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O Bobo/VII

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Os três personagens que o conde de Trava vira encaminharem-se para a corredoura contígua aos muros do castelo, e cujos passos e conversação mandara observar pelo pajem, iam demasiado preocupados para haverem de reparar nos jogos e brincos de Tructesindo e dos seus companheiros; e tanto mais que na viela perpassavam também às vezes os ovençais, uchões e sergentes ocupados nos preparativos do banquete, tornando assim menos notável a pessoa do pajem, cujas feições, até, já não seria fácil divisar na estreita passagem, a certa distância, e à luz duvidosa do longo crepúsculo, que no Verão vem após o sol-posto, e que era a hora a que esta cena se passava.

Essa claridade do fim da tarde seria contudo ainda bastante forte para o Lidador e Fr. Hilarião conhecerem o mensageiro que os buscava, se não fora o grande capuz do zorame, onde tinha como sumido o rosto, do qual apenas eram bem visíveis dois olhos brilhantes e uma espessa barba loura. Quase ao mesmo tempo os dois haviam chegado ao pé do desconhecido, e lhe tinham perguntado de onde vinha e quem o mandava. A resposta do peão foi tirar um pequeno rolo de pergaminho, atado com fio negro, de uma bolsa de couro que trazia pendente do cinto, e pô-lo nas mãos de Gonçalo Mendes.

O Lidador recebeu a carta e perguntou de novo:

— Mas quem te mandou, peão?

— Um cavaleiro português - respondeu o desconhecido - que encontrei mui malferido na albergaria dos hospitalários em Gaza. O triste e cativo quase que se morria.

Estas palavras excitaram ao mesmo tempo curiosidade e receios no espírito de Gonçalo Mendes; e quebrando rapidamente o fio negro entregou a carta a Fr. Hilarião, dizendo-lhe:

— Como a vós vem também a mensagem, lereis esses riscos pretos que aí estão. Por minha boa espada! cousa é que nunca entendi.

Não era raridade: quase toda a fidalguia de então se podia gabar de outro tanto.

Fr. Hilarião desenrolou o pequeno pergaminho e começou a ler. Entretanto o Lidador fitou os olhos no peão, cuja voz lhe pareceu ter já muitas vezes ouvido.

— Pobre mancebo! - exclamou o abade, trémulo e empalidecendo.

— Quem? - interrompeu Gonçalo Mendes voltando-se para ele sobressaltado.

— Um cavaleiro - replicou Fr. Hilarião - que amei como filho; e que o desejo de oferecer à dama que requestava um nome glorioso levou à Palestina. Só talvez eu soube a causa da sua partida, de que muitas vezes tentei dissuadi-lo; porque previa o que sucedeu. Oh, que enquanto o pobre trovador assim morria por Dulce, ela folgava em seus novos amores com Garcia Bermudes. - Mulheres, mulheres!

— Egas Moniz é, pois, morto? - interrompeu tristemente o Lidador, que das palavras do abade conhecera de quem era a carta. - Mensageiro, que dizes tu? Sabes certo que é finado?

Um gemido involuntário do peão, que recuara ouvindo as palavras do abade, fora a causa desta pergunta.

— Digo-vos, senhor - tornou o peão com voz afogada - que ora é ele morto.

Mas o cavaleiro não reparou na sua perturbação: o monge começava a ler alto o pergaminho que tinha nas mãos. A mágoa do Lidador era profunda; porque a sua afeição por Egas fora constante e sincera. Pôs-se a escutá-lo, e, bem como ao velho Fr. Hilarião, as lágrimas lhe rolaram pelas faces.

— "Escrevo-te, Gonçalo Mendes - lia o abade -, nas vésperas talvez de morrer. Deus porventura não quer que meus olhos tornem a ver o lugar onde nasci. Novas são aqui vindas de que Fernando Peres de Trava tem reduzido à condição de vassalo o nobre filho de meu senhor, o conde Henrique. Criei-me com o infante: sei que ele não o sofrerá largo tempo, nem os ricos-homens de Portugal

O sofrerão também. A minha espada pertence àquele de quem a recebi em Zamora: resolvi-me por isso a atravessar os mares. Um recontro com os infiéis me cortou, porém, os passos. Tu, Lidador, acorrerás ao infante melhor que o seu Egas, que é o seu irmão de armas. Cem lanças, entre acostados e homens de tuas honras, podes pôr em seu campo: eu a custo lhe levaria cinquenta. E, além disso, não vale a tua espada dez vezes mais que a minha? Se a guerra for começada sei certo que já estarás com D. Afonso. Um pobre romeiro português me jurou sobre a cruz dar-te esta carta onde quer que te encontrasse. Faze-lhe mercê por minha alma."

Durante a leitura do pergaminho, humedecido pelas lágrimas do velho, o desconhecido havia procurado conter as paixões que lhe agitavam o espírito. Gonçalo Mendes ficara em silêncio, apertando com a mão a fronte. O homem do zorame dirigiu-se então ao abade:

— Quanto a vós, venerável monge, o nobre cavalheiro me ordenou vos buscasse em vosso mosteiro; que vos pedisse um trintário cerrado de vossos frades, e que vos lembrásseis dele em vossas orações. Agora que mandais de mim?

— Vais partir? - perguntou o Lidador, com um tom em que parecia revelar-se a desconfiança.

— Já - tornou o romeiro. - É noite; e não sei ainda se é longe se perto o termo da minha jornada.

E de feito havia anoitecido: os paços começavam a iluminar-se,

E os candelabros e tochas vertiam através das frestas e balcões dos aposentos reais uma luz brilhante, cujos raios batiam de chapa no vulto rebuçado do mensageiro. O cavaleiro e o monge olhavam fitos para ele. Depois Gonçalo Mendes disse algumas palavras ao ouvido de Fr. Hilarião, e prosseguiu o seu interrogatório:

— Para onde, pois, te diriges? - disse ele ao desconhecido, hesitando, e como quem já a custo continha na alma bem diversos pensamentos.

— Para onde Egas Moniz - respondeu com veemência o homem do zorame - cria que eu vos encontrasse, meu senhor cavaleiro: para o campo de D. Afonso. Peão como sou, irei pelejar por ele, que é meu senhor natural. Que os ricos-homens folguem entretanto nos paços onde estranhos governam, onde D. Teresa se esquece de que

O infante é filho de D. Henrique.

Então Gonçalo Mendes, fazendo recuar o capuz que cobria a cabeça do suposto mensageiro, olhou para ele alguns instantes. À luz nocturna que o alumiava reconheceu-o então. As suas vivas suspeitas se haviam realizado.

— Egas! Egas! - exclamou, apertando-o ao peito - pensavas que o som da tua voz podia nunca esquecer-me? Como ousaste assim entrar em Guimarães; tu, sobrinho do senhor de Cresconde; tu, um dos da linhagem de Riba de Douro?... Para quê esta carta cruel que veio arrancar lágrimas ao bom Fr. Hilarião, que te ama como um filho? Cria-te ainda na Síria.

— De lá cheguei há poucos dias - respondeu o mancebo, lançando um dos braços à roda do pescoço do velho monge, que tentava também abraçá-lo chorando, mas de contentamento. - Às primeiras novas de que o infante e os infanções de Portugal tentavam sacudir o jugo do conde de Trava dirigi-me ao arraial de D. Afonso que se encaminhava para aqui. Lá o teu nome era afrontado com o título de desleal pelos teus inimigos. Estavas em Guimarães: as aparências condenavam-te, e o meu coração padecia. Vim pois dizer-te: "Lidador, é tempo de combater!" Queria, porém, saber primeiro se as minhas palavras tinham na tua alma a mesma força que dantes; queria saber se a tua amizade havia expirado como o amor de Dulce, que eu já sabia se esquecera de mim: foi para isso esta carta. Sei agora ao certo que ainda te posso dar o suave nome de amigo; sei enfim que amizade dura mais que o amor. Vós - acrescentou ele voltando-se para o monge - perdoais-me por certo a mágoa que vos causei!

— Oh, meu filho, meu filho! - replicou Fr. Hilarião - para que vieste expor-te à vingança de Fernando Peres, que mortalmente odeia a linhagem de Riba de Douro? Podias tu duvidar da lealdade do mais generoso e valente dos ricos-homens de Portugal?

— Não; mas era necessário que pudesse dizer aos que de desleal o acusam: "Vós mentis, e sobre isso porei meu corpo e mentis porque de sua boca ouvi eu que na hora do combate o seu pendão se hasteará junto da signa do infante". Não direi nisso a verdade, meu bom e leal cavaleiro?

— Egas - respondeu o Lidador -, que te importam a ti ou a mim os ditos de alguns sandeus? Quando eles ousarem vir a Guimarães dizer o que ainda hoje Gonçalo Mendes disse na cúria ao conde de Trava, tê-los-ei então por mais esforçados e mais leais do que ele.

Até o fim procurei evitar esta guerra atroz de irmãos. Perdi a derradeira esperança. Agora volta ao arraial; e podes afirmar a Afonso Henriques que dentro de dois dias oitenta homens de armas e sessenta besteiros da terra da Maia estarão no seu arraial. Dize-lhe mais que o traidor Gonçalo Mendes espera com vinte cavaleiros que ele chegue para se unir a seus pendões, não de noite como salteador covarde, mas à luz do meio-dia, em que pese ao conde de Trava.

A indignação do rico-homem rompera como torrente; o monge, porém, confrangia-se, lembrando-se do perigo a que se expusera o imprudente Egas Moniz. Assim, interrompendo-o, disse ao mancebo:

— É necessário que partas já. No meio do ruído e confusão do banquete; entre a multidão de gente que vagueia ainda pelo castelo e pelo burgo ninguém te conhecerá. Mas qualquer imprudência pode perder-te: qualquer imprudência!... Repara bem, Egas. Estes paços encerram para ti a morte.

Eram o amor e o ciúme do moço trovador que o bom do monge mais receava. Sabia quanto ele amava Dulce: conhecia a violência das suas paixões, e que a do ciúme devia ser terrível naquele coração. Porventura o motivo da sua vinda a Guimarães não fora só o que dizia. Estas ideias, que de golpe tinham ocorrido a Fr. Hilarião, lhe faziam desejar com tanto afinco a partida breve do cavaleiro.

— Não sei porque a minha vida periga dentro destes muros - replicou Egas Moniz. - Há mui poucos dias que cheguei a Portugal; e o conde de Trava não sabe se o meu balção flutua no arraial do infante...

— Esqueceste depressa na Terra Santa - interrompeu o monge - que quando há um cadáver de assassinado entre família e família, a vingança, segundo o brutal foro de Espanha, que os santos cânones ainda não puderam destruir, dura de pais a filhos; convoca, sobe pena de desonra, todos os parentes do morto e do assassino a lides atrozes e a ódios implacáveis. A linhagem de Riba de Douro segue toda os pendões do infante. O conde folgaria com que a de Trava e Trastâmara fosse chamada a defender os dele pela voz imperiosa do que ricos-homens e infanções crêem brio e dever. Lembra-te, meu filho, da linhagem a que pertences, de que o conde é homem feroz, e que tu serias uma vítima ilustre para pretexto de perpétua guerra de homizio entre Portugal e Ganza.

O mancebo ficou por algum tempo pensativo e murmurou:

— Cumprir-se-á meu destino! - Depois voltando-se para o abade disse-lhe: - Ficai tranquilo, bom Fr. Hilarião, esta mesma noite sairei de Guimarães.

— E breve! - acudiu o Lidador. - O esforço não exclui a prudência. Se todavia alguém tentar embargar-te os passos, não te esqueças de que Gonçalo Mendes está aqui, e que tem consigo vinte escudeiros valentes.

Neste instante as trombetas tocavam pelos eirados do paço e pelos adarves do castelo, e ouviam-se romper da banda da sala de armas os sons ásperos e vibrantes das charamelas.

— É o sinal de que começa o banquete - notou o abade, a quem semelhantes sons eram suaves, ainda nas maiores angústias. - É necessário apresentarmo-nos a tempo, para não causarmos suspeitas.

Egas apertou a mão ao Lidador, abraçou o monge, e, puxando o capuz do zorame para diante, seguiu ao longo da viela, enquanto os dois retrocediam e se encaminhavam para a escada principal do palácio, com passos lentos e conversando em voz baixa. Antes de chegarem acima, viram passar por eles um pajem galgando os degraus quatro a quatro e rindo como um perdido.

— Estes rapazes são doidos! - disse o monge para o seu companheiro de modo que o pajem o ouvisse.

Este olhou para trás, fitou os olhos em Fr. Hilarião com gravidade cómica, e deu uma gargalhada, continuando a galgar a escadaria.

Era Tructesindo.