O Cabeleira/Ao leitor
Meu amigo,
A casa, onde moro, está situada ao lado de uma rua de bambús, em um dos cantinhos mais amenos da bacia de Botafogo.
Vejo daqui uma grande parte da bahia, os morros circumstantes, cravando seus cumes nas nuvens, o céo de opalo, o mar de anil.
Infelizmente este bello espectaculo não é immutavel.
De subito o céo se torna brusco, e só descubro cabeços fumegantes em torno de mim; ribomba o trovão nos pincaros alcantilados; a chuva fustiga as palmeiras e casuarinas; a ventania brame no bambuzal; a casa estala. Parece que tudo vai derruir-se.
Estas tormentas duram horas, noites, dias inteiros, e reproduzem-se com mais ou menos frequencia.
Quando ellas têm passado de todo, o céo mostra-se mais puro e bello, o mar mais azul, as arvores mais verdes; a viração tem mais doçura, as flores mais deliciosos aromas.
Pela face das pedreiras correm listrões d’agua prateada, que reflectem a luz do sol, formando brilhantes matizes. Coberta de frescas louçanias, a natureza sorri com suave gentileza depois de haver esbravejado e chorado como uma criança.
É tempo de cumprir a promessa extorquida pela amizade, que não attendeu ás mais legitimas escusas. Essa natureza brilhante e movel estava a cada instante convidando o meu desanimo a romper o silencio a que vivo recolhido desde que cheguei do extremo-norte do imperio.
Depois de cêrca de dous annos de hesitações, dispuz-me enfim a escrever estas pallidas linhas — notas dissonantes de uma musa solitaria, que no retiro, onde se refugiou com os desenganos da vida, não póde esquecer-se da patria, anjo das suas esperanças e das suas tristezas.
Tive porém que melhor seria leres umas centenas de paginas na estampa, que traduzires um volumoso in-folio, inçado de tantas emendas e entrelinhas que a mim mesmo custa ás vezes decifral-as, pela razão de que tudo aqui se escreveu sem ordem, sem arte, sem se attender a ideal, por aproveitar momentos vagos e incertos de uma penna que pertence ao estado e á familia.
Por isso, em lugar de uma carta receberás nessa encantadora Genebra, onde te delicias com a memoria de Rousseau, Stael, Voltaire, Calvino — astros immortaes, que rutilarão perpetuamente no firmamento da civilisação, um livro hoje, outro talvez amanhã, e alguns mais successivamente, até que me tenha libertado da obrigação, que me impuzeste, conforme o permittirem as minhas forças diminuidas pelo meu afastamento das cousas litterarias de nossa terra.
Inicio esta serie de composições litterarias, para não dizer estudos historicos, com o Cabelleira, que pertence a Pernambuco, objecto de legitimo orgulho para ti, e de profunda admiração para todos os que têm a fortuna de conhecer essa refulgente estrella da constellação brazileira. Taes estudos, meu amigo, não se limitarão sómente aos typos notaveis e aos costumes da grande e gloriosa provincia, onde tiveste o berço.
Pará e Amazonas, que não me são de todo desconhecidas; Ceará, torrão do meu nascimento; todo o norte emfim, si Deus me ajudar, virá a figurar nestes escriptos, que não se destinam a alcançar outro fim senão mostrar aos que não a conhecem, ou por falso juizo a desprezam, a rica mina das tradições e chronicas das nossas provincias septentrionaes.
Depois de alguns mezes de ausencia, tornei a ver o Recife, esplendida visão de teus sonhos nostalgicos. Lamento que, havendo sido transportado muito novo ainda ao velho mundo, não guardes dessa visão a menor lembrança, fugitiva embora. Genebra com o Mont-blanc coberto de neves e gêlos eternos; o lago immenso, que a um sem-numero de poetas tem inspirado maviosos e immortaes cantos; o Rhodano que, ao dizer de um viajante nacional, foge apressado, resmungando com voz medonha em procura de hospitalidade no Mediterraneo, não póde ter a belleza dessa elegante e risonha cidade, que surge d’entre mangues verdejantes, aguas limpidas, pontes soberbas, e se estende por sobre vasta planicie, obrigando os matos a se afastarem de dia em dia ao occidente para ter espaço onde alongue de improviso suas novas ruas, suas estradas, seus trilhos, testemunhos de sua prosperidade material, commercial e agricola ; onde funde novas escolas e erija novos templos, testemunhos de sua civilisação e grandeza moral.
Vi o Pará, e adivinhei-lhe as incalculaveis riquezas ora occultas no regaço de um futuro que, si não annunciou ainda a época precisa de sua realização, não se demorará muito, segundo se infere do que apresenta, em traduzir-se na mais brilhante realidade.
E que direi do Amazonas, incomprehensivel grandeza, que tem a indole da immensidade e a feição do escandalo?
Não ha prodigio que se possa comparar com aquelle no descoberto. Não creio que Rousseau fosse capaz de phantaziar semelhante, ainda que levasse toda a vida a imaginar, elle o philosopho sonhador que com suas idéas revolucionou o mundo; o homem crêa a grandeza ideal, a grandeza physica porém só Deus a concebe e executa. Stael em vão tentaria descrever esse reino encantado como descreveu Italia em sua imperecedoura Corinna em que o estudo dos monumentos e do passado não desdiz do coração, monumento de todos os tempos.
Entrando alli, pareceu-me entrar em um templo phantastico e sem proporções. É natural o phenomeno: sempre que nos achamos diante das obras primas da creação, secreto instincto nos adverte que estamos na presença de Deus. A admiração tem então a solemnidade de um recolhimento e de uma homenagem. As impressões passam dos sentidos ao fundo da alma onde vão repetir-se com maior intensidade. Todas as nossas faculdades — a intelligencia, a imaginação, a propria vontade, deixam-se dominar de uma como volupia que não é sensual, mas deleitosa, e grande como é talvez o extase. Ainda quando tenhamos o espirito cansado dos erros e injustiças dos homens, nós o sentiremos levantar-se immediatamente cheio de vida diante da representação enorme, como si elle se achasse em sua integridade virginal. É o effeito do assombro que percorre, como fluido, o nosso organismo, despertando em nós abruptas sensações que nunca experimentámos, e que são para nós verdadeiros phenomenos do mundo physiologico.
Aguas immensas serviam de lageamento ao magestoso templo, que tinha por abobada o céo sem limites. Á visão physica escapavam as columnas e paredes dessa cathedral-mundo, as quaes a minha imaginação fôra collocar além dos horizontes invisiveis do Atlantico.
Do lado do norte quebravam a monotonia da superficie envoltos nos vapores matutinos uns como rudimentos gigantescos de arcadas colossaes. Em outras quaesquer condições cosmicas esses rudimentos apresentar-se-hiam á minha vista como grandiosas ruinas; alli não; o que se afigura ao espirito de quem os observa, é uma cousa indizivel; afigura-se que essas arcadas estão em começo de construcção e se destinam a romper o céo, porque no meio daquelle sumptuoso impossivel poder-se-ha dizer que nenhum atomo tem o direito de se deixar destruir; quando tudo não exista alli ab initio, quando tudo não tenha alli uma vida que não teve principio e que não ha de ter fim, só o que resta ao corpo é nascer, agigantar-se, eternizar-se na materia, que não acabará sinão no fim dos tempos.
O que eu via e acabo de apontar não era outra cousa que a região amazonia que começava a desenhar-se risonha, azulada, esplendida. Eram ilhas sem numero, umas de comedidas dimensões, outras de descommunal amplitude, todas ellas multiformes, marchetando aqui as aguas, bordando alli o continente coberto de uma espêssa crôsta de verdura.
Quem não entrou ainda nesse mundo novo onde ao homem que pela primeira vez nelle penetra, se afigura não ter sido precedido por um unico sequer dos seus semelhantes; onde ha leguas e leguas que ainda não foram pisadas por homem civilizado, e onde ha rios que só a canôa do indio tem fendido, não póde formar idéa dessa esplendida maravilha.
Quando me achei, não em face mas no seio daquella natureza (porque em breve me vi cercado de ilhas, das quaes algumas podem comparar-se a continentes, que em todas as direcções iam ficando ou apparecendo), natureza a que a minha imaginação tinha dado fórmas incriveis, filhas da visão intima, reconheci só então quanto em seus vãos arroubos me havia a phantasia deixado áquem da realidade. Nada do que fui descobrindo conformava com as paysagens que eu traçára e colorira na mente não obstante as proporções gigantescas, as linhas correctas, as côres variadas, os matizes estupendos com que eu as tinha feito surgir de minha palheta. Pallidos e somenos hão de ser sempre diante daquella realidade a modo de fortuita os sonhos do maior imaginar.
Muito se ha escripto do Pará e Amazonas desde que foram descobertos até nossos dias. Que valem porém todos os escriptos e narrações de viagem a semelhante respeito? Quasi nada.
O que elles nos põem diante dos olhos é o traço hirto, e não o musculo vivo e herculeo; é a ruga, e não o sorriso; é a penumbra, e não o astro; o que elles nos offerecem são fórmas tesas e seccas em lugar dos contornos brandos, delicados e flexiveis dos immensos panoramas e transparentes perspectivas dessas regiões paradisiacas.
Como pintar as myriadas de ilhas, rios, furos, igarapés, que se mostram aos olhos do viajante desde a foz do grande rio, desde a confluencia deste com os outros rios, que não têm conta, até suas nascenças, que durante muitos annos ainda hão de ser quasi inteiramente desconhecidas? Como pintar taes immensidades, si vencer um desses rios, um desses furos, um desses igarapés, deixar atrás ou de lado uma, dez, cem ilhas, é o mesmo que penetrar em novos igarapés, novos furos, novos rios, contornar novas ilhas?
Nem sempre porém a natureza sorri, ou protege, ou abraça; ás vezes ella encolerisa-se e, trocando os afagos da mãi carinhosa com as asperezas da madrasta desamoravel, repelle o homem por mil fórmas, e o impelle para mil perigos.
A colera, o açoite, a repulsa, o impulso, o puro franzir do sobr’olho da madrasta irritada são terriveis manifestações: é a tempestade que afunda mil vidas — o homem, a cobra, a onça, a ave infeliz que passava trinando venturas; é a correnteza que desaggrega, desfaz ilhas, e as apaga da superficie das aguas, e arranca o cedro, a palmeira, os quaes vão arrebatados no turbilhão, que os engole vestidos de virente folhagem para os vomitar escalavrados, nús, despedaçados, sordidos.
A pedra não resiste. A revolução arrasta-a com rapidez inconceptivel, e a vai levar em um momento a fundos abysmos , que são outros tantos domicillios da vertigem e da morte. Com a pedra desappareceria a montanha, si tivesse a imprudencia de ir surgir á frente, ou no meio daquellas impetuosas aguas, que alagam, constringem, cavam, desmantelam, pulverizam praias, ribas, fragas e continentes.
— Que não seria deste mundo — pensei eu, descendo das eminencias da contemplação ás planiceis do positivismo, — si nestas margens se sentassem cidades; si a agricultura liberalizasse nestas planicies os seus thesouros; si as fabricas enchessem os ares com seu fumo, e nelles repercutisse o ruido das suas machinas? Desta belleza, ora a modo de estatica, ora violenta, que fontes de rendas não haviam de rebentar? Mobilizados os capitaes e o credito; animados os mercados agricolas, industriaes, commerciaes, artisticos, veriamos aqui a cada passo uma Manchester ou uma Nova- York. A praça, o armazem, o entreposto occupariam a margem, hoje núa e solitaria, o cômoro sem vida e sem promessa; o arado percorreria a região que de presente pertence á floresta escusa. O estado natural, espancado pelas correntes da immigração espontanea que lhe viessem disputar os dominios improductivos para os converter em magnificos emporios, ter-se-hia ido refugiar nos sertões remotos d’onde em breve seria novamente desalojado. Uma face nova teria vindo succeder ao brilhante e magestoso painel da virgem natureza. Não se mostrariam mais aqui as tendas negras da fome e da nudez. O trabalho, o capital, a economia, a fartura, a riqueza, agentes indispensaveis da civilização e grandeza dos povos, teriam lugar eminente nesta immensidade onde vemos unicamente aguas, ilhas, planicies, seringaes sem fim.
Mas por onde ando eu, meu amigo? Em que alturas vou divagando nas azas da phantasia? Venhamos ao assumpto desta carta.
No Cabelleira offereço-te um timido ensaio do romance historico, segundo eu entendo este genero da litteratura. Á critica pernambucana, mais do que á outra qualquer, cabe dizer si o meu desejo não foi illudido; e a ella, seja qual fôr a sua sentença, curvarei a cabeça sem replicar.
As lettras têm, como a politica, um certo caracter geographico; mais no norte, porém, do que no sul abundam os elementos para a formação de uma litteratura propriamente brazileira, filha da terra.
A razão é obvia: o norte ainda não foi invadido como está sendo o sul de dia em dia pelo estrangeiro.
A feição primitiva, unicamente modificada pela cultura que as raças, as indoles, e os costumes recebem dos tempos ou do progresso, póde-se affirmar que ainda se conserva alli em sua pureza, em sua genuina expressão.
Por infelicidade do norte, porém, d’entre os muitos fllhos seus que figuram com grande brilho nas letras patrias, poucos têm seriamente cuidado de construir o edificio litterario dessa parte do imperio que, por sua natureza magnificente e primorosa, por sua historia tão rica de feitos heroicos, por seus usos, tradições e poesia popular ha de ter cêdo ou tarde uma bibliotheca especialmente sua.
Esta pouquidade de architectos faz-se notar com especialidade no romance, genero em que o norte, a meu ver, póde entretanto figurar com brilho e bizarria inexcedivel. Esta verdade dispensa demonstração. Quem não sabe que na historia conta elle J. F. Lisboa, Baena, Abreu e Lima, Vieira da Silva, Henriques Leal, Muniz Tavares, A. J. de Mello, Fernandes Gama, e muitos outros que podem bem competir com Varnhagem, Pereira da Silva, e Fernandes Pinheiro; que o primeiro philologo brazileiro, Sotero dos Reis, é nortista; que é nortista Gonçalves Dias, a mais poderosa e inspirada musa de nossa terra ; e que igualmente o são Tenreiro Aranha, Odorico Mendes, Franco de Sá, Almeida Braga, José Coriolano, Cruz Cordeiro, Ferreira Barreto, Maciel Monteiro, Bandeira de Mello, Torres Bandeira, que valem bem Magalhães, A. de Azevedo, Varella, Porto Alegre, Casimiro de Abreu, Cardoso de Menezes, Teixeira de Mello?
No romance, porém, já não é assim. O sul campêa sem émulo nesta arena, onde têm colhido notaveis louros: Macedo, o observador gracioso dos costumes da cidade; Bernardo Guimarães, o desenhista fiel dos usos rusticos; Machado de Assis, cultor estudioso do genero que foi vasto campo de glorias para Balzac; Taunay que se particulariza pela fluencia, e pelo faceto da narrativa; Almeidinha, que a todos estes se avantajou na correcção dos desenhos, posto houvesse deixado um só quadro, um só painel, quadro brilhante, painel immenso, em que ha vida, graça, e colorido nativo. Estes talentos, além de outros que me não lembram de momento, não têm, ao menos por agora, competidores no norte, onde aliás não ha falta de talentos de igual esphera.
Não me é licito esquecer aqui, ainda que se trata do romance do sul, um engenho de primeira grandeza, que, com ser do norte, tem concorrido com suas mais importantes primicias para a formação da litteratura austral. Quero referir-me ao exm. sr. conselheiro José Martiniano de Alencar, a quem já tive occasião de fazer justiça nas minhas conhecidas Cartas-a-Cincinnato.
Quando, pois, está o sul em tão favoraveis condições, que até conta entre os primeiros luminares das suas lettras este distincto cearense, tem os escriptores do norte que verdadeiramente estimam seu torrão, o dever de levantar ainda com luta e esforço os nobres fóros dessa grande região, exhumar seus typos legendarios, fazer conhecidos seus costumes, suas lendas, sua poesia máscula, nova, vivida e louçã tão ignorada no proprio templo onde se sagram as reputações, assim litterarias, como politicas, que se enviam ás provincias.
Não vai nisto, meu amigo, um baixo sentimento de rivalidade que não aninho em meu coração brazileiro. Proclamo uma verdade irrecusavel. Norte e Sul são irmãos, mas são dous. Cada um ha de ter uma litteratura sua, porque o genio de um não se confunde com o do outro. Cada um tem suas aspirações, seus interesses, e ha de ter, si já não tem sua politica.
Emfim não posso dizer tudo, e reservarei o desenvolvimento, que taes idéas exigem, para a occasião em que te enviar o segundo livro desta série, o qual talvez venha ainda este anno, á luz da publicidade.
Depois de haveres lido o Cabeleira, melhor me poderás entender a respeito da creação da litteratura septentrional, cujos moldes não podem ser, segundo me parece, os mesmos em que vai sendo vasada a litteratura austral que possuimos.
Teu
𝕱𝖗𝖆𝖓𝖐𝖑𝖎𝖓 𝕿𝖆𝖛𝖔𝖗𝖆
Rio — 1876.