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O Cabeleira/V

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V

 

Luizinha era uma menina branca, orphã, de indole benigna e de muito bonitos modos. Compadecida da pouca sorte da pequena, uma viuva recolheu-a em sua casa á conta de filha, e começou logo a ter para ella maternal solicitude. Luizinha era digna deste amparo, não só pelos predicados sobreditos, sinão tambem pelos seus encantos naturaes que a todos captivavam com justa razão.

Florinda, a viuva, deu á menina a educação que então se usava e que, com poucas modificações, e alguns acrescentamentos, ainda hoje se usa no campo. Assim, não se demorou muito qne Luizinha soube fiar, coser costuras chãs, fazer bicos e rendas, respeitar os mais velhos e encommendar-se a Deus. Como era dotada de excellente coração, dentro em pouco passou a ser estimada por todos do lugar, e até pelos comboieiros e boiadeiros que se arranchavam no povoado para deixar passar a força do sol do meio dia, ou ahi pernoitarem quando não podiam, ainda com ar de dia, romper a mata onde se acoutavam negros fugidos e malfeitores.

A mata tinha mais de legua de comprido, e ninguem lhe sabia os escondrijos.

Quando se divulgou que Joaquim havia deixado a mulher, todos, a uma voz, logo prognosticaram que elle ia estabelecer dentro da mata virgem o seu novo domicilio. Á vista da sua má indole de todos conhecida, houve quem assegurasse que elle estava de mãos dadas com os facinorosos de Pernambuco, de Parahyba e de Rio-grande-do-norte, que alli se homiziavam. Muitos destes eram conhecidos por seus nomes e pessoas, e uma vez por outra faziam sortidas sobre os povoados, saqueavam as vendas, perpetravam mil desatinos, e escapavam sempre á acção da justiça, inefficaz naquelle tempo, como ainda o é hoje a nossa policia nos povoados longinquos, para não dizermos nas proprias capitaes segundo sabemos.

A voz do povo não era sinão o echo da verdade.

Não se metteu muito tempo que crimes de nova especie, revestidos de circumstancias que revelavam a maior perversidade de parte dos delinquentes, vieram a attestar que os negros arraiaes estabelecidos no centro da espessura haviam feito novas acquisições que primavam nas ciladas, no manejo das armas, na firmeza das execuções.

Ao principio não se soube a quem attribuir o sangue novo levado ás veias dos grupos dos criminosos ahi asylados, os quaes, bem que numerosos, nunca manifestaram a audacia, a ferocidade inaudita que sorprendiam e aterravam agora as populações. Para maior confusão destas, tinha sido visto mais de uma vez o Joaquim, ora de companhia com o filho, ora cada um sozinho, montado no seu cavallo, vendendo legumes, macaxeiras, farinha, assucar pelas povoações, e fazendo compras no Recife; o que deixava, pelo menos suppôr que elles se davam ao trabalho da lavoura, e passavam a vida honestamente á custa do suor de seu rosto. Mas em menos de dous annos não se pôde mais pôr em duvida que fossem consenhores dos vastos e virgens dominios, onde figuravam talvez como os primeiros e mais respeitados de todos os outros conquistadores, seus iguaes.

Algumas victimas que tinham conseguido, por felicidade ou acaso, escapar com vida das garras dos féros algozes, deixando-lhes unicamente dinheiro, fazendas ou generos, declaravam que o mais audaz e o mais terrivel d’entre elles era um joven de cabellos tão crescidos que lhe batiam nos hombros, assemelhando-se aos de uma dama. Outros diziam que tinham visto por muitas vezes o Joaquim na malta dos salteadores, e que na pessoa do joven dos cabellos compridos ou do Cabelleira, segundo começaram logo de chamal-o, haviam reconhecido seu filho José Gomes.

Notou-se tambem uma especie de moderação, ou de suspensão de hostilidades, ou ao menos de cessação de crueldade nestas, de parte dos salteadores em certas quadras do anno, durante as quaes não figuravam nos acommettimentos nem o Cabelleira nem seu pai. Dahi se inferiu, com todo o fundamento, que os dous matadores não limitavam as suas correrias áquellas redondezas, mas, que pelo contrario, deixando os seus escondrijos, visitavam novos termos, percorriam outros lugares, como os selvagens mudam de região quando na que preferiram para a sua transitoria residencia, não encontram mais com que alimentar a sua indolencia e barbara voracidade.

Esta conjunctura foi dentro de pouco tempo confirmada pelos clamores que se levantaram nas freguezias e termos vizinhos, e nos lugares remotos aonde o Cabelleira e seu pai foram levar o assombro e o terror de que já tinham enchido a provincia natal. As pacificas ribeiras do rio Parahyba e do Rio-grande-do-norte, os engenhos, povoações e villas das duas provincias, que trazem os nomes destes dous grandes rios, começaram a pagar, como as ribeiras do Capibaribe, e as propriedades ruraes e os pontos populosos de Pernambuco, o terrivel imposto a que por mais de uma vez nos temos referido no correr desta narrativa. Os bandos dos salteadores escolheram para centros das suas operações as matas proximas dos rios, as catingas pegadas aos caminhos d’onde podiam facilmente espreitar e acommetter a seu salvo os inoffensivos viajantes que, com o fructo do trabalho honesto e da industria esforçada, deixaram muitas vezes nessas medonhas solidões o seu sangue, a sua propria vida.

Cresceram a par a idade de Luizinha e o nome odioso do Cabelleira, nome que, principiando como um boato ou uma duvida, se foi de dia em dia condensando e se constituiu a final uma fama que echoou, com os uivos das feras carniceiras, do sul ao norte, do sertão ao littoral, engrossando sempre com as novas façanhas, como um fraco regato acrescenta o volume das suas aguas e se faz rio caudal com os subsidios que cada dia recebe em sua longa e demorada passagem pelo deserto.

Do fundo da obscuridade, que envolvia a sua existencia, a menina acompanhou com os olhos inundados de lagrimas as phases successivas que atravessou esse nome destinado a ter uma pagina enlutada na historia da patria. É que bem dentro no seu coração estava a imagem do companheiro de infancia a quem ella nunca pôde esquecer, ainda quando esta imagem lhe apparecia, como tantas vezes aconteceu, envolta em uma nuvem de sangue, e acompanhada de unisonas maldições.

Á noticia de um novo attentado commettido pelo moço que por uma lei natural da imaginação sempre se lhe representava com as feições do menino de outr’ora, Luizinha sentia no coração uma dôr semelhante á que produz a dentada de uma serpente.

No terço, que se rezava de noite em casa de Florinda; na missa que o coadjuctor celebrava de madrugada; em qualquer occasião propria para elevar o pensamento ás regiões onde flue a eterna fonte das consolações em cujas aguas se retemperam das dores da vida os espiritos resignados e crentes, a pobre moça tinha sempre uma oração para que Deus abrandasse a natureza de José e o tornasse, pela contricção e pela emenda, digno do perdão da sociedade. Ella não podia crer que, tendo sido esta tantas vezes indulgente para outros criminosos, fosse inexoravel para o mancebo que por algum tempo andára apartado do caminho do dever. Pobre, ingenua e credula criança!

Mal sabia que, para grande lição da sociedade do futuro, estava escripto que o comêta que assim abrazava a terra, percorreria a vastissima orbita que a Providencia lhe traçára, e se afundaria nos espaços, não entre refulgentes auroras, mas dentro de profundas e medonhas escuridões.

Uma tarde Luizinha foi buscar agua no rio Tapacurá, que banha a cidade da Victoria, então povoação de Santo-Antão, á qual pertencia Gloria-de-Goitá d’onde era natural o Cabelleira. Santo-Antão distingue-se na historia pernambucana pela circumstancia de lhe estar proximo o Monte-das-tabocas no qual se verificou em 3 de agosto de 1645 a batalha que iniciou a insurreição portugueza contra o dominio hollandez, e exercitou directa e decisiva influencia no futuro politico, commercial, industrial e religioso do Brazil. Esta memoravel batalha, depois de seis longas horas de fôgo, declarou-se em favor dos nossos primeiros dominadores. Em commemoração deste acontecimento, uma lei provincial de 6 de maio de 1843 eregiu a antiga povoação em cidade a que chamou da victoria como acima se vê.

O Tapacurá, que de inverno tem enchentes formidaveis, estava então cortado pelo rigor da secca de que tratamos no capitulo anterior. No seu largo leito viam-se unicamente, a espaços como de ordinario, pequenos poços onde os habitantes mal achavam agua para o consumo diario.

Luizinha, não querendo levar para a casa agua chafurdada, passou pelos primeiros poços, já muito remechidos, e foi encher a sua vazilha em um que distava pouco menos de quarto de legua da povoação.

O poço ficava a beira de um capão de mato. De um lado o terreno elevava-se gradualmente, e accidentava-se mais adiante, formando zig-zagues quasi inacessiveis e escondrijos escuros, a que a espessura das arvores dava um aspecto medonho. Do lado opposto a margem plana, igual e descampada, formava com a banda fronteira um admiravel contraste.

Quando Luizinha, da areia do rio onde se sentára a descansar, se dispunha a levantar-se para tornar á casa, deu com os olhos em um homem que da borda do mato a observava em silencio com tal interesse que parecia querer attrahil-a a si com a vista.

Sem demora correu ella ao pote, mas já foi tarde. Formando um pulo do outro lado do rio onde estava, o desconhecido veiu cahir no mesmo instante entre ella e a vasilha, sem perder, no rapido vôo, uma só das armas com que se achava apercebido.

— Em vão, meu bem, pretendes fugir-me. Antes que o diabo esfregasse um olho, eis-me aqui ao pé de ti, disposto a não te deixar ir embora sinão por minha livre vontade.

O sitio era inteiramente deserto, e as trevas da noite não tardavam a envolver de todo a natureza.

Luizinha, lançando os olhos pela margem afóra, não viu viva alma. Teve então tamanho medo, que involuntariamente cahiu sentada aos pés do terrivel desconhecido. Lembrou-se de gritar por soccorro, mas logo viu que seria inutil esta tentativa, visto que as suas vozes se perdiriam no vasto ermo onde unicamente echoava o coaxar dos sapos e das rãs, o silvo das cobras, o canto agoureiro dos bacuráus.

— Meu Deus! exclamou ella. Não haverá um christão que me valha nesta afflição?

— Ninguem, ninguem te valerá, bonita rapariga — respondeu o desconhecido, levantando-a por um braço e como querendo arrastal-a na direcção da lingua de terreno por onde se podia ir, a pé enxuto, á margem fronteira.

— Mas, meu senhor — tornou Luizinha achando em si mesma coragem de que nunca se julgára capaz — por tudo quanto é sagrado lhe peço que me deixe ir embora. É quasi de noite, e, si me demorar mais tempo aqui, arrisco-me a encontrar algum malfeitor que me offenda no caminho.

— Queres maior malfeitor do que eu?

— Vosmecê não é um malfeitor. Vosmecê veiu caçar por estas bandas, e, como me encontrou neste ermo, está me mettendo medo para divertir-se a minha custa. E creiu até que havia de defender-me si alguem quizesse fazer-me mal.

— Certamente. Nenhum gavião seria capaz de tirar-me das unhas a minha formosa juruty. Ora, vem comigo; não tenhas medo. Atravessamos por este limpo, ganhamos a capoeira, subimos pela aba da serra e.........

— Deus me livre! exclamou Luizinha assaltada por novos terrores.

— Olhe: si vossê não quizer vir por bem, vem por mal — disse o desconhecido.

— Por mal? E onde está Deus? interrogou Luizinha, elevando todo o seu espirito aos pés daquelle que está em toda a parte para acudir aos atribulados que o invocam com sincera confiança. Nem por mal nem por bem. Eu não vou com vosmecê ainda que me custe a propria vida. Eu sei que Deus me está ouvindo de dentro deste mato, de cima deste céo. Elle ha de lembrar-se de mim.

Diante da firmeza na realidade admiravel, com que a fragil moça respondeu á sua ameaça, o malfeitor sobresteve involuntariamente. Tornando logo em si, porém, continuou com certo disfarce de máo annuncio:

— Ora, menina, deixe-se de asneiras e vamos para diante emquanto o caso não fica mais serio. Si vossê é bonita, eu tambem não sou feio; assim, podemos ter filhos galantes como os têm os passarinhos no seio da solidão.

— Meu Deus, meu Deus, compadecei-vos de mim emquanto é tempo! exclamou ella quasi vencida do terror.

Então á luz crepuscular que enchia a planicie como uma neblina, lobrigou Luizinha um vulto que se dirigia para o lugar onde ella se achava com o malfeitor. Não foi preciso mais para que recrudescesse o seu valor que a ia desamparando.

— Cuidas que não vejo quem alli vem? perguntou o desconhecido, apontando o vulto que, como vinha pelo rasto da moça, com pouco mais estaria com elles. Eu podia agora mesmo metter-me comtigo pelo mato a dentro. Si tentasses gritar, tapava-te a bocca, e ninguem saberia o teu fim. Mas quero ficar, para, em vez de uma, levar em minha companhia duas mulheres para o mato, onde ha grande necessidade desta fazenda.

— Estou aqui, minha mãi, estou aqui — gritou Luiza quasi ebria de prazer pela sua salvação, que teve por indubitavel desde que na mulher recem-apparecida reconheceu Florinda.

O malfeitor, porém, seguro de seu poder, nem se moveu, nem se alterou siquer; e para dar testemunho irrecusavel de que não fazia caso do inesperado adjutorio, chasqueou de Florinda, por se apresentar armada com um cacete e um facão.

Querendo Luizinha correr ao encontro da viuva que, tendo ouvido as palavras da rapariga, fôra em seu soccorro com gestos e meneios de louca, o desconhecido, cujos olhos cobriram de repente com uma expressão indescriptivel a pobre victima, não lhe consentiu arredar o pé de junto de si.

— Não irás — disse rudemente, assentando a mão sobre o braço da moça com tanta força e violencia, que a ella se afigurou que elle lhe tinha dado um golpe com o couce da arma.

Florinda passava por ser a mulher mais forte de toda aquella ribeira.

Ella derrubava grossas arvores a machado, abria roçados por empreitada, cortava na mata-virgem lenha que vendia na povoação, e até tarrafeava nas lagôas como um habil pescador. Não se distinguia só nos serviços do campo, mas tambem em fazer excellentes tapiocas e optimo arroz doce que eram as delicias dos matutos e sertanejos nas feiras.

Era curibóca, reforçada, não feia e de boa estatura. Acreditava na existencia do diabo, no inferno e nas penas eternas como ainda hoje acredita a gente do campo e uma grande parte dos habitantes das cidades; mas em compensação tinha uma fé viva e fervorosa em Deus, e era de costumes irreprehensiveis, fé e costumes que desgraçadamente faltam a muitos dos que têm hoje aquella primeira crença.

Tendo ficado viuva, sem filhos, na flôr dos annos, não se quiz casar segunda vez, e nunca ninguem achou motivo de pôr em duvida a sua honestidade. A Luizinha, a quem pouco depois de ter casado, tomou sob sua protecção, como já referimos, consagrava ella todos os seus affectos, e nella fazia consistir o seu orgulho, o seu prazer e a sua felicidade.

Não sendo de meias-medidas quando se julgava offendida, Florinda botou-se com todo o impeto, que trazia, ao desconhecido, o qual, sem soltar Luizinha, que se torcia ao aperto da mão de ferro que a segurava, rebateu o golpe do facão de Florinda com o cano do bacamarte. Com o choque o facão partiu-se, e a folha inteira foi cahir dentro no poço, ficando na mão da curibóca o cabo imprestavel da infame arma.

Florinda era prudente. Tanto que se viu desarmada, sobresteve, dominou a sua justa indignação, e, com a voz masculina que lhe déra a natureza, assim fallou ao malfeitor:

— Que quér vosmecê fazer com minha filha?

— Quero leval-a comigo para meu divertimento. Si tens força para impedires o meu intento, é agora a occasião.

Ouvindo estas acerbas expressões, Florinda, que com a vista medira de cima a baixo o seu adversario, metteu-lhe o cacete com todo o animo que lhe dava sua vida sem mancha, e a justa defeza da filha, seu unico thesouro, de todos acatado e querido. No mesmo instante o ar sibilou, e ouviu-se o som de uma pancada contra um corpo sonoro. Um grito, antes urro medonho, echoou pela vasta solidão, e uma massa, que se parecia, na fórma e no peso, com um tronco de angico annoso, tombou sobre a areia. O desconhecido acabava de obrar uma acção vil. Com a cronha do bacamarte tirara os sentidos áquella digna mulher, que o encarára sem medo.

Vendo sua mãi cahir desfallecida, Luizinha quiz correr em seu amparo, mas não lh’o permittiu a mão do malfeitor que a puxou para traz com força herculea.

— Ah! não conheceste o Cabelleira, cascavel? acrescentou elle com os olhos fitos em Florinda. Vêm metter-se na bocca da onça, e depois dizem que a onça é cruel.

Aos ouvidos de Luizinha aquelle nome passou como uma chamma electrica, que lhe deu forças para volver á vida.

— Cabelleira! repetiu ella.

Só então viu os longos cabellos que cahiam em ondas por debaixo das abas do chapeu de palha sobre os hombros do assasino.

— De que te admiras? Não sabes que o Cabelleira está em toda a parte onde não o esperam? Vem comigo.

E sem mais contemplação, o matador arrastou a menina contra a vontade, a resistencia, os sobrehumanos esforços que esta lhe oppunha, por junto do corpo de Florinda, e seguiu em busca da margem fronteira, onde a noite era já fechada, e o aspecto do sitio pavoroso.

— Agora te conheço, José malvado — disse a moça. Mata-me tambem, já que mataste minha mãi que nunca te offendeu.

— Ah, conheceste a final o Cabelleira?

— Tanto me conhecesses tu, desgraçado!

— Que queres dizer com estas palavras? perguntou o bandido.

— Olha-me bem. Até de Luiza te esqueceste! Assassino, eu te perdôo a morte: mata-me.

Tinham chegado á beira do capão de mato. O Cabelleira estacou. O que acabava de ouvir tel-o-hia prostrado mais depressa do que um golpe igual ao que descarregara, havia pouco, sobre uma das fontes de Florinda, si no mesmo instante não lhe houvesse chegado aos ouvidos um assobio agudo, signal de extrema afflição no couto proximo.

— Ah era vossê? Perdôe-me, Luizinha. Eu não a esqueci. Perdôe-me. Eu não sabia que era vossê — disse então, com brandura, soltando a moça sem mais demora.