O Choque das Raças/Capítulo 2
CAPITULO II
A MINHA AURORA
PELA primeira vez, depois de recolhido áquella mansão, punha eu o nariz fóra do meu quarto de doente.
Senti-me surprezo. A casa do professor Benson não era ao typo da casa vulgar. Dava antes idéa de uma especie de castello, não pelo estylo, que não lembrava nenhum dos castellos classicos que eu vira reproduzidos em cartões postaes, mas pela massa e pelo estranho da construcção. Olhei para aquillo com marcado espanto. Alem do corpo fronteiro, evidentemente moradia familiar, erguiam-se pavilhões extensos, galerias envidraçadas, torreões e varios minaretes altissimos, ou, melhor, torres de ferro enxadrezado, entretecidas de fios de arame.
— Que diabo de casa é esta? perguntei ao criado, voltando-me para elle.
O criado, um forte mulato de mysterioso aspecto e mais com ar de automato do que de gente, permaneceu immovel atrás de mim, sem mostras de ter ouvido.
Repeti-lhe a pergunta, e nada. Lembrei-me então da minha conversa com o corretor, quando me deu elle informes sobre o sabio Benson e contou que vivia mysteriosamente, servido por criados mudos. Sem duvida era aquelle um dos taes. Isto fez-me estremecer. O pouco que vira, já me provara não ser o morador do castello um homem commum - e o viver servido por mudos inda mais me aguçava a ponta do enigma.
Prosegui, entretanto, no meu passeio, conformado em fazel-o em silencio, uma vez que era o mutismo a senha da casa.
Em redor do castello estendiam-se campos e florestas. Região montanhosa, mas de relevo suave, coxillas mansas que ao longe ganhavam corpo até se erguerem na morraria de um dos contrafortes da serra do Mar. Nos valles, bellos capões de matta virgem, e, nas lombas, um tapete de gramineas crioulas, naquella epoca revestidas de florinhas roseas.
Notei logo que a natureza não era alli trabalhada. Tudo vivia em estado selvagem, sem sombra de intervenção humana alem da impressa nos caminhos. Nem gado nas pastagens, nem sombras de cultura - porteiras ou cercas. Um pedaço de natureza virgem onde o homem só abrira passagens que lhe dessem o goso das perspectivas naturaes.
Comprehendi que não estava numa fazenda. Homem de posses, o professor Benson teria aquillo apenas para recreio dos sentidos, sem o menor recurso ás possibilidades do solo. Unicamente em redor da casa havia algo beneficiado : bello jardim todo garrido de rosas e, aos fundos, o pomar.
Caminhei por espaço de meia hora e, ao alto de uma collina, sentei-me no topo de um cupim para admirar a vista soberba dalli descortinante. Impressionava estranhamente aquelle castello de inexplicavel architectura, em meio duma natureza rude e calma, onde só uma ou outra ave silvestre rompia o silencio com o seu piar.
Affeito que estava a viver em cidade, no tumulto das ruas, aquelle silencio e aquella solidão punham-me novidades n'alma. Senti no cerebro um referver de idéas novas, a sahirem da casca como pintos.
A impressão geral que tive deante da natureza liberta da presença e acção do homem, cousa que via pela primeira vez, foi da minha absoluta nihilidade e da nihilidade absoluta dos meus patrões, naquelle momento a se esbofarem no escriptorio e a maldizerem do empregado desapparecido sem licença. Para elles era eu o empregado - e tambem vinte dias antes eu me considerava apenas um empregado, isto é, humilde peça da machina de ganhar dinheiro que os senhores Sá, Pato & Cia houveram por bem montar dentro de uma certa agglomeração humana. Mas alli não me via empregado de ninguem, e sim um ser egual ás hervas que esverdeciam as collinas, ás arvores que frondejavam nas grotas e ás aves que piavam nas moitas. Sentia-me deliciosamente integrado na natureza.
A minha loquella desapparecera. A necessidade de falar a todo o transe, tamanha que me fazia ás vezes falar sozinho, se substituira pela necessidade do silencio. Cheguei a agradecer a finura do velho sabio em dar-me um companheiro mudo, comprehendendo que, si em vez delle alli estivesse o meu barbeiro, terrivel autofalante de foot-ball e jogo do bicho, bem certo que eu chegaria ao extremo de amordaçal-o. Talvez até nem fosse mudo de nascença o criado, mas apenas emmudecido por influição local. Commigo vi que tambem emmudeceria, si permanecesse algum tempo naquelle deserto.
O ar livre abriu-me o appetite e o appetite aberto fez-me lembrar do almoço e da ordem de apparecer antes delle no gabinete do professor Benson. Tratei de voltar – e ao pôr pé no castello já me sentia bem outro homem, varrido das preoccupações de outróra e absolutamente exonerado, por incompatibilidade psychica, das funcções de factotum chronico dos senhores Sá, Pato & Cia.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.