em face do progresso das ideias morais de cooperação e solidariedade; porque é ilegal em face da nossa legislação do período do tráfico; porque é uma violação da fé pública, expressa em tratados como a Convenção de 1826, em leis como a de 7 de novembro, em empenhos solenes como a carta de Martim Francisco, a iniciativa do conde d’Eu no Paraguai, e as promessas dos estadistas responsáveis pela marcha dos negócios públicos.

Queremos acabar com a escravidão por esses motivos seguramente, e mais pelos seguintes:

1. Porque a escravidão, assim como arruína economicamente o país, impossibilita o seu progresso material, corrompe-lhe o caráter, desmoraliza-lhe os elementos constitutivos, tira-lhe a energia e a resolução, rebaixa a política; habitua-o ao servilismo, impede a imigração, desonra o trabalho manual, retarda a aparição das indústrias, promove a bancarrota, desvia os capitais do seu curso natural, afasta as máquinas, excita o ódio entre classes, produz uma aparência ilusória de ordem, bem-estar e riqueza, a qual encobre os abismos de anarquia moral, de miséria e destituição, que do norte ao sul margeiam todo o nosso futuro.

2. Porque a escravidão é um peso enorme que atrasa o Brasil no seu crescimento em comparação com os outros Estados sul-americanos que a não conhecem; porque, a continuar, esse regime há de forçosamente dar em resultado o desmembramento e a ruína do país; porque a conta dos seus prejuízos e lucros cessantes reduz a nada o seu apregoado ativo, e importa em uma perda nacional enorme e contínua; porque, somente quando a escravidão houver sido de todo abolida, começará a vida normal do povo, existirá mercado para o trabalho, os indivíduos tomarão o seu verdadeiro nível, as riquezas se tornarão legítimas, a honradez cessará de ser convencional, os elementos de ordem se fundarão sobre a liberdade, e a liberdade deixará de ser um privilégio de classe.

3. Porque só com a emancipação total podem concorrer para a grande obra de uma pátria comum, forte e respeitada, os membros todos da comunhão que atualmente se acham em conflito, ou uns com com os outros, ou consigo mesmos: os escravos, os quais estão fora do grêmio social; os senhores, os quais se veem atacados como representantes de um regime condenado; os inimigos da escravidão, pela sua incompatibilidade com esta; a massa, inativa, da população, a qual é vítima desse monopólio da terra e dessa maldição do trabalho; os brasileiros em geral que ela condena a formarem, como formam, uma nação de proletários.

Cada um desses motivos, urgente por si só, bastaria para fazer refletir sobre a conveniência de suprimir depois de tanto tempo um sistema social tão contrário aos interesses de toda a ordem de um povo moderno, como é a escravidão. Convergentes, porém, e entrelaçados, eles impõem tal supressão como uma reforma vital que não pode ser adiada sem perigo. Antes de estudar-lhe as influências fatais exercidas sobre cada uma das partes do organismo, vejamos o que é ainda hoje no momento em que escrevo, sem perspectiva de melhora imediata, a escravidão no Brasil.

Notas do autor

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  1. § 360. Esta é a nota que acompanha o parágrafo: “Este princípio, indicado pela natureza e conhecido dos jurisconsultos romanos, foi todavia desprezado durante séculos pelos povos, com grande prejuízo próprio. Sendo a escravidão contra a natureza, procurava-se na antiguidade justificá-la, fundando-a no uso admitido por todas as nações. A civilização europeia atenuou esse abuso vergonhoso de poder, que se decorava com o nome de propriedade e se assimilava à propriedade sobre animais domésticos; a escravidão foi abolida e o direito natural do homem acabou por triunfar. A servidão foi abolida na Itália, na Inglaterra, na França, mais tarde na Alemanha e em nossos dias na Rússia. Formou-se assim pouco a pouco um direito europeu proibindo a escravidão na Europa, e elevando a liberdade pessoal à classe de direito natural do homem. Os Estados Unidos da América do Norte tendo-se pronunciado igualmente contra a escravidão dos negros, e havendo constrangido os Estados recalcitrantes a conceder a liberdade individual e os direitos políticos aos homens de cor, e tendo o Brasil, em 1871, assentado as bases legais da libertação dos escravos, esse direito humanitário penetrou na América e é hoje reconhecido por todo o mundo cristão. A civilização chinesa havia proclamado desde há muito esse princípio na Ásia oriental. Não se deverá mais no futuro deixar os Estados, sob o pretexto de que são soberanos, introduzir ou conservar a escravidão no seu território; dever-se-á, entretanto, respeitar as medidas transitórias tomadas por um Estado para fazer os escravos chegarem gradualmente à liberdade. A soberania dos Estados não se pode exercer de modo a anular o direito mais elevado, e o mais geral da humanidade, porque os Estados são um organismo humano e devem respeitar os direitos em toda a parte reconhecidos aos homens.” Le Droit international codifié, tradução de M. C. Lardy, 2ª ed. Nesta nota se diz com razão que o mundo civilizado não deve empregar a sua força coletiva contra um país, como o Brasil, que já tomou medidas transitórias e em princípio condenou a escravidão; mas, enquanto esta durar, está claro que continuaremos a exercer a nossa soberania para anular o direito o mais elevado e o mais geral da humanidade: a liberdade pessoal.
  2. Infelizmente, seja dito de passagem, o comércio e os mercados de escravos existem ainda (1883) em nossas capitais, sob as vistas dos estrangeiros, sem limitação nem regulamento algum de moralidade, tão livres e bárbaros como nos viveiros da África central que alimentam os haréns do Oriente.