O Caminho de Damasco/IX

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A missão do padre irritou o jovem namorado; mas algumas horas de reflexão bastaram para que ele visse realmente a inutilidade dos seus esforços. Tinha tudo e todos contra si; era uma luta de antemão condenada.

Ao mesmo tempo, a idéia de que a prima o amara, e o despeito de a não haver compreendido, vinham lançar no espírito de Jorge um novo germe de desgosto.

O mais prudente era abandonar a empresa.

A vaidade, porém, meteu-se no meio, e este grande motor das ações humanas pode muita vez mais que todas as razões de consciência ou impulsos de coração. Jorge perguntou a si mesmo se conviria abater as armas diante do perigo, só porque era grande, e confessar uma dessas aberrações das sociedades polidas, julgava mais vergonhoso que tudo mais. A vaidade respondeu que não. Mas como a vaidade pedia uma coisa, e a realidade indicava outra, Jorge achou um meio-termo, e adotou justamente a idéia do padre.

— Em lhe constando que eu me retiro por causa dela, pensou o moço, que vou para fora abafar a minha dor, há de crer nela e a minha causa ganhará com isso, porque ela já me amou, e não há de ter esquecido esse tempo.

Jorge saiu da corte no fim de alguns dias, depois de ter obtido uma licença do emprego. Alegou ao pai que estava sofrendo de fraqueza e precisava de restaurar as forças. Aguiar não lhe deu muito crédito ao pretexto; mas o padre teve meio de fazer que o comendador e a mulher aceitassem as razões do filho.

— Vá, meu filho, disse o padre na véspera da partida, vejo que me ouviu e que a voz da sua consciência ainda não estava extinta.

Pobre padre! Se ele soubesse que isto era apenas uma arma! Um meio de tornar interessante o namorado repelido!

Jorge partiu.

— Diga-me cá, padre; acredita que meu filho esteja definitivamente curado?

A esta pergunta do comendador que se preparava para jogar o gamão, na noite do dia em que Jorge partira, respondeu o velho Barroso:

— Creio que sim; estava muito mal; mas o coração é bom; emendou-se; respondo por ele.

Clarinha, que naqueles últimos tempos parecia mais melancólica que de costume, quase ficou alegre com a partida do primo. A sua afeição ao marido redobrou então de intensidade, e a causa disto era mais que tudo a inalterável confiança que o médico mostrara durante os acontecimentos esboçados acima.

A moça consultou o coração; nada havia em relação ao primo.

Minto; havia alguma coisa; havia uma sombra de desgosto, uma lembrança amarga, que o coração honesto da esposa não poderia perdoar. A moça comparou a afeição respeitosa do marido, os carinhos de que a cercava, com a fria e criminosa paixão do primo, e a comparação foi toda em favor do médico.

Nestes termos estavam as coisas, quando o dr. Marques adoeceu gravemente. Desde os primeiros dias a moléstia revelou logo o seu caráter mortal. Longo foi o padecimento, talvez ainda maior no espírito de Clarinha, a quem uma voz secreta dizia que ia perder o consorte. A fim de a prepararem melhor para o golpe, foi necessário dizer-lho. Clarinha teve coragem para ouvir a verdade, mas era evidente a sua dor profunda. Aguiar e a mulher foram para lá; o padre acompanhou o enfermo com a assiduidade que lhe permitiam a sua idade e os seus trabalhos.

Um dia, porém, quando menos se esperava apareceu Jorge. Soubera da moléstia do primo, e correra a toda a pressa à corte. Foi a explicação que deu, mas não foi a verdadeira. A verdadeira era que as saudades o ralavam.

Quando chegou à cidade, soube da moléstia do médico; foi a casa, onde não achou a família; mas soube então que a situação do enfermo era grave.

Correu para lá.

O espetáculo influiu no ânimo do estróina mais do que ele pensara. Junto da cama do enfermo estava a moça, triste, mas resignada, indiferente ao que se passava em torno dela.

O doente olhou para Jorge e conheceu-o.

Estendendo-lhe a mão descarnada e trêmula, que o primo apertou, estendendo-a depois à sua prima, Clarinha não viu o gesto do moço, ou não quis amargurar a alma do doente. Este abriu nos lábios um ligeiro sorriso.

Jorge retirou-se.

A doença de Marques era mortal, como disse; os médicos davam-lhe apenas cinco ou seis dias de existência. O próprio doente conhecia o seu estado e preparava-se para morrer.

Este espetáculo, porém, por mais triste que fosse, não pôde abafar no espírito de Jorge a influência da moça. Mas então começou para ele uma sensação nova. A presença da morte como que lhe ia purificando a paixão. Ao ver a pobre esposa quase viúva, toda entregue aos cuidados de acompanhar até ao último suspiro o companheiro de sua vida; ao contemplar a dedicação e zelo com que o servia, as lágrimas silenciosas que derramava, as vigílias, as palavras de consolação, os afagos, tudo isso como que lhe acordou uma fibra adormecida do coração, e o rapaz renasceu em si a casta flor dos dezoito anos.

Algumas vezes, cabia-lhe fazer quarto ao doente, e nessas condições achou-se muita vez a sós com a prima. Ajudavam-se mutuamente nos cuidados que o enfermo exigia; mas quando este fechava os olhos para dormir, ficavam ambos silenciosos, ela com os olhos pregados no marido, ele com os olhos nela.

Não foi sem custo, ainda assim, que a moça consentiu na presença do primo; mas o tio insistiu e foi necessário ceder.

O pobre também não viu com bons olhos a presença do rapaz; mas foi este mesmo quem lhe disse, logo no dia seguinte àquele em que chegara:

— Há de reparar na minha estada aqui.

— Sim, disse o padre.

— Juro-lhe que...

— Não jure nada, tornou o padre; respeite a morte; é só o que lhe peço.

A última hora chegou enfim. Marques expirou nos braços da esposa. O desespero e as lágrimas da mísera viúva faziam cortar o coração; todos tiveram força para consolá-la; Jorge não a teve; saiu da casa e só voltou no dia seguinte.