O Ateneu/VII

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O tédio é a grande enfermidade da escola, o tédio corruptor que tanto se pode gerar da monotonia do trabalho como da ociosidade.

Tínhamos em torno da vida o ajardinamento em floresta do parque e a toalha esmeraldina do campo e o diorama acidentado das montanhas da Tijuca, ostentosas em curvatura torácica e frentes felpudas de colosso; espetáculos de exceção, por momentos, que não modificavam a secura branca dos dias, enquadrados em pacote nos limites do pátio central, quente, insuportável de luz, ao fundo daquelas altíssimas paredes do Ateneu, claras da caiação, do tédio, claras, cada vez mais claras.

Quando se aproxima o tempo das férias. o aborrecimento é maior.

Os rapazes, em grande parte dotados de tendências animadoras para a vida prática, forjicavam mil meios de combater o enfado da monotonia. A folgança fazia época como as modas, metamorfoseando-se depressa como uma série de ensaios.

A peteca não divertia mais, palmeada com estrépito, subindo como foguete, caindo a rodopiar sobre o cocar de penas? Inventavam-se as bolas elásticas. Fartavam-se de borracha? Inventavam-se as pequenas esferas de vidro. Acabavam-se as esferas? Vinham os jogos de salto sobre um tecido de linhas a giz no soalho, ou riscadas a prego na areia, a amarela, e todas as suas variantes, primeira casa, segunda casa, terceira casa, descanso, inferno, céu, levando-se à ponta de pé o seixozinho chato em arriscada viagem de pulos. Era depois a vez dos jogos de corrida, entre os quais figurava notavelmente o saudoso e rijo chicote-queimado. Variavam os aspectos da recreação, o pátio central animava-se com a revoada das penas, o estalar elástico das bolas, passando como obuses, ferindo o alvo em pontaria amestrada, o formigamento multicor das esferas de vidro pela terra, com a gritaria de todas as vozes do prazer e do alvoroço.

Depois havia os jogos de parada, em que circulavam como preço as penas, os selos postais, os cigarros, o próprio dinheiro. As especulações moviam-se como o bem conhecido ofídio das corretagens. Havia capitalistas e usurários, finórios e papalvos; idiotas que se encarregavam de levar ao mercado, com a facilidade de que dispunham fora do colégio, fornecimentos inteiros, valiosíssimos, de Mallats e Guillots que os hábeis limpavam com a gentileza de figurões da bolsa, e selos inestimáveis que os colecionadores práticos desmereciam para tirar sem custo; fumantes ébrios de fumo alheio, adquirido facilmente no movimento da praça, repimpados à turca sobre os coxins da barata fartura.

As transações eram proibidas pelo código do Ateneu. Razão demais para interessar. Da letra da lei, incubados sob a pressão do veto, surgiam outros jogos, mais expressamente característicos, dados que espirravam como pipocas, naipes em leque, que se abriam orgulhosos dos belos trunfos, entremostrando a pança do rei, o sorriso galhardo do valete, a simbólica orelha da sota, a paisagem ridente do ás; roletas miúdas de cavalinhos de chumbo; uma aluvião de fichas em cartão, pululantes como os dados e coradas como os padrões do carteiro.

A principal moeda era o selo.

Pelo sinete da posta dava-se tudo. Não havia prêmios de lição que valessem o mais vulgar daqueles cupons servidos. Sobre este preço, permutavam-se os direitos do pão, da manteiga ao almoço, da sobremesa, as delicias secretas da nicotina, o próprio decoro pessoal em si.

A raiva dos colecionadores caprichando em exibir cada qual o álbum mais completo, mais rico, transmitia-se a outros, simples agentes de especulação; destes ainda a outros com a sedução do interesse. No colégio todo, só Rebelo talvez e o Ribas, o primeiro fundeado no porto da misantropia senil que o distanciava do mundo tempestuoso, o outro a fazer perpetuamente de anjo feio aos pés de Nossa Senhora, escapavam à mania geral do selo, melhor, à geral necessidade de premunir-se com valor corrente para as emergências.

No comércio do selo é que fervia a agitação de empório, contratos de cobiça, de agiotagem, de esperteza, de fraude. Acumulavam-se valores, circulavam, frutificavam; conspiravam os sindicatos, arfava o fluxo, o refluxo das altas e das depreciações. Os inexpertos arruinavam-se, e havia banqueiros atilados, espapando banhas de prosperidade.

Falava-se, com a reserva tartamuda dos caudatários do milhão, de fortunas imponderáveis... Certo felizardo que possuía aqueles imensos exemplares da primeira posta na Inglaterra, os dois raríssimos, ambos! o azul e o branco, de 1840, com a estampa nítida de Mulrady: a Grã-Bretanha, braços abertos sobre as colônias, sobre o mundo; à direita, a América, a propaganda civilizadora, a conquista da savana; à esquerda, o domínio das Índias, cules sob fardos, dorsos de elefantes subjugados; ao fundo, para o horizonte, navios, o trenó canadiano que foge à disparada das renas; no alto, como as vozes aladas da fama, os mensageiros da metrópole.

Jóias deste preço imobilizavam-se nas coleções, inalienáveis por natureza como certos diamantes. Nem por isso era menos ardente a mercancia na massa febril da pequena circulação; da quantidade infinita dos outros selos, retangulares, octogonais, redondos, elipsoidais, alongados verticalmente, transversalmente, quadrados, lisos, denteados, antiqüíssimos ou recentes, ingleses, suecos, da Noruega, dinamarqueses, de cetro e espada, suntuosos Hannover, como retalhos de tapeçaria, cabeças de águia de Lubeck, torres de Hamburgo, águia branca da Prússia, águia em relevo da moderna Alemanha, austríacos, suíços de cruz branca, da França, imperiais e republicanos, de toda a Europa, de todos os continentes, com a estampa de um pombo, de navios, de um braço armado; gregos com a efígie de Mercúrio, o deus único que ficou de Homero, sobrevivo do Olimpo depois de Pã; selos da China com um dragão espalhando garras; do Cabo, triangulares; da república de Orange com uma laranjeira e três trompas; do Egito com a esfinge e as pirâmides; da Pérsia de Nassered-Din com um penacho; do Japão, bordados, rendilhados como panos de biombo e de ventarolas; da Austrália, com um cisne; do reino de Havaí, do Rei Kamehameha III; da Terra Nova com uma foca em campo da neve; dos Estados Unidos, de todos os presidentes; da república de São Salvador com uma auréola de estrelas sobre um vulcão; do Brasil, desde os enormes malfeitos de 1843; do Peru com um casal de lhamas; todas as cores, todos os sinetes com que os estados tarifam as correspondências sentimentais ou mercantis, explorando indistintamente um desconto mínimo nas especulações gigantescas e o imposto de sangue sobre as saudades dos emigrados da fome.

A sala geral do estudo, comprida, com as quatro galerias de carteiras e a parede oposta de estantes e a tribuna do inspetor, era um microcosmo de atividade subterrânea. Estudo era pretexto e aparência, as encadernações capeavam mais a esperteza do que os próprios volumes.

A certas horas reunia-se ali o colégio inteiro, desde os elementos de primeiras letras até os mais adiantados cursos. Agrupavam-se por ordem de habilitações; o abc diante da porta de entrada, à direita; à extrema esquerda, os filósofos, cogitadores do Barbe, os latinistas abalizados, os admiráveis estudantes do alemão e do grego. Baralhavam-se as três classes de idades; podia estar um marmanjo empacado à direita na carteira dos analfabetos, e podia estar um bebê prodígio a desmamar-se na filosofia da esquerda. O acaso da colocação podia sentar-me entre o Barbalho e o Sanches, como podia da afeição do Alves desterrar-me uma légua. Dependia tudo do adiantamento.

Como compensação destas desvantagens havia os telégrafos e a correspondência de mão em mão. Os fios telegráficos eram da melhor linha de Alexandre 80, sutilíssimos e fortes, acomodados sob a tábua das carteiras, mantidas por alças de alfinete. Em férias desarmavam-se. Dois amigos interessados em comunicar-se estabeleciam o aparelho; a cada extremidade, um alfabeto em fita de papel e um ponteiro amarrado ao fio; legitimo Capanema. Tantas as linhas, que as carteiras vistas de baixo apresentavam a configuração agradável de citaras encordoadas, tantas, que às vezes emaranhava-se o serviço e desafinava a citara dos recadinhos em harpa de carcamano.

Havia o gênio inventivo no Ateneu, esperanças de riqueza, por alguma descoberta milagrosa que o acaso deparasse à maneira do pomo de Newton. Ocorre-me um perspicaz que contava fazer fortuna com um privilégio para explorar ouro nos dentes chumbados dos cadáveres, uma mina! Foi assim a invenção malfadada do telégrafo-martelinho. Tantas pancadinhas, tal letra; tantas mais, tantas menos, tais outras. Os inventores achavam no sistema dos sinais escritos a desvantagem de não servir à noite. O elemento base desta reforma era uma confiança absoluta na surdez dos inspetores; aventuroso fundamento, como se provou.

As primeiras pancadinhas passaram; apenas os estudantes mais próximos sorriam disfarçando. Mas o martelinho continuou a funcionar e ganhou coragem. No silêncio da sala, gotejavam as pancadas, miúdas, como o debicar de um pintainho no soalho.

No alto da tribuna, o Silvino coçou a orelha e ficou atento; começava a implicar com aquilo. Silêncio... silêncio, e as pancadinhas de vez em quando.

Foi o diabo. Inesperadamente precipitou-se do alto assento como um abutre, e com a finura do oficio foi cair justo sobre o melhor de um despacho. Seguiu-se a devastação. Examinando a carteira, descobriu a rede considerável dos outros telégrafos. Foi tudo raso. Brutal como a fúria, implacável como a guerra — oh Havas! — o Silvino não nos deixou um fio, um só fio ao novelo das correspondências! De carteira em carteira, por entre pragas, arrancou, arrebentou, destruiu tudo, o vândalo, como se não fosse o fio telegráfico listrando os céus a pauta larga dos hinos do progresso e a nossa imitação modesta uma homenagem ao século.

A violência não fez mais que aumentar o tráfego dos bilhetinhos e suspender temporariamente a telegrafia.

De mão em mão como as epístolas, corriam os periódicos manuscritos e os romances proibidos. Os periódicos levavam pelos bancos a troça mordaz, aos colegas, aos professores, aos bedéis: mesmo a pilhéria blasfema contra Aristarco, uma temeridade. Os romances, enredados de atribulações febricitantes, atraindo no descritivo, chocantes no desenlace, alguns temperados de grosseira sensualidade, animavam na imaginação panoramas ideados da vida exterior, quando não há mais compêndios, as lutas pelo dinheiro e pelo amor, o ingresso nos salões, o êxito da diplomacia entre duquesas, a festejada bravura dos duelos, o pundonor de espada à cinta; ou então o drama das paixões ásperas, tormentos de um peito malsinado e sublime sobre um cenário sujo de bodega, entre vômitos de mau vinho e palavradas de barregã sem preço.

Com a proximidade das férias de ano, tudo desaparecia. O aborrecimento imperava.

A impaciência da expectativa de livramento fazia intolerável a reclusão dos últimos dias.

Organizavam-se os preparativos para a grande exposição de trabalhos da aula de desenho, as aulas primárias estavam a ponto de entrar em exames, dos particulares semestrais, em que o diretor sondava o aproveitamento. Estes cuidados não podiam combater a inércia expectante dos ânimos.

No salão do estudo poucos abriam livro. Os rapazes alargavam os cotovelos sobre a carteira, fincavam o queixo nas costas da mão e abstraíam-se com o olhar imóvel, idiotismo de espera, como se tentassem perceber o curso das horas no espaço. Por trás da casa, no quintal do diretor, ouvia-se cantando Ângela, cantilenas espanholas, sinuosas de moleza; mais longe, muito mais, em zumbido indistinto, como um horizonte sonoro, as cigarras trilavam, agitando o ar quente com uma vibração de fervura.

Nas horas longuíssimas do recreio, os rapazes passeavam calados, destruindo a comunhão usual dos brincos, como se temessem estragar mais alegria naquele cativeiro, certo de melhor emprego breve. Pelas paredes a carvão, pelas tábuas negras a traços brancos, arranhada na caliça, escrita a lápis ou a tinta, por todos os cantos via-se esta proclamação: Viva às férias! determinando a ansiedade geral, como um pedido, uma intimativa ao tempo que fosse menos tardo, opondo, cruel, a resistência impalpável, invencível dos minutos, dos segundos, à chegada festiva da boa data.

Bento Alves, depois de assegurar que unicamente por mim se havia sujeitado à humilhação que sofrera, andava propositalmente arredio.

Eu, solitário, ia e vinha como os outros, percorrendo o pátio, marcando a bocejos os prazos alternados de impaciência e resignação, vendo pairar por cima do recreio um papagaio que soltavam meninos da rua para as bandas do Ateneu. Invejava-lhe a sorte, ao papagaio cabeceando alegre, ondeando a balouçar, estatelando-se no vento, pássaro caprichoso, dominando vermelho o vasto retângulo azul que as paredes cortavam no firmamento, solitário, solitário como eu, cativo também — mas ao alto e lá fora.

Relaxava-se o horário; professores faltavam; era menos rude a inspeção. Os alunos iam por toda parte à vontade. Faziam roda de palestra nos dormitórios, pilando enfastiadamente os mais duros assuntos, murmarações esmoídas, escabrosidades pulverizadas, trituradas malícias, algumas vezes malícias ingênuas se é possível, caracterizando-se no conciliábulo o azedume tagarela do cansaço podre de um ano, conforme a psicologia de cada salão.

Os dormitórios apelidavam-se poeticamente, segundo a decoração das paredes: salão pérola, o das crianças policiado por uma velha, mirrada e má, que erigira o beliscão em preceito único disciplinar, olhos mínimos, chispando, boca sumida entre o nariz e o queixo, garganta escarlate, uma população de verrugas, cabeça penugenta de gipaeto sobre um corpo de bruxa; salão azul, amarelo, verde, salão floresta, dos ramos do papel, aos quais se recolhia a classe inumerável dos médios. O salão dos grandes, independente do edifício, sobre o estudo geral, conhecia-se pela denominação amena de chalé. O chalé fazia vida em separado e misteriosa.

O policiamento dos dormitórios competia aos diversos inspetores, convenientemente distribuídos.

Na época atenuavam-se os zelos da policia. O próprio gipaeto do pérola batia as asas para a folia, uma inocente folia de noventa anos.

A palestra corria desassombrada.

Deitavam-se uns a uma cama, outros cercavam agrupados nas camas próximas e atacavam os assuntos:

No salão dos médios:

"D. Ema... D. Ema... não se murmura à toa... Reparem na maneira de falar do Crisóstomo... Tem motivo, um rapagão... Palavra que os apanhei sozinhos, juntinhos, conversando, a distancia de um beijo..."

— O melhor é que o Crisóstomo não vai para a rua... Que diabo, nem tanto vale o grego, que se pague a beijocas descontadas pela mulher... tenho para mim que o negócio ainda acaba mal e porcamente, kakós kai ruparós, com uma estralada...

— Ora, diretores! empresários! fabricantes de ciência barata e prodígios de carregação, com que empulham os papais basbaques... O que querem é a freqüência do negócio... Falam cá em anúncios... Mulher ao balcão... Que chamariz, uma carinha sedutora! Eu por mim, se fosse diretor, inaugurava um Kindergarten para taludos; uma bonita diretora à testa e quatro adjuntas amáveis... Não haveria nhonhô graúdo que não morresse pelo ensino intuitivo. Como não haviam de pagar para cortar pauzinhos no meu jardim! E que serviço ao progresso do meu pais: estimular à Froebel as inteligências perrengues e as adolescências atrasadas...

— Pois eu seria capaz de guerrear o estabelecimento. Se fosse diretor, teria o cuidado de ser também ministro do império... Revogava a Instrução Pública e aprovava a minha gente por decreto, tudo de pancada e com distinção.

— Qual! eu, se fosse diretor, seria safado! Não há nada neste mundo como ser safado! Uma bonita meninada, que festança! Os meninos gostam da gente, a gente gosta dos meninos e o colégio cresce: crescite!... Daí a pouco tanta matricula, que precisaríamos mudar de casa...

— Que canalha! Que lingüinhas... Safa! Pois eu cá só digo mal daquele tipo do Liceu. Marcelo, que tem na face a costura cicatrizada do talho que lhe fez um discípulo em certa aventura com o mais pacífico dos utensílios, e que, ainda assim, foi apanhado no Cassino deixando aberto num divã o carnet de baile, caidadosamente ilustrado de símbolos... pedagógicos.

A palestra no pérola era muito mais cândida, e, principalmente, nada pessoal.

Curso improvisado de obstétrica elementar, para especulação. Todos queriam saber; apertavam-se vinte pequenos em roda do problema, como aquelas figuras da lição de Rembrandt. Qual a origem das espécies? Eram investigadores. Ninguém adiantava um passo. Estava ausente o gipaeto, que talvez pudesse explicar. Feliz quem pode conhecer a causa das coisas! Como é a entrada na vida? Ordem dórica? jônica? compósita? As imaginações trabalhadas formigavam avidamente sobre a questão; ninguém penetrava. Desenrolavam-se as teorias domésticas, angélico-ginecológicas.

Havia em Paris uma grande empresa de exportação, da qual eram agentes em todo o mundo os porteiros, e comissária central no Rio Mme. Durocher. Vinha o gênero nos berços, encaixotados, mijadinhos e chorosos. Esta teoria tinha o merecimento filosófico de prescindir das causas finais. Os metafísicos inclinavam-se mais para a intervenção da sobrenatureza: por ocasião do Natal havia de noite uma distribuição geral de herdeirozinhos pela terra, chuva de pimpolhos, para compensar a matança dos inocentes, tão prejudicial no tempo de Herodes. Inútil dizer que os referidos inocentes vinham outrora ao mundo pela mão dos mesmos portadores das credenciais da revelação, hoje em desuso.

E a academiazinha de investigadores arrumava documentos, sorrindo alguns da credulidade dos outros, exibindo em refutação credulidade de diverso quilate; alguns, mais positivos, aduzindo observações próprias, porque os meninos espiam, oferecendo à opinião dos colegas uma nota ponderosa, edificando-se lentamente o sistema como os sistemas se edificam, aproveitando-se apenas o elemento franqueado pelo apoio comum.

Dois últimos pareceres concorreram oportunamente para desatar os embaraços e a assembléia dispersou-se. Um cearensezinho, de cabelo à escova, inteligente e silencioso, amigo de responder por um jeito especial de virar os olhos. senhor de um sorriso desconcertante que sabia armar a propósito, falando baixinho e explícito, introduziu no debate a descrição minuciosa, sem perda de fofos nem apanhados, da toilette balneária das mulheres do sertão na província, descendo ao rio, de um belo pano simpático em que o raio do sol nascente representa de fio mais grosso. Outro parecer foi a grosseira chacota de um caturra barrigudinho, fronte de novilho, miniatura de arrieiro, brutal e maroto, filho de um criador abastado do Paraná e instruído para todas as exigências práticas da indústria paterna. Estava ali a ouvir desde o principio sem dizer palavra, esperando a conclusão. Supondo que o cearense ia fazer a luz, atirou-se adiante, interrompeu-o e concluiu largando o enxurro, esponjando-se farto na garotada, como a cria da estância no lodo fresco.

A vadiagem dos dormitórios não consistia só em palestra. Depravados pelo aborrecimento e pela ociosidade, inventavam extravagâncias de cinismo.

O Cerqueira, ratazana, sujeito cômico, cara feita de beiços, rachada em boca como as romãs maduras, de mãos enormes como um disfarce de pés, galopava a quatro pelos salões, zurrando em fraldas de camisa, escoucinhando uma alegria sincera de mu. Maurílio, o dos quinaus, neo era exclusivamente o campeão da tatuada que conhecemos; tinha outra habilidade notável e prestava-se com aplauso a uma experiência original de fluidos inflamáveis. Este rapaz escapou de morrer, em um dos últimos naufrágios da nossa costa; um ex-colega escreveu-lhe: Quem os semeia, colhe tempestades.

As provocações no recreio eram freqüentes, oriundas do enfado; irritadiços todos como feridas; os inspetores a cada passo precisavam intervir em conflitos; as importunações andavam em busca das suscetibilidades; as suscetibilidades a procurar a sarna das importunações. Viam de joelhos o Franco, puxavam-lhe os cabelos. Viam Rômulo passar, lançavam-lhe o apelido: mestre cook!

Esta provocação era, além de tudo, inverdade. Cozinheiro, Rômulo! só porque lembrava a culinária, com a carnosidade bamba, fofada dos pastelões, ou porque era gordo das enxúndias enganadoras dos fregistas, dissolução mórbida de sardinha e azeite, sob os aspectos de mais volumosa saúde? Rômulo era simplesmente e completamente o confeiteiro das esperanças doces de Aristarco.

Anafado de aparência, e ainda mais ancho de fortuna, significava bem o que se diz um bom partido. Aristarco tinha uma filha; saúde, fortuna: um genro ideal; ainda por cima bonachão e pacato.

A Melica, a altiva e requebrada Amália, lambisgóia, proporções de vareta, fina e longa, morena e airosa, levava o tempo a fazer de princesa. Dois grandes olhos pretos, exagero dos olhos pretos da mãe, tomavam-lhe a face, dando-lhe de frente a semelhança justa de um belo I com dois pingos. Por estes olhos e por sobre os ombros, que tinha erguidos e mefistofélicos, derramavam se desdéns sobre tudo e sobre todos. Possuía e petiscava a certeza fácil de que o Ateneu em peso andava caído por ela, e morava no andor imaginário daquela idolatria de trezentos. Trezentos corações, trezentos desdéns. A eminência do pai sobre aquele mundozinho desprezível dava-lhe vida à vanglória, e ela gostava de visitar o colégio para ter ocasião de exercitar a altivez culminante, misturada, do sexo e da hierarquia. Quanto a Rômulo, era o primeiro no seu desprezo. Timbrava em não prestar-lhe atenção. Designava-o esplendidamente: — o parvo. Melica era bem conservada e preciosa.

Rômulo filosofava por Epicuro. Desdéns não matam. Havia de bom naquela atitude de noivado perene, uma série de utilidade: cargo de vigilante, privilégios de benevolência, um jantar de vez em quando com o diretor, — isto é, uma folga ao paladar imaginada em sonho por quantas bocas, no regime obrigatório e destemperado da casa, menu permanente, inviolável como a letra das constituições.

Quando vinha Melica ao Ateneu, era Rômulo o primeiro a aproximar-se, o último a ser visto. Aristarco chamava-o às vezes e levava a passeio com a menina. Melica, toda donaire e orgulho, passava adiante e permitia, quando muito, que Rômulo a seguisse cabisbaixo e mudo, como um hipopótamo domesticado. Diga-se, a bem da verdade, que o gorducho esperava rir por último ao pai e à filha.

Em um estabelecimento de rumorosa fama como o Ateneu não se podia deixar de incluir no quadro das artes a música de pancadaria.

Passava despercebido o harmonium do Sampaio, religioso e bálbuce. Estimava-se como coisa somenos a rabequinha do Cunha, choramingas e expressiva, nas mãos do esguio violinista; manhoso o instrumento como uma casa de maternidade, pálido o músico, espichadinho e clorótico; dando ares de graça à linguagem das cravelhas por meio de sons que imitavam a quase afasia timorata e infantil do Cunha, descambando em síncopes, de vez em quando, estendendo guinchos histéricos de amor vadio, saltitando pizzicatos como as biqueiras de verniz do Cunha, amigo de valsar, ágil no baile como as fitas, as plumas e as evaporadas tules.

Considerava-se razoavelmente o piano do Alberto Souto, bochechas largas de maestro em efígie, pianista portento que viera parar ao Ateneu, depois de percorrer a Europa à cata de triunfos, redondo, curto e musical como um cilindro de realejo; famoso pela gargalhada soez, bagaço espremido da vaidade, da cobiça, que lhe ficara dos sucessos do palco e das surras da aprendizagem; e pela estupidez seca nos estudos, como se a inteligência lhe houvesse escapado pelos dedos para os teclados em deserção definitiva.

Mas a predileção de Aristarco era pela banda, pela pancadaria, grita vibrante dos cobres, fuzilaria das vaquetas, levando gente à janela quando o Ateneu passava, dando rebate à admiração das esquinas, o estrépito das caixas troando à marcha dobrada como um eco de combates, furor infrene, irresistível, de zabumbada em feira.

A banda tinha casa própria e um professor bem pago. Os instrumentistas gozavam de particular favor nos relaxamentos de disciplina; nas ocasiões de festa eram mimoseados com um brinde de gulodices; condecoravam-se com distintivos de prata, que nem os harmoniosos concertantes do Orfeão logravam pilhar.

Ainda na banda graduava-se a predileção de Aristarco, segundo a importância de sonoridade dos timbres. O grave bombardão, o oficlide, a trompa, o trombone, o próprio sax, destinados ao mister secundário de acompanhamento, recuando, como lacaios, na encenação sonora, homens e armas servilmente bravos nas investidas brilhantes, ou tímidos pajens, arrepanhando o abandono de caudas escapadas ao luxo régio das grandes notas do canto, — valiam menos ainda, na estima do diretor, que na marcação da partitura.

Predileto era o flautim, florete feito som, tênue, penetrante, perfuração de agulhas: predileta era a requinta, espécie de flautim rachado, agressiva como a vibração do dardo das serpentes; o fagote, aumentativo de requinta, único aparelho capaz de produzir artificialmente a fanhosidade colérica das sogras; o claro oboé, laringe metálica de um cantor de epopéias, heróico e belo; o pistão frenético e vivo, estandarte à mostra sobre a celeuma, harmonizando, centralizando a instrumentação como um regimento de cavalheiros. Prediletos porque gritavam mais! Prediletos principalmente o tambor e o bombo tonante, primazia do estrondo, a trovoada das peles tesas, que a tormenta sobraça nos arroubos de carnaval canalha dos seus dias e que sobraçava, no Ateneu Rômulo, o graxo Rômulo, o nédio, o opulento, o caríssimo genro das esperanças caras.

Foi exatamente por esta seriação de preferências acústicas que chegou Aristarco à descoberta do seu favorito. E por acaso.

Durante uma festa escolar, exibia-se a banda. Distrai-se o bombo e solta fora de tempo um magnífico tiro, que ia bem à composição execu­tada como uma gota de tinta Monteiro numa aquarela. Metade dos ouvintes acreditaram que aquilo era um capricho wagneriano enxertado de propósito; outra metade não conteve o riso.

Aristarco admirava o bombo em solo, solidão das salvas em pleno mar, fator grandioso de sonoridade que o Zé Pereira multiplica Mas o riso dos convidados incomodou-o.

Acabada a festa, mandou vir a presença o artista do estampido. Apresenta-se o músico e não sei como se entenderam que, em vez de castigo, retirou-se Rômulo do gabinete com os forais vantajosos de genro ad honorem.

O escandaloso favor suscitou uma reação de inveja.

Rômulo era antipatizado. Para que o não manifestassem excessivamente, fazia-se temer pela brutalidade. Ao mais insignificante gracejo de um pequeno, atirava contra o infeliz toda a corpulência das infiltrações de gordura solta, desmoronava-se em socos. Dos mais fortes vingava-se, resmungando intrepidamente.

Para desesperá-lo, aproveitavam-se os menores do escuro. Rômulo, no meio, ficava tonto, esbravejando juras de morte, mostrando o punho. Em geral procurava reconhecer algum dos impertinentes e o marcava para a vindita. Vindita inexorável.

No decorrer enfadonho das últimas semanas, foi Rômulo escolhido, principalmente, para expiatório do desfastio. Mestre cook! via-se apregoado por vozes fantásticas, saídas da terra; mestre cook! por vozes do espaço, rouquenhas ou esganiçadas. Sentava-se acabrunhado, vendo se se lembrava de haver tratado panelas algum dia na vida; a unanimidade impressionava. Mais freqüentemente, entregava-se a acessos de raiva. Arremetia bufando, espumando, olhos fechados, punhos para trás, contra os grupos. Os rapazes corriam a rir, abrindo caminho, deixando rolar adiante aquela ambulância danada de elefantíase.

A uma das vaias estive presente. Rômulo marcou-me. Pouco depois encontrávamo-nos no longo corredor que levava à biblioteca do Grêmio. Situação embaraçosa. Eu vinha, ele ia. Parar? Recuar? Enquanto hesitava, fui-me adiantando. Rômulo, de salto, empolgou-me a gola da blusa. Sacudia a ponto de macerar-me o peito. "Então, seu cachorro (sic), diga me aqui, se é capaz, quem é mestre."

A injúria equilibrou-me do espanto. Estava tudo perdido. Deitei bravura. "Mestre, mestríssimo cook!" gritei-lhe à barba. Não sei bem do que houve. Quando dei por mim, estava estendido embaixo de uma escada. Entraram-me na cabeça três pregos, que havia nos últimos degraus. Ponderando que tinha no futuro tempo de sobra para vingança, levantei-me e sacudi da roupa a poeira humilhante da derrota.

Afinal, o dia chegou dos exames primários.

Provas de formalidade para as transições do curso elementar: primeira aula, para a segunda, segunda para a terceira, terceira para o ensino secundário.

Levavam-se assentos e mesas para o salão do oratório, o altar de um reposteiro, e repotreava-se a comissão solene, da qual faziam parte personagens da instrução Pública, com o diretor e os professores.

Aristarco representava, na mesa, o voto pensado do guarda-livros. Contas justas: aprovação com louvor, cambiando às vezes para distinção simples; atraso de trimestre, aprovação plena com risco de simplificação; atraso de semestre, reprovado.

Havia no Ateneu, fora desta regra, alunos gratuitos, dóceis criaturas, escolhidas a dedo para o papel de complemento objetivo de caridade, tímidos como se os abatesse o peso do beneficio; com todos os deveres, nenhum direito, nem mesmo o de não prestar para nada. Em retorno, os professores tinham obrigação de os fazer brilhar, porque caridade que não brilha é caridade em pura perda.

Nas provas do terceiro ano, as distinções foram tão numerosas, que me veio ter às mãos uma, sem escândalo aliás, que desde muito perdera o medo e começava a quadrar-me a aisance das demonstrações, como um mal contaminado do diretor. Fiz um figurão, apanhei a deliciosa nota, que levei a mostrar em casa, como um bichinho raro, mimando-lhe o pêlo fino, beijocando-lhe a focinheira. Sanches teve louvor; Maurílio, louvor; Cruz, louvor também, graças à especialidade da cartilha, em que era provecto, espantando a comissão julgadora com a ladainha toda de Nossa Senhora e ameaçando-nos com o calendário de cor. Santo por Santo, observações adjacentes, mais a designação das festas móveis e das luas, como o próprio Doutor Ayer das pílulas catárticas o não faria, Gualtério, palhaço, foi reprovado. Nascimento, o bicanca, fungou de satisfação: plenamente. Negrão, Almeidinha, Álvares, distinção. Contra a distinção deste último, o Professor Mânlio protestou surdamente; o bronco do Álvares com distinção! Batista Carlos, o bugre das setas, bomba! Diante da comissão mostrou-se muito surpreendido das perguntas, como se tivesse alguma coisa com aquilo; Barbalho, bomba. Barbalho pai andava atrasado semestre e meio e Barbalho filho não deixou de salvar as aparências com uma escrupulosa colaboração de asneiras. O ótimo, o venerável Rebelo não compareceu: deixara o colégio, havia meses, por causa dos olhos.

Enquanto na sala verde, emparedada de pórfiro polido, esperava, com os colegas, que aparecesse à porta o inspetor que devia ler o resultado do escrutínio, foi-me parar a vista aos quadros de alto-relevo, das artes e das indústrias. os risonhos meninos nus fraternais, em gesso puro e inocên­cia. Senti-me velho. Que longa viagem de desenganos! Alguns meses apenas, desde que vira, à primeira vez, as ideais crianças vivificadas no estuque pelo contágio do entusiasmo ingênuo, ronda feliz do trabalho... Agora, um por um que os interpretasse, aos pequenos hipócritas mostrando as nádegas brancas com um reverso igual de candura, um por um que os julgasse, e todo aquele gesso das facezinhas rechonchudas coraria de uma sanção geral e esfoladora de palmadas. Não me enganavam mais os pequeninos patifes. Eram infantis, alegres, francos, bons, imaculados, saudade inefável dos primeiros anos, tempos da escola que não voltam mais!... E mentiam todos!... Cada rosto amável daquela infância era a máscara de uma falsidade, o prospecto de uma traição. Vestia-se ali de pureza a malícia corruptora, a ambição grosseira, a intriga, a bajulação. a covardia, a inveja, a senssualidade brejeira das caricaturas eróticas, a desconfiança selvagem da incapacidade, a emulação deprimida do despeito, a impotência, o colégio, barbaria de humanidade incipiente, sob o fetichismo do Mestre, confederação de instintos em evidência, paixões, fraquezas, vergonhas, que a sociedade exagera e complica em proporção de escala, respeitando o tipo embrionário, caracterizando a hora presente, tão desagradável para nós, que só vemos azul o passado, porque é ilusão e distância.

Para a exposição dos desenhos foram retiradas as carteiras da sala de estudo, forradas de cetim escuro as paredes e os grandes armários. Sobre este fundo, alfinetaram-se as folhas de Carson, manchadas a lápis pelo sombreado das figuras, das paisagens, pregaram-se, nas molduras de friso de ouro, os trabalhos reputados dignos desta nobilitação.

Eu fizera o meu sucessozinho no desenho, e a garatuja evoluíra no meu traço, de modo a merecer encômios. A principio, o bosquejo simples, linear, experiência da mão; depois, os esbatimentos de tons que consegui logo como um matiz de nuvem: depois, as vistas de campo, folhagem rendilhada em bicos, pardieiros em demolição pitoresca da escola francesa, como ruínas de pau podre, armadas para os artistas. Depois de muito moinho velho, muita vivenda de palha, muito casarão deslombado, mostrando as misérias como um mendigo, muita pirâmide de torre aldeã esbo­çada nos últimos planos, muita figurinha vaga de camponesa, lenço em triângulo pelas costas, rotundas ancas, saias grossas em pregas, sapatões em curva, passei ao desenho das grandes copias, pedaços de rosto humano, cabeças completas, cabeças de corcel; cheguei à ousadia de copiar com toda a magnificência das sedas, toda a graça forte do movimento, uma cabra de Tibete!

Depois da distinção do curso primário, foi esta cabra o meu maior orgulho. Retocada pelo professor, que tinha o bom gosto de fazer no desenho tudo quanto não faziam os discípulos, a cabra tibetana, meio metro de altura, era aproximadamente obra-prima. Ufanava-me do trabalho. Não quis a sorte que me alegrasse por muito. Negaram-me à bela cabra a moldura dos bons trabalhos; ainda em cima — considerem o desespero! exatamente no dia da exposição, de manhã, fui encontrá-la borrada por uma cruz de tinta, larga, de alto a baixo, que a mão benigna de um desconhecido traçara. Sem pensar mais nada, arranquei à parede o desgraçado papel e desfiz em pedaços o esforço de tantos dias de perseverança e carinho.

Quando os visitantes invadiram a sala, notaram na linha dos trabalhos suspensas duas enigmáticas pontas de papel rasgado. Estranhavam, ignorando que ali estava, interessante, em último capitulo, a história de uma cabra, de uma cruz, drama de desespero e espólio miserando de uma obra-prima que fora.

As exposições artísticas eram de dois em dois anos, alternadamente com as festas dos prêmios. Conseguia-se assim uma quantidade fabulosa de papel riscado para maior riqueza das galerias. Cobria-se o metim desde o soalho até ao teto. Havia de tudo, não só desenhos. Alguns quadros a óleo, do Altino, risonhas aguarelas acidentando a monotonia cinzenta do Fáber, do Conté, do fusain. Os futuros engenheiros aplicavam se às aguadas de arquitetura, aos desenhos coloridos de máquinas.

Entre as cabeças a creiom retinto, crinas de ginete, felpas de onagro lanzudo, inclinando o funil das orelhas, cerdosas frontes hirsutas de javalis, que arreganhavam presas, perfis de audácia em colarinhos de renda, abas atrevidas de feltro, plumas revoltas, fisionomias de marujo, selvagens, arrepiadas, num sopro de borrasca, barbas incultas, carapaça esmurrada sobre a testa, cachimbo aos dentes; entre todas estas caras, avultava uma coleção notável de retratos do diretor.

O melindroso assunto fora inventado pela gentileza de um antigo mestre. Preparou-se modelo; um aluno copiou com êxito; e, depois, não houve mais desenhista amável que não entendesse zeladamente dever ensaiar-se na respeitável verônica. Santo Deus! que ventas arranjavam ao pobre Aristarco! Era até um desaforo! Que olhos de blefarite! que bocas de beiços pretos! que calúnia de bigodes! que invenção de expressões aparvalhadas para o digno rosto do nobre educador!

Não obstante, Aristarco sentia-se lisonjeado pela intenção. Parecia-lhe ter na face a cocegazinha sutil do creiom passando, brincando na ruga mole da pálpebra, dos pés-de-galinha, contornando a concha da orelha, calcando a comissura dos lábios, entrevista na franja dos fios brancos, definindo a severa mandíbula barbeada, subindo pelas dobras oblíquas da pele ao nariz, varejando a pituitária, extorquindo um espirro agradável e desopilante.

Por isso eram acatados os desenhistas da verônica.

Os retratos todos, bons ou maus, eram alojados indistintamente nas molduras de recomendação. Passada a festa, Aristarco tomava ao quadro o desenho e levava para casa. Tinha-os já às resmas. Às vezes, em momentos de esplim, profundo esplim de grandes homens, desarrumava a pilha; forrava de retratos, mesas, cadeiras, pavimento. E vinha-lhe um êxtase de vaidade. Quantas gerações de discípulos lhe haviam passado pela cara! Quantos afagos de bajulação à efígie de um homem eminente! Cada papel daqueles era um pedaço de ovação, um naco de apoteose.

E todas aquelas coisas malfeitas animavam-se e olhavam brilhantemente. "Vê, Aristarco", diziam em coro, "vê; nós que aqui estamos, nós somos tu, e nós te aplaudimos!" E Aristarco, como ninguém na terra, gozava a delícia inaudita, ele incomparável, único capaz de bem se compreender e de bem se admirar — de ver-se aplaudido em chusma por alter egos, glorificado por uma multidão de si-mesmos. Primus inter pares.

Todos, ele próprio, todos aclamando-o.