O Cabeleira/XV
XV
O Cabelleira desappareceu no mato como
desapparece o peixe no seio da corrente caudal.
Os milicianos, bem que homens igualmente rusticos, e conhecedores das florestas, não tinham todavia o longo uso da espessura, uso que, ainda neste particular, tornava superior a elles o valoroso malfeitor.
Espalharam-se em differentes direcções, a esmo, sem plano, e por isso sem probabilidade de bom resultado.
O piquete não era numeroso, e vinha quasi debandado quando o encontrou o Marcolino que denunciou o ponto onde havia deixado o fugitivo.
Poucos deram credito ás palavras do matuto, e só por desencargo da consciencia alguns se prestaram a dar a busca que elle propôz, e que, a seu parecer, não podia deixar de sortir o desejado effeito.
Gastaram quasi o dia inteiro na diligencia.
Por fim, dissuadidos de descobrirem o assassino, cada um tomou o caminho mais curto para sua casa, dando alguns ao diabo o Marcolino por têl-os feito andar para dentro e para fóra do mato inutilmente, e acreditar em esperanças que não se realizaram.
— E veiu vossê fazer-nos perder mais um dia, compadre Marcolino, disse um dos milicianos, aborrecido e fatigado do infructifero lidar. Nem vossê chegou a ver o Cabelleira. Viu algum tangedor de cachos compridos, e já pensou que era o mameluco.
— Eu não digo uma cousa por outra. Vi-o com estes olhos que a terra fria ha de comer. Fallei com elle como estou fallando com vossê agora. Lá o elle ter voado como passarinho, ou ter-se mettido pela terra a dentro como tatú ou jararaca, é caso á parte.
— Vossê viu periquito e cuidou que era arára ou canindé, replicou o miliciano.
— Compadre, vossê está fazendo pouco em mim. Ora deixe-se disso, que eu não sou de lérias, como vossê bem sabe. É tão certo que vi o Cabelleira, que até lhe tomei o cavallo que elle me havia furtado, o meu alazão.
— Pois então, póde montar no seu alazão e voltar á casa. Dê lembranças á comadre Maria e lance a benção a meu afilhado Cazuza. Si encontrar outra vez o Cabelleira, dê-lhe um abraço por mim, um beliscão e uma boquinha.
— Eu, si tivesse ainda o meu alazão, juro-lhe que havia de desencavar o Cabelleira, ou com a vida ou com a morte.
— E que fim levou o seu quartáu?
— Espaduou de muito andar. Parece que desde a hora em que o maldito demo o tirou do meu quintal não soube mais o que era comer nem beber, e andou n’um cortado.
— Si vossê quer servir-se do meu cavallo castanho, elle nos está alli ouvindo. Desta vez estou fallando serio.
— Onde está elle?
— No sitio do Felisberto, aonde o mandei com um costal de mandioca.
— Pois aceito, meu compadre, a sua proposta. Hei de mostrar-lhe que o que digo, digo. Si eu não descobrir neste matão, ou por estas beiradas de rio o Cabelleira, hei de saber noticias delle seja onde fôr. Tambem de uma cousa tenha vossê certeza: quando ouvir sua mulher dizer: — « Ahi vem o compadre Marcolino no cavallo castanho » fique logo sabendo que, si eu não deixei o Cabelleira na embira, o deixei no buraco.
Os dous matutos achavam-se na margem esquerda do Capibaribe.
Na margem opposta levantava-se, entre umas laranjeiras e uns oitiseiros, uma casa de bom parecer. Era a casa de Felisberto.
Elles atravessaram a váo o rio, e foram ter á graciosa habitação, que no meio daquelle deserto attestava a existencia de uma civilização rudimentar no lugar onde havia cahido, sem tentativa de proveito para a sociedade que o succedêra, o gentilismo guarany digno de melhor sorte.
Do alto onde fôra construida a habitação via-se o rio que corria na distancia de umas dezenas de bráças, e desapparecia por entre umas lages brancas no rumo de leste; do lado do occidente mostravam-se as lavouras de Felisberto desde as proximidades da casa até onde a vista alcançava.
Felisberto applicava-se quasi exclusivamente á cultura da roça. No perimetro de vinte leguas em deredor era o lavrador que desmanchava mais mandioca no fabrico da farinha, que era de tão boa qualidade que competia no mercado do Recife com a farinha de Moribeca, já então afamada. Havia annos em que elle mandava para o Recife cêrca de 200 alqueires.
Um negro, uma negra, duas negrotas, e tres molecotes filhos dos dous primeiros faziam prodigios de valor na cultura das terras. Amanheciam no cabo da enxada e só se recolhiam quando faltava uma braça para o sol se esconder no horizonte. Estes escravos viviam porém felizes tanto quanto é possivel viver feliz na escravidão. Não lhes faltava que comer e que vestir. Dormiam bem, e nos domingos trabalhavam nos seus roçados. Em algum dia grande faziam seu batuque, ao qual concorriam os negros das vizinhanças.
Quando o Felisberto se casou com a filha de Lourenço Ribeiro, mestre de assucar do engenho Curcuranas, teve a feliz idéa de ir estabelecer-se naquelle sitio que comprára com algumas economias que lhe legára um tio que vivêra de arrematar dizimos de gado. Essas economias deram-lhe tambem para comprar duas moradinhas de casas e o negro André. Com a negra Maria, que a mulher lhe trouxera em dote, casou Felisberto o seu negro, na esperança de que em poucos annos a familia escrava estaria augmentada, e por conseguinte augmentada tambem a fortuna do casal. Essa esperança foi brilhantemente confirmada.
Felisberto não estava em casa á chegada dos dous matutos. Havia ido á villa a negocio e ninguem sabia quando elle estaria de volta.
Elles tiraram para a casa de farinha, que ficava a um lado da casa de morada, e apresentava nesse momento um aspecto que não era o usual.
Estava-se fazendo farinha para ser a toda pressa mandada ao Recife, onde a grande falta que havia deste genero, assegurava pingue lucro ao vendedor.
Fructos do trabalho honesto e esforçado, o qual é sempre favorecido pela Providencia, não tinham sido de todo destruidos pela grande secca os roçados do Felisberto. Elle já enumerava muitos prejuizos, mas olhando em torno de si via ainda muito com que contar na tremenda crise que reduzira o geral da população da provincia a extrema penuria.
Era quasi noite, e ainda chegavam animaes com caçuás cheios de mandiocas que eram despejados nas tulhas já formadas destas raizes.
Mulheres sentadas pelo chão ou em cepos, ao pé dessas tulhas, tiravam as mandiocas uma a uma, e as iam raspando a quicé, e, atirando depois dentro de cestos que eram conduzidos para junto das rodas a fim de serem ellas passadas pelos ralos que circulam estas.
A casa-de-farinha não era mais do que um vasto alpendre aberto por todos os lados e coberto de palhas de pindoba.
No centro via-se o forno onde tinha de ser cozida a massa já apertada pela prensa e livre da manipueira. Parte della porém, tanto que sahia do pé das rodas, era lavada em gamellas e alguidares onde deixava o residuo ou gomma para os bejús e tapiocas.
A prensa estava armada a um dos lados do alpendre; no outro viam-se as duas rodas que não cessavam de gyrar. Quando cansavam os matutos ou escravos que as moviam, eram logo substituidos por gente fresca.
Os dous matutos, alli bem conhecidos, foram saudados pelas pessoas que estavam trabalhando, e, como é costume em taes occasiões ainda hoje, trataram elles de concorrer gratuitamente com o auxilio dos seus braços descansados, o que a muitos não deixou de ser agradavel.
— Venha para cá, seu Marcolino. Pegue no veio da roda, e desmanche-me esta mandioca que está custosa de acabar, disse um.
— E eu ponho de boa vontade em sua mão, Marciano, este rôdo. Não precisa mecher muito a massa; o forno não está muito quente e não ha risco de queimar-se a farinha, disse outro.
— Prepara os bejús, Mariquinhas, disse o Marciano a uma rapariguinha morena e cacheada que, com as mangas arregaçadas, lavava em um alguidar uma porção de massa.
Mariquinhas sorriu e continuou no seu trabalho que lhe absorvia toda a attenção.
Pouco depois chegaram dous cunhados de Felisberto, que tinham feito parte do regimento volante da freguezia.
— Então que fizeram? perguntaram muitos a uma voz logo que os viram entrar.
— Nada. Vossês pensam que pegar o Cabelleira é o mesmo que raspar mandioca, ou comer farinha molle?
— Não o viram nem com os olhos, seu Quinquim?
— Qual, senhor! Cabelleira de minha vida!
— Encontramos muita onça, e muita cascavel, mas do Cabelleira nem novas nem mandado. Ha quem diga que elle a esta hora já está nos sertões dos Cairirys.
— Qual Cairirys, senhor! Amanhã hei de dar com esse dunga, disse o Marcolino.
— O compadre Marcolino jura que o viu hoje junto das cachoeiras do rio, acrescentou o Marciano.
— Mas não nos mostrou o cabra durante todo o dia, respondeu Agostinho.
— Está bem, senhores, não fallemos mais nisso. Os senhores estão desfazendo agora no meu dizer, talvez amanhã a cousa já seja outra. Eu sou um pé rapado, é certo, mas muito verdadeiro.
— Ninguem duvida de sua palavra, Marcolino.
Um negro que estava mettendo lenha no forno, virou-se então para o matuto, e, de improviso, lhe dirigiu este verso:
Vosmecê, seu Marcolino,
Vai atraz do Cabelleira?
Si quizer pegar o cabra,
Monte na besta fouveira.
Ainda bem não tinha terminado o seu repente, quando um caboclo que, a um canto do alpendre estava lavando em um côcho uma porção de mandioca, se sahiu com esta resposta:
Monte na besta fouveira,
Ou no cavallo cardão,
Não ha de pegar o cabra
No meio desse mundão.
Reinou então silencio no alpendre para só se ouvirem os dous repentistas. Estava travado um desses desafios que são tão communs nos sertões do norte, e, muitas vezes, pela facilidade das rimas e originalidade dos conceitos, chegam a offerecer versos que podem figurar entre os mais primorosos monumentos da litteratura natal.
O negro replicou:
Si vossê gosta do bicho
Porque rouba, e mata gente,
Veja que alguem não lhe tire
As orelhas p’ra presente.
O caboclo respondeu:
Mette, negro, a tua lenha
No teu forno, caladinho;
Mas não te mettas com homem;
Podes ficar sem focinho.
O negro:
Eu que sou negro nas cores
Mas não negro nas acções,
Si fosse atrás do malvado,
Cortava-lhe os esporões.
O caboclo :
Para o negro que se mette
Onde não lhe dão entrada
Não tem faca o Cabelleira,
Tem uma peia ensebada.
O negro:
Eu respeito a meus senhores
E senhoras que aqui estão;
Mas porém não levo em conta
Quem não teve criação.
O caboclo:
Caboclo do pé da serra,
Criado á beira do rio,
Eu sempre tratei com gente,
Porque sustento o meu brio.
O desafio, tão bem encaminhado, foi interrompido pela chegada de um cavalleiro. Era o Felisberto que voltava da villa.
A lida na casa-de-farinha continuou não obstante até alta noite entre risos e cantigas.
O luar inundava o vasto pateo do sitio, e ia pratear as margens e aguas do Capibaribe.
Viração intermittente agitava as folhas das macahybeiras e dendezeiros que se levantavam pela extrema das terras de Felisberto.
Cortava os ares o suave murmurio das aguas casado com o canto monotono dos curiangos, que pulavam pelos caminhos.
Pela madrugada, o Marcolino montou no cavallo castanho, atravessou o rio, e metteu-se no vasto deserto, ainda adormecido. Como quasi todos os homens rusticos, era caprichoso, e entendia que si não cumprisse a sua palavra, solemnemente empenhada, ficaria sendo o ludibrio de todos os que o conheciam. Preferia a este extremo, morrer de fome e sêde no mato, ou comido das onças, cousa em que, para bem dizermos, pouco cuidava, Todas suas idéas estavam voltadas para um centro unico: descobrir o Cabelleira. Era este o seu ponto de honra.
Sabendo que o Cabelleira ordinariamente quando se ausentava das matas de Santo-Antão, apparecia nas de Páu-d’-alho, tomou a direcção desta povoação.
Páu-d′-alho fazia então parte da freguezia de Iguarassú, da qual foi desmembrada em 1799 para ser elevada á freguezia por proposta do visitador Joaquim Saldanha Marinho, nome que traz hoje com invejavel brilho um dos maiores espiritos que conta o Brazil moderno. Passou a villa por alvará de 27 de julho de 1811, e a comarca pela lei provincial de 5 de maio de 1840.
Marcolino subiu pela margem do Capibaribe, e antes do meio dia entrou na povoação que fica em terreno plano á beira deste rio. Nada lhe constou a respeito do Cabelleira.
Demorou-se o tempo estrictamente necessario ao descanso do cavallo, e quando o sol quebrou pôz-se novamente a caminho para Goitá, que fica quatro leguas distante de Páu-d’-alho, e nesse tempo era um lugarejo de nenhuma importancia, pertencente a Santo-Antão.
Ha loucuras transitorias que por tal modo revolucionam o espirito do homem, que O tornam capaz, assim de grandes baixezas, como de virtudes impares. Feliz aquelle que, sob a influencia de loucuras semelhantes, põe os seus esforços e sacrifícios ao serviço da humanidade ou de uma causa nobre.
Marcolino estava possuido de uma dessas loucuras.
Sem o pensar nem querer, tinha fatalmente arriscado a sua palavra, o seu brio, a sua honra. Estava apaixonado pelo lance, e era inevitavelmente arrastado a seu destino.
Deixando mulher e filhos, em duelo com a necessidade, vinha, como um cruzado, um peregrino, um apostolo do bem, ou um visionario em busca de um ente que fazia tremer povoações inteiras, que preoccupava o governo, que apparecia como phantasma, e desapparecia como uma sombra.
Este ente tinha á sua disposição o mato para o receber, os echos para o avisarem da aproximação dos que o buscavam, os rios para encherem depois de sua passagem, as grutas para o esconderem, a natureza emfim para o disputar tenazmente aos homens, ao poder publico, ás leis, á justiça, ao proprio Deus segundo parecia.
Á tardinha Marcolino estava no logarejo. Debalde perguntou, debalde indagou. Não houve quem lhe désse novas do famoso bandido.
Ahi pernoitou, mas não dormiu.
Muito cêdo metteu-se nas matas.
A cabo de dous dias, consumidos sem resultado, entrou a cahir em si. A razão tinha-se libertado da hallucinação que a prendêra em suas rêdes d’aço. Á sua doce luz reappareceram os caminhos que as trevas da paixão tinham encoberto aos olhos da victima do sonho fatal.
Marcolino cahira em si no meio do deserto, ouvindo o rugir das féras, lutando com a fome.
Desanimado, envergonhado da sua fraqueza, resolveu voltar ao seio da familia.
Então a imagem dos filhos e da mulher lhe appareceu na mente. Elle teve saudades da casa e quiz partir á mesma hora; mas conhecendo os perigos á que se expunha; si o fizesse, aguardou sofrego a madrugada. Quando os horizontes começaram a desmaiar, e o brilho das estrellas a embranquecer, Marcolino pôz-se a caminho.
Estava inteiramente outro.
A vergonha cobria-lhe o rosto, o medo dominava-lhe o espirito, na consciencia doia-lhe o remorso de haver, sem o menor interesse pessoal, desamparado mulher e filhos nas garras da miseria.
O dono da casa onde elle havia pernoitado dous dias antes, ao qual devia, além desta, outras muitas obrigações, dera-lhe uma carta para ser entregue por elle ao senhor do Engenho-novo que de presente faz parte da freguezia de Páu-d’-alho, e pertencia naquelle tempo a Goyanna.
Quando Marcolino chegou a Páu-d’-alho, o cavallo estava cansado da viagem, e do máo passar durante ella. Para levar a carta a seu destino, teve o matuto de caminhar a pé. Elle viu nisso uma nova tribulação com que a sorte o punia da sua loucura.
Ao anoitecer, de um alto por onde passava o caminho antes de sahir da mata que cercava o engenho pelo lado do sul, viu elle um homem correr gacheiro e cauteloso pelo asseiro a fóra, e entrar adiante no cannavial.
Marcolino por um triz não cahiu fulminado de espanto, sobresalto e satisfação ao mesmo tempo.
Tinha reconhecido nesse homem o Cabelleira.