O Choque das Raças/Capítulo 9

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CAPITULO IX


ENTRE SA', PATO & CIA
E MISS JANE



POBRE moça!... vinha eu pensando commigo ao voltar do enterro do professor Benson. Si é grande a dor de perder um bom pae, que dizer de quem perde tal pae ?...

De facto, quasi que com seu pae perdera Jane a sua razão de ser na vida. Desde menina se consagrara a estudos do porvir, e é natural que quem possue tal faculdade de pre-videncia não se preoccupe grande cousa da actualidade. Para nós, encerrados nas quatro paredes dos cinco sentidos, o presente é tudo; mas quão pouco não será elle para uma creatura collocada no tópe da montanha, podendo ver tanto a paizagem do que lá passou como a do que vae passar !

O magico apparelho do professor Benson deixara de existir, e delle, como dissera o moribundo, só restavam as impressões subsistentes na memoria da filha. Tinha miss Jane, portanto, de refazer sua vida, adaptar-se á condição commum dos pobres seres humanos que só vêem um palmo adeante do nariz.

— Está como eu, murmurei em soliloquio, passou tambem a pedestre...

Mas vi logo o falso da comparação. Eu podia, com o tempo, voltar á casta dos rodantes, adquirindo novo auto. Miss Jane nunca mais alcançaria a omnividencia...

O castello ficava a tres kilometros de Friburgo, pela estrada onde se dera o meu desastre. Ao passar por ella reconheci o ponto e parei á borda do desbarrancado. Estavam ainda patentes os signaes do trambolhão.

— Estranhos caminhos da Interferencia ! exclamei. Para ver a maravilha das maravilhas e conhecer a mulher que me está illuminando a alma e talvez faça de mim um notavel romancista, foi mister que eu passasse por este precipicio aos trancos, e lá fosse parar semi-morto ao fundo da barroca ...

Logo adeante, dobrada uma curva da estrada, vi erguer-se o vulto mysterioso do castello, com suas torres em xadrez. Parei, tomado de viva emoção. Olhei para a singular fabrica e perdi-me em pensamentos de saudade e incerteza.

Entre aquellas paredes duas nobres creaturas humanas me haviam abrigado com extremos de carinho ; trataram-me do corpo, salvaram-me a vida e, não satisfeitos ainda, revelaram-me o segredo irrevelado. No castello conheci a mulher divina que jamais sahirá do meu coração. Lá estive em minha casa, como no seio da minha verdadeira familia...

Mas quão tudo mudara ! Não podia mais continuar naquella situação de hospede, depois de morto o hospedeiro. Tinha que afastar-me dalli — afastar-me do logar que era na verdade o meu verdadeiro logar na terra...

O coração confrangeu-se-me dolorosamente e foi com o olhar sombrio e a cabeça baixa que transpuz de novo os humbraes do castello.

Chamei um criado. Por coincidencia appareceu o surdo-mudo que me acompanhara na primeira sahida pelos campos. Esqueci-me dessa circumstancia e disse-lhe :

— Não será possivel falar a miss Jane ?

O criado tambem esqueceu que era surdo-mudo e tornou :

— Acho inconveniente. Miss Jane recolheu-se em tal estado de desespero que nenhum de nós se atreve a perturbal-a.

Vi que o homem tinha razão. Pedi-lhe papel e, alli mesmo no hall, tracei o seguinte bilhete :


"Ayrton despede-se

de miss Jane. Volta para o seu fado anterior, cheio, para o resto da vida, dos sentimentos de gratidão e enlevo que os donos deste castello encantado lhe despertaram n'alma. Si acha miss Jane que o hospede occasional lhe merece alguma cousa, permitta-lhe que a venha ver de vez em quando".


Entreguei-o ao criado e sahi.

Estava outra vez na rua — e nunca avaliei tão bem a sensação do decahir. Quando o anjo máo se viu expulso do paraiso, a sua impressão devera ter sido egual á minha...

Na curva da estrada volvi um ultimo olhar ao castello. Lagrimas vieram-me aos olhos, e foi com a infinita tristeza de um corvo triste que alcancei a estação de Friburgo.

Ao apresentar-me no escriptorio da firma o assombro do senhor Sá foi enorme. Olhou-me com os olhos arregalados, como se visse apparecer um espectro ; depois vincou a testa de todas as temiveis rugas com que nos apavorava e disse:

— Muito bem, senhor Ayrton Lobo ! Sempre contei com a sua presteza, quando o senhor me andava a pé. Agora, que se deu ao luxo de um automovel, gasta-me vinte e tantos dias numa simples cobrança e apparece-me com essa cara de cachorrinho que me quebrou a panella !

Me, me, me, me... tudo para aquelle homem se relacionava egoisticamente á sua eminentissima pessoa...

Procurei acalmar-lhe a furia, contando do desastre e da minha internação numa casa acolhedora. Mas o ether em vibração que era o senhor Sá fora evidentemente interferido por uma rabanada de saia das furias de Eschylo. Em vez de acceitar a minha escusa o homem redobrou de accusações.

— E por que me não preveniu ? Um empregado decente, logo que se vê numa situação dessas, a primeira cousa que faz é avisar aos patrões. Pensa então o senhor que isto aqui é brincadeira? Não sabe que somos uma firma séria e temos o direito de ser bem servidos? Está despachado. Não nos servem empregados da sua ordem.

Nesse momento um rumor muito meu conhecido denunciou a presença da outra parte da firma. Era o senhor Pato que chegava. Ao vel-o surgir á porta, dentro do seu formidavel fraque de elasticotine de cem mil reis o metro e todo reluzente de pendurucalhos de ouro massiço, confesso que tremi. Olhou-me o homem d'alto a baixo, fulminantemente, e sem dizer palavra foi para um canto confabular com o socio.

Não sei o que disseram. Só sei que ao cabo de dois minutos o senhor Sá voltou-se para mim e indagou :

— E o seu automovel ?

— Perdi-o... respondi com voz sumida.

Sá trocou com o socio um olhar risonho e ironico ; em seguida, divertido lá no intimo por uma idéa, humanizou-se.

— Pode ficar na casa, senhor Ayrton, mas comprehende o caro amigo que não nos é possivel pagar a um moço que anda a pé o mesmo ordenado que pagavamos a um que tinha automovel proprio...

Pronunciou um "proprio" de bocca cheia, trocando com o Patão um novo olhar de malicia.

Resignei-me, já que precisava viver. E, murcho, de cabeça baixa, com o espirito a repousar na lembrança de miss Jane, reassumi na casa as minhas velhas funcções.

A semana toda passei-a na rua, a trabalhar qual um automato. Meu pensamento fugia para longe do que eu executava. Impossivel fixal-o nas réles coisas que me mandavam fazer, quando havia um ponto luminoso a attrahil-o como iman. Impossivel tomar a sério os negocios de Sá, Pato & Cia, depois do deslumbramento daquellas semanas no castello. Eu não era mais o mesmo. Era um ser que se dilatara immensamente e que esperava...

Executei mal as minhas commissões e soffri do senhor Sá varias reprimendas. Ouvia-as, porém, tão absorto nos meus pensamentos que não poderei reproduzir nada do que me elle disse.

Aguardava ansioso a chegada do proximo domingo. Iria novamente rever o castello e extasiar-me inda uma vez deante da imagem querida.

Fui. Recebeu-me miss Jane no gabinete e fez-me sentar na poltrona onde me achava no momento em que o criado a chamou. Encontrei-a serena e resignada, embora com todos os estigmas da sua grande dôr impressos na physionomia. Seus olhos denunciavam o cansaço das lagrimas.

Permaneci calado por uns instantes, sem ter o que dizer. Quem rompeu o silencio foi ella.

— Obrigada, senhor Ayrton. A sua visita me fará bem, me acalmará os nervos, cousa que nunca suppuz que tivesse... A minha solidão é hoje extrema. Como castigo de ter tido ás mãos o tudo, vejo-me agora sem nada. Este casarão vazio... os laboratorios já sem funcção... o porviroscopio, onde passei annos a me deslumbrar com visões ineditas, morto, reduzido a simples materia inerte, sem alma... A alma de tudo era meu pae...

Alcancei a situação da querida creatura, e foi com a alma á bocca que lhe disse :

— Comprehendo como ninguem o seu caso, miss Jane, e sei que até hoje no mundo pessoa alguma num só dia perdeu tanto. Horas apenas convivi com o professor Benson e apesar disso a sua lembrança viverá em mim como não vive a de meu pae. Imagino, pois, a falta que faz elle á sua filha, á sua meiga companheira de estudos e de visões...

Miss Jane sacudiu a cabeça como a espantar idéas importunas. Depois esboçou o sorriso mais triste que inda vi. E com um suspiro murmurou :

— Paciencia. Ensinou-me meu pae o stoicismo, mas é bem difficil o stoicismo nos grandes momentos de dôr. Stoicismo é uma attitude...

Tres horas passei em companhia da desolada joven, e consegui afinal distrahir o seu espirito, contando-lhe o meu reapparecimento no escriptorio. Chegou a sorrir quando lhe desenhei a imagem hippopotamica do senhor Pato, todo a reluzir berloques de ouro massiço.

— Que felicidade ser como esse homem, agir como elle, formar de si proprio a idéa que fórma! commentou miss Jane. Ignora tudo mas não tem a sensação disso. Meu pae era o contrario. Levava ao extremo opposto o conceito da sua propria pequenez — e o senhor Ayrton sabe que si houve creatura no mundo mais que todas as outras, foi meu pae... Imagine si tomba nas mãos desse senhor Pato a machina de sondar o futuro !

— Applical-a-ia, em enriquecer-se como dez Cresos, pendurando no corpo tanta quinquilharia de ouro que, quando andasse na rua, havia de tilintar. E a pobre humanidade, assombrada, era bem capaz de metter-se de joelhos á sua passagem, certa de que resurgira no mundo o Bezerro disfarçado em homem, conclui eu.

— Bem razão tinha meu pae em não tornar publica a sua descoberta. Só mesmo um espirito de eleição como o delle poderia resistir ás tentações resultantes...

Soube nesse domingo muitos detalhes curiosos da vida do professor Benson, e de como chegara á descoberta da onda Z, ponto de partida para o mais.

— Foi o psychismo que lhe revelou essa onda que resume e reflecte a vida universal do momento. O facto de certos individuos agirem como polarizadores de uma força ignorada impressionara de modo profundo a sua agudissima intelligencia. Metteu-se a estudar o phenomeno sob uma luz nova e chegou a apprehendel-o de modo integral. Pobre pae!

Falamos depois do nosso romance sobre o choque das raças na America.

— Sim, disse miss Jane, animando-se. Continuo a pensar que o senhor Ayrton não deve perder a opportunidade. Ouvirá de mim tudo o que sei a respeito e escreverá um livro, deveras interessante. Não lhe prometto já, já, fazer essas revelações. Neste meu estado, comprehende que me seria penoso. Mas o tempo, cicatriza, eu sei ! as mais terriveis feridas — e lá chegaremos. Para mim será até um derivativo á dor da saudade. Dizem que recordar é reviver e eu presinto que minha vida vae resumir-se nisso : recordar, reviver o que tenho accumulado na memoria. Venha todos os domingos e creia que sua presença me será sempre agradavel — alem de que estamos ligados pelo grande segredo...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.