Saltar para o conteúdo

O Cabeleira/XII

Wikisource, a biblioteca livre

XII


Ao amanhecer a região littoral da provincia desde Alagôas até Parahyba, estava separada do sertão por um cordão sanitario, formado pelas milicias volantes dos differentes districtos ruraes.

Todas as matas comprehendidas na zona que fica entre a costa e o sertão, foram batidas ao mesmo tempo.

Os piquetes que penetraram nas de Serinhaem, Agua-preta, Muribeca, Merueira, S.-Lourenço, Catucá, Iguarassú, Goyanna, Páo-d’-alho, Limoeiro, recolheram-se mais tarde ás respectivas sédes, depois do terem realizado importantes capturas.

Assassinos de profissão e de fama, que, protegidos pelas trevas da noite e pelas sombras das selvas virgens, tinham horrorizado durante muitos annos as povoações pacificas, appareceram á luz do dia, trazendo nos pulsos cordas e algemas que bem denotavam que a justiça dos homens, reflexo ainda que pallido da justiça de Deus, cêdo ou tarde restaura os seus foros e faz-se respeitar como uma fatalidade reparadora.

O capitão-mór de Santo-Antão, justamente vangloriado por ver no seio de sua força o Joaquim e o Theodosio, cuja fama offuscava a de todos os criminosos, com excepção somente do Cabelleira, seguiu immediatamente, á frente della, para o Recife a apresentar-se ao governador.

No caminho de Afogados reuniu-se ella com a força que, tendo aguardado nesse lugar aquelle dia, designado para a geral batida das matas, se movera pela manhã em direitura ás que lhe ficavam nos limites occidentaes. As duas forças chegaram ao Recife formando uma só expedição que foi recebida pelos habitantes com inequivocas demonstrações de consideração e reconhecimento pelo relevante serviço que haviam feito.

Tantos eram os crimes commettidos pelo Cabelleira, e estes crimes haviam sido revestidos, na sua maior parte, de circumstancias tão odiosas, que, quando se divulgou que o afamado bandido tinha escapado ás malhas da rêde da justiça, mostras de justo pezar vieram substituir-se nos semblantes de todos á expressão do regozijo recente que havia manifestado a população.

Com raras excepções, não se contava familia, desde o Recife até o alto sertão, a quem a peia, a faca ou o bacamarte do terrivel matador não houvesse roubado uma existencia querida.

Por isso, era elle o alvo em que todos haviam posto a mira, e perdel-o montava perder a diligencia, ao parecer da maioria.

Alguns, não sem razão, mostraram-se receiosos de que, quando menos se esperasse, elle viesse forçar a cadeia do Recife onde tinham sido postos a ferro os novos presos, e restituindo-lhes a liberdade de que tão máo uso haviam feito, se puzesse com elles novamente em campo para matar com maior ferocidade, que d’antes, roubar sem treguas, incendiar povoações, reduzir tudo a sangue, ossos, e cinzas.

O governador entretanto mal podia conter a sua satisfação diante do resultado das providencias que elle proprio havia indicado para a extincção dos bandos dos criminosos que infestavam a provincia.

Elle conhecia melhor do que o povo e os figurões da villa e da capital, as dificuldades, algumas dellas invenciveis, que se atravessam naturalmente diante de expedições semelhantes. Elle sabia que perseguir atravez do deserto, para reduzil-os á prisão, homens que vivem como as feras, e com ellas, no seio de escusas brenhas, de regiões inhospitas e desconhecidas, é empreza para grandes animos, raros em todos os tempos e em todas as terras, maxime naquellas terras em que, como em todo o Brazil então, o importante serviço da policia está por ser organizado, a mingoa de pessoal apto para isso, de recursos pecuniarios, de vias de communicação interior, de prisões, e de outros muitos elementos indispensaveis a este grande mister.

A cadêa, que por poucas alterações passou ha poucos annos a fim de servir, como serve, para casa do jury e do tribunal da relação, tinha sido dada por prompta pelo coronel de engenheiros Costa Monteiro, á camara nos fins de 1732, e preenchia todas as condições de segurança pela sua solidez. Não obstante, ordenou o governador que a sua guarda fosse confiada a forças duplas que tornassem impossivel qualquer tentativa de invasão ou de arrombamento. As vizinhanças offereciam o aspecto de uma praça d’armas, principalmente dos lados do norte e leste onde a vigilancia nunca seria demasiada, por offerecer o rio destes lados facil e natural accesso ao edificio.

Ás pessoas de sua intimidade que lhe manifestavam descontentamento por não ter sido preso o Cabeleira, respondia o governador:

— Ha de chegar a sua vez. Confio muito em Christovam de Hollanda Cavalcanti que ainda não deixou de corresponder aos intuitos do governo sempre que se trata do proveito da colonia.

Christovam de Hollanda Cavalcanti, que trazia, como se vê, o nome que seu pai, sargento das ordenanças, illustrára por occasião da memoravel guerra dos mascates, era o capitão-mór de Itamaracá, e achava-se a esse tempo em Goyanna.

Goyanna pertencia então á jurisdicção de Itamaracá, que deixára de ser em 1763 capitania independente, por havel-a comprado d. João V a José de Góes, para incorporal-a na capitania de Pernambuco, vendida á corôa em 1716 pelo conde de Vimioso, d. Francisco de Portugal, unico genro de Duarte de Albuquerque Coelho, 4.º donatario de Pernambuco.

Era uma modesta povoação em 1636, quando os esforços de Antonio Filippe Camarão que a defendeu com o valor que o caracterizava, não foram bastantes a tolher que ella cahisse no poder dos hollandezes, povo cheio de grandeza, e digno da admiração e do reconhecimento dos pernambucanos. Tendo-se mudado em 1685 para esta povoação a camara da capitania de Itamaracá, passou ella por este facto à categoria de villa. Em 1742 deu-lhe d. João V um ouvidor que foi substituido em 1808 por um juiz de fóra. A sua crescente prosperidade foi parte para que pela lei provincial de 5 de maio de 1840, fosse elevada a cidade.

De presente é Goyanna a cidade pernambucana de mais nota, depois do Recife, a capital, e de Olinda que figurou com brilho e bizarria inexcediveis nos tempos coloniaes.

Está em condições, não só de competir com as primeiras cidades interiores do norte e do sul do Imperio, e de se avantajar ás capitaes de algumas provincias que, por motivos de alta conveniencia, deixamos de apontar aqui, mas até de rivalizar com algumas cidades européas de que não pouco se falla nas narrações de viagens.

E si não, vejamos.

Tem um paço municipal muito decente na Rua-direita, e uma matriz e mais oito templos que podem pertencer sem desaire a uma capital.

Tem uma praça de commercio, a qual se estende desde a rua chamada Portas-de-Roma (denominação do tempo dos jesuitas) até ao Becco-do-pavão, para não dizermos até a Rua-do-meio, ou á Rua-do-rio.

Tem um theatro onde já tive occasião de ver representar-se o D.-Cezar-de-Bazan, os Dous-renegados, a Corda-sensivel e o Judas-em-sabbado-de-alleluia.

Tem cafés e bilhares, brinca o carnaval pelo inverno, toma sorvetes pelo verão, dá alguns saráos pelo natal; emfim, para estar inteiramente na moda, trata de iluminar-se a gaz, de fundar uma bibliotheca popular, e tem já fundada uma loja maçonica, denominada Fraternidade-e-progresso, a qual tem prosperado notavelmente depois das ultimas excommunhões que o publico sabe.

É uma cidade onde se póde viver com poucos meios, porque os habitantes são hospitaleiros, os senhores de engenho fazem pingues presentes, os negociantes vendem fiado e não executam os devedores.

É plana, limpa, elegante e espalhada. Della não poderia dizer Ampère o que disse de Gotha-borg, cidade da Suecia que tanto o encantou de tarde com suas casas altas e regulares, quanto o desilludiu pela manhã sendo vista da torre da cathedral, por não ser mais do que uma rua.

Goyanna, não só tem muitas ruas, mas tambem muitos beccos, verdade seja que alguns delles sem sahida. Merecem particular apontamento as suas casas brancas que lhe dão certos ares de novidade, ou de noivado, ares que infundem indefinivel alegria no espirito do hospede. Si este é lido, entrando em Goyanna, logo sabe que não entrou por engano em Saint-Jean-de-luz, illustre cidade onde se celebrou por procuração o casamento de Luiz XIV com Maria Thereza de Hespanha, e que, ao dizer de um escriptor, apresenta uma physionomia sanguinaria e barbara, em consequencia do extravagante uso de pintarem de vermelho antigo os batentes, as portas, as gelosias das suas habitações.

Ha um proverbio espanhol que diz:

« Quien no ha visto Sevilha
No ha visto maravilha. »

Theophilo Gautier, escriptor de consciencia e bom gosto, pensa que mais justo fôra que este proverbio se applicasse a Toledo, ou a Granada, do que a Sevilha, onde nada encontrou particularmente maravilhoso, excepto a cathedral.

O poeta sergipano, doutor Pedro de Calasans, que tão cêdo foi arrebatado pelo infortunio e pela fatalidade ás musas do norte, dizia outrora, parodiando o proverbio hespanhol:

« Quem não ama Olinda,
Não a viu ainda. »

Assim será, assim é. Olinda semelha naiade gentil que adormeceu sobre arrelvado morro, os pés banhados pelo Atlantico, a cabeça á sombra das mangueiras odoriferas.

Goyanna, porém, tem tambem proverbio seu, e o seu proverbio é de tal significação, que, na singeleza em que se expressa, e de que o povo tem o segredo, insinúa irresistiveis feitiços a favor della.

Vê tu, meu amigo, como são expressivas estas reticencias duvidosas, ambiguas, deliciosamente traidoras:

« Goyanna..... ....
Que a todos engana »

Eu não conheço nenhum tão expressivo na ordem dos rifões populares.

O vocabulo — enganar — não tem nos nossos diccionarios o sentido que a intelligencia rica e lúcida do povo goyannista lhe refere; tem sómente a accepção ingrata que todos lhe sabemos.

Mas logo ao primeiro exame se vê que semelhante accepção está muito distante da que a imaginação deste grande povo liga ao sobredito verbo, quando o emprega para exaltar o seu torrão natal.

A palavra — enganar, que faz parte do rifão, significa — seduzir, captivar, prender, mas seduzir com mil agrados irresistiveis; captivar com benignidade tão doce e fagueira, que é impossivel deixar de ficar della escravo; prender com tantas demonstrações affectuosas, com tamanha bemquerença, que em vez de buscar fugir, cada vez se sente o prisioneiro mais desejoso de estar nessa suavissima prisão, de não se desligar jámais dos seus deliciosos grilhões.

Christovam de Hollanda dirigira em pessoa, como haviam feito todos os outros capitães-móres, o seu contingente na batida das matas do seu districto.

Não tendo porém encontrado o Cabelleira, mas sómente ladrões de cavallos e negros fugidos, recolheu-se á villa em paz com a sua consciencia, é verdade, mas descontente de não ver coroados dos brilhantes successos, que esperava, os seus esforços.

Não lhe custou pouco renunciar ao empenho de pôr nas cordas, como dizia elle, o maior facinoroso que pisava em Pernambuco.

Era presumpção geral que a elle caberia, mais dia menos dia, a gloria de prender o Cabelleira que dava mostras de consagrar particular estimação ás matas de Goitá, lugar em que nascêra e que, posto pertencia neste tempo a Santo-Antão, ficava mais proximo do engenho Petribú que era propriedade daquelle capitão-mór; e pertencia então a Goyanna.

Mas o boato falso que correu a respeito da prisão do bandido pelo capitão-mór de Santo-Antão, desvaneceu toda a esperança que Christovam de Hollanda alimentava a semelhante respeito.

E que era feito do Cabelleira?

Por onde andava elle quando seu nome corria por milhares de bocas um milhão de vezes no dia; quando sua imagem enchia o pensamento de um povo que o considerava um flagello não menos fatal do que a peste e a fome que o reduziam a dôr extrema?

Dizia-se que o Cabelleira, vendo-se perseguido tão estendidamente, tinha rompido, sem deixar traços da sua passagem como costumava, o cordão sanitario, e se havia internado nos sertões de Cimbres, ou de Pajeú, donde era impossivel desentranhal-o por serem então, como são ainda hoje, quasi de todo desconhecidos esses medonhos sertões.

Dizia-se que, tomando para o norte, atravessára o Capibaribe e ganhára a ribeira do Pilar-do-Taipú, na Parahyba, a qual muitas vezes percorrêra, tendo-a deixado coberta de cadaveres e ruinas.

Correram estes boatos e outros mais que com estes se pareciam.

O certo porém é que ninguem sabia do Cabelleira, ente incomprehensivel que surgia de subito da terra sem ser esperado, e pela mesma fórma desapparecia, como si se mettesse por ella a dentro, por artes do demo, segundo alguns acreditavam, ou por ter em toda a parte parciaes, ou protectores, segundo pensavam outros que se diziam melhor informados do que os primeiros.