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O Bonde

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Quando ia tomar o meu bonde, hoje pela manhã, o meu vizinho Dr. Viegas passou no seu Dodge e atirou-me. num gesto, a fisga de um convite. Hesitei um pouco, e afinal optei pelo bonde. O Dr. Viegas partiu.

Entrei no carro elétrico, conquistei um lugar no último banco, e só depois que me vi instalado e refestelado é que me ocorreu dirigir a mim próprio esta interpelação: "Por que será que recusei o automóvel? Porque preferi o bonde?" A resposta não foi imediata nem rápida; veio porém, e aqui a reduzo a conserva:

"Preferi o bonde porque não tenho pressa. E não quero ter pressa, porque estou contente, e o contentamento em mim propende naturalmente à lenteza das degustações silenciosas e chuchurreadas. Trago a alma numa pacificação pessoal e cantante, num desses estados de harmonia orgânica que crescem de dentro para fora, como uma florescência, sem se saber porque, e por isso mesmo são mais doces. Para fruir esta eufórica disposição, preciso de estar só. E a melhor maneira de estar só é ainda achar-se no meio de uma quantidade grande de estranhos. Sentimo-nos, assim, não apenas insulados, mas diversos. Duplo círculo de segregação. Solidariedade enfestada. - E eis aí a única forma de solidariedade perfeita que os homens até hoje inventaram: a união de todos para deixar cada um entrincheirado em si mesmo, como uma pedra.

Depois, o automóvel me é antipático. A rapidez posta a serviço dos que não têm que fazer! A faculdade de deslocamento veloz em posse dos que menos razão teriam para correr! Assim, os relógios de bolso foram nos seus princípios um luxo de ricos, depois de apatacados; adorno e brinquedo dos que tinham mais tempo ao seu dispor. Velha história da maioria dos inventos: charadas e curiosidades de mecânica para pessoas lunáticas ou desocupadas, acabam impondo-se a todo o mundo. Não os determina a necessidade: eles é que a suscitam. Os que trabalham deveras, os que suam e gemem na tarefa de todos os dias são os que precisariam de ter automóvel, para poupar minutos, para espremer uma gota de vida e de sangue em cada segundo. Mas esses não o podem adquirir e manter; podem quando muito sonhar em possuí-lo um dia - quando já não seja necessário.

Assim se vive perpetuamente, em busca do supérfluo; por ele nos batemos e sacrificamos. O supérfluo é-nos tão indispensável como para certos doentes o ar das montanhas ou os banhos de mar. Nele pomos as nossas esperanças de saúde e rejuvenescimento. A vida é uma carreira louca em pós de automóveis relampejantes. Poucos os agarram. E os que os agarram, apenas aboletados mandam tocar mais depressa para alcançar um outro que faiscou ao longe. E toda esta canseira se resolve numa carreira desesperada empós do último carro, aquele que tem douradas e negruras.

O automóvel é o veículo dos que fogem a si mesmos. Qual a causa dessa febre de pressa? Vaidade material, exteriorização do centro de gravidade psíquica. Depois, gosto puro da velocidade, pendor infantil reencontrado na idade madura - prazer de um tropel de sensações, dominado pela sensação central e capitosa de sermos uma vertigem que voa através do delírio das coisas. Tudo maneiras novas de embriaguez. O automóvel vem da mesma prateleira que o whisky, o tango e a morfina. Tudo maneiras de uma pessoa esquivar o olho antipático e fulgurante do seu Eu profundo, o consciente, o rememorador, o censurante, o meditativo, que desperta e fala quando abandonamos o corpo e os sentidos, e os braços descansam, e o animal estatela como um mecanismo cuja corda se acabou.

O automóvel é o veículo dos que não amam, apenas desfloram libertinamente a beleza das coisas. - A melhor atenção do viajante, por essas estradas, se concentra na máquina. "Como se porta? Quanto anda? Quantos quilômetros andou? Como funcionam os freios? Bastará a provisão de gasolina? Onde encontrar gasolina aos litros? Olha um que lá vem como um louco! Vamos a uma chispada! Cuidado com essa volta... Diabo, lá se foi um pneu!... - Assim, conjugado ao passageiro por todas as fibras da atenção e da vontade, o auto é como um corpo doente que uma triste criatura tem de conduzir, absorvida nele, por entre esbarros e escorregões. É um prolongamento imediato do Eu material, e pois um reforço tremendo da múltipla escravidão que amarra a endolorece o espírito. O ideal do filósofo é despojar-se de tudo quanto nos limita e nos pesa: o ideal comum é encarapitar novas cargas e novos prolongamentos, novas estruturas postiças à personalidade natural.

Os homens na verdade amam todo gênero de escravidão, contanto que lhe ponham um nome aprazível. Dirigir um automóvel é "dirigir" alguma coisa. (Veja-se a tradicional imponência dos indivíduos atrelados a uma boléia). Chamam a isso dominar a matéria cega e a força bruta. Dominar a matéria e a força, quem o faz é o inventor que labuta no gabinete e no laboratório. Os outros apenas reproduzem a história do mágico aprendiz. - Chamam a isso fazer esporte, cooperar na obra de não sei que vago progresso. E com estas idéias se alegram. Fáceis de contentar, os homens. É pena que os forçados das galés antigas não tenham tido a consolação de algum pensamento nesse estilo, quando se dobravam e desdobravam amarrados à mecânica extenuante do remo!

Sim, automobilistas há que têm tempo para ver; que colecionam sensações; que trazem braçadas de impressões da natureza, dos povoados, das caras e das almas entrevistas. Impressões talvez nítidas, mas fragmentárias e superficiais, como fotografias. A objetividade chata e unilateral do instantâneo. Nada das penetrações, das tatilidades envolventes, das sondagens reveladoras, das adivinhações enlevadas, das apreensões íntimas, concretas, totalizantes, de uma alma em lento contato, em luta e em núpcias com a virgindade fugitiva do real. A imparcialidade química, a mentirosa, a estúpida imparcialidade da fotografia.

Enquanto que o bonde... Ah! o bonde é outra história. Nem tão vagaroso que dê sono, nem tão veloz que dê vertigem, tem a suprema vantagem de ser seguro e repousante. "Repousante" quer dizer que nos deixa o descanso necessário para continuarmos em lida e em briga conosco mesmos. Quer dizer que no bonde não intervém a força centrífuga que nos estraçalha e nos projeta contra as coisas ambientes, na alucinação das corridas elásticas e esfuziantes. Em vez de domar a pulso umas engenhocas pomposas e traiçoeiras, acho mais razoável e mais agradável degustar as aquisições já provadas e certas do gênio inventivo, das quais nos podemos servir sem lhes dar maior atenção. E que formidáveis aquisições, já docemente incorporadas aos nossos modos de ser! Por exemplo, este meu Faber n.0 2, macio, leve e corrente como uma agulha sensibilíssima adaptada a um aparelho psicográfico; este papel em que escrevo, liso e lúcido como porcelana, claro como a cordialidade, alvo como a inocência, receptivo como um espelho; este humilde capote de lã que molemente me escorrega dos ombros à medida que trabalho, brando como um carinho piedoso que discretamente se retira; este meu relógio paciente e incansável, que há seis anos tiquetaqueia todos os minutos da minha vida, já embaciado, já com os relevos do tempo meio delidos, já com um ponteiro meio torto, já com o vidro meio opaco, mas con moto dentro firme e obstinado no seu trabalho, sempre a contar lá consigo, na sua vizinha martelada e tilintante, a medida perpétua de todas as monotonias essenciais deste mundo tumultuoso.

O bonde permite que eu me concentre em mim mesmo. Não vale isso grande coisa, mas sempre é um meio de eu me sentir viver enquanto vivo. O que não é possível no automóvel à solta, onde a nossa alma se vai espadanando pelos caminhos como a água de uma vasilha sacolejada.

O bonde permite-me ver de perto, viver o bicho-homem na substancial realidade dos seus gestos inadvertidos. E esse bichinho (verme da terra, lá diz o Evangelho) é afinal só o que há de interessante no mundo.

As próprias estrelas são uma poeira estúpida, na sua mudez mortal e na sua mecânica fria. De onde lhes vem a magnitude e a beleza? Da pequenez e da miséria desse bichinho que pensa e que imagina, entre as minhocas e os sapos. A sua pequenez e a miséria o fazem visionário de esplendores.

Deliciae meae esse cum filiis hominum.

O bonde é uma galeria inesgotável de exemplares desse verme sempre igual e sempre vário; uma exposição permanente, renovada a cada instante, de tipos, de esboços, de caricaturas, rica e múltipla como a vida, sugestiva como deve ser a antecâmara do Purgatório. Se as almas soassem, o bonde seria como um poderoso jazz-band sobre rodas em que os uivos, os berros, os soluços, as casquinadas interiores se despenhariam em cataratas de dissonâncias - sem perder o fio às grandes linhas monótonas da composição.

"Ah! o bonde, sim..."

Depois de me dar esta resposta, achei que era um pouco longa demais para explicar uma resolução tomada em dois segundos. Mas não sei fazê-lo por outro modo. Sei apenas que é assim, ordinariamente, com todas as nossas resoluções. Elas pressupõem longos trabalhos de raciocínio e reflexão; na verdade, esses trabalhos vêm depois, e só servem, quando muito, para as seguintes edições do mesmo ato.

No cabo de tudo, se eu ainda dispusesse de dinheiro sobrante, compraria um automóvel, ou uma dessas máquinas que mais se assemelham automóvel.