Saltar para o conteúdo

O Conde Lopo/Primeira Parte

Wikisource, a biblioteca livre

PRIMEIRA PARTE

CANTOS I e II

Eat, drink and love: what can the rest avail us?
Byron. Don Juan.

OUVERTURA

Sê bem vinda minh'amada,
Toda em perfumes banhada,
Toda alegria e frescor;
Quero cingir-te em abraço,
E depois no teu rêgaço
Adormeça o Trovador.
João de Lemos.

OUVERTURA

(SYMPHONIA)

Tremem as folhas no correr da aragem
Com seus perfumes enlevando magoas,
E á noite bella sonharei cantando
Como o cysne das águas.

Cala-te, louco bardo ! é doce a vida !
— E em que delírios d'alma imagináras
Um céo mais límpido, um luar mais puro ?...
Poeta, onde os sonháras ?

Que visão bella de ennevoadas fôrmas,
De romântica face entristecida
Que valha o riso que perfuma os lábios
Do meu anjo da vida ?

De loucos sonhos que ternuras ébrias
Que valhão-lhe o tremor do níveo seio
E o amortecido olhar, humido, languido
De feiticeiro enleio ?

Amemos ! que na terra a vida é o gozo !
Ternuras n'alma, embriaguez nos lábios
Sorria o coração ! que importa o escarneo
Da voz fria dos sábios?

Gema no campo em que apodrecem mortos.
Da tréva o sonhador, fallando aos ventos
Durma co'a face em lagrimas na terra
Que nem lhe ouve os lamentos.

Que eu a vida amarei, hei de cantar-lhe
Entre os beijos de languida donzella,
Na fronte rosas, com a taça em punho
Doces mysterios delia.

O fresco do luar vertigens varre,
Idéas de suicídio em negra mente.
Vem pois comigo — sonharemos juntos
Cantando alegremente.


II

A GEORGE SAND

1

Lelia ou Consuelo? Espirito de Byron
Em fôrmas bellas de mulher ardente,
Alma de braza a estremecer contornos
De voluptuosos, arquejantes seios,

Voz de mágico cysne em roseos lábios
Que vivos accendeu da orgia a febre,
Gênio sublime d'ideaes romances
Cheios de sangue e de blasphemia acerba,
Como essa tela do pintor flamengo
De sombrios painéis — Rembrant o pallido
— Onde no claro escuro em ar trevoso
Áurea restea de luz descai na fronte
De cândida visão.
          Mulher sublime
De poemas infernaes, d'alma descrida
Em corpo ethereo — Jorge Sand, na terra
Que peito d'homem que te lesse os cantos
E alma de poeta que entender podesse
Do teu sonhar as harmonias — negras
Como no escuro temporal o vento
A ulular nos pinheiraes quebrados,
Nas ribas negras onde o mar rebenta
Num grito de agonias, oh ! e que alma
Que não sonhasse-te, em ardentes Sonhos,
Sequer sentir o ardor desses teus lábios,
Dos olhos teus de scintillar soberbo,
De viva inspiração e anhellos igneos,
E teu seio a anciar com ondas turvas
No além do alto mar, por sob o delle,
Mulher! qual desses pallidos mancebos
D'almas de lavas que o condão do gênio

Trazem escripto na descôr sombria
Da fronte erguida — corações que enleva
O talisman de arrebatada idéa —

Que de joelhos no fervor do anhello
Co'os olhos cegos do orvalhar das lagrimas
Os lábios trêmulos e a voz cortada
          Não te sonhasse amores ?

3

Fada ou mulher, anjo ou demônio, és bella!
Q u e eu daqui te sonhei huri do Oriente
D e langue olhar e abrazadores lábios
E seio abalador de enlace ardente !

E pois que a sina me vedou venturas
No peito viverei co'a imagem delia!
D'irresistivel talisman és deusa,
Fada ou mulher, anjo ou demônio, és bella!

4

Tem sons que abalão tremulas as fibras
Todas do hiante coração, tua harpa.
Tens olhares que vibrão como raios
Clareando a escuridão, — p'lo peito a dentro
Esses teus olhos de divino fogo —
O correr da torrente em brancas ondas
De fervedora espuma, tens no collo
Quando nas horas do prazer se agita
E em suspiros desfeito morre e mata !

6

Vem ! Rainha da noite, eu quero amar-te
Co'os rubros lábios humidos de vinho !
Tremula em vida quero-te mais longe

          Esse olhar que inebria,
E que não rende essa embriaguez dos rizos
Ao som de cantos o passar de um beijo —
Nos lábios fogo, o coração sedento
          No sussurrar da Orgia ?

7

E pois que o meu desejo é na loucura
          Vem, ó pallida bella
Quero-te os beijos de mais alma e fogo..
          E hei de amar-te por ella...

III


1

Vem, ó Walkiria, vem co'as faces roseas
Da febre do prazer ! transborde a taça
Os líquidos rubins de doces vinhos !
Bebe, primeiro ! pousa os lisos lábios
Nas t>ordas do crystal! Fiquem mais doces
Co'aroma de teu hálito de fada —
O- Siciliano primoroso nectar. —
Dá-mo agora — beberei-te um brinde !
Onde minha guitarra ? dêem'ma, eu quero
Um cântico dizer, ebrio de amores !



Pousa-me a neve de teu braço em torno
Do collo meu, no meu olhar se fixem
Languidos, mui languidos, bem cheios
De feiticeiro enlouquecer teus olhos !



Que rosas abertas em fresca manhã
Molhadas da noite, de face lasciva —
Que valhão-te o nacar de nympha louça
          Que a bocca te aviva ?

E quando na terra sôa Ave Maria,
Que estrella nascendo do céo no azular,
Que nuvem morrendo na vaga sombria
          Que valha-te o olhar ?

De Tasso ou de Dante que gloria, que loiros,
Que amores, que sonhos de alheiarem o sizo,
De uns seios de neve que argenteos thesoiros
          Que valhão-te um rizo ?

Que sylphides, que anjos fingidos nos sonhos
De uma alma de poeta num fervido ancejo
          Que valhão-te um beijo ?


……………

2


Vem, pois, minha sultana ! a noite é bella !
Corre a lua no céo entre perfumes,
Tudo falia de amores, o ar, as sombras


Das folhas ao luar, e o azul das águas.
Amemo-nos portanto — a noite é bella !
Mais bella a tornem nossos longos beijos —
Vem pois — formosa, que o Sultão escravo
Pede-te ancioso um'hora de volúpia.

3

Co'a face bella no meu quente seio
Que fazes, muda assim ? dormes, Sultana ?
Fraqueou-te o vinho, de cançada — a mente
E dormes na embriaguez immensa idéa
Dos termos do viver ?
          Oh ! como és bella !
Dormida assim com entreabertos lábios,
Como rubins de uma romã partida
Pelo estallar da madurez — purpureos,
Chamando beijos no sonhar da vida ?

4

Dorme, ó anjo de amor, teu quedo somno
Pelo anciar de meu peito acalentada ;
Máos sonhos não viráõ pousar-te n'alma
Em dõr de coração ! Tepida a aragem
Fagueira corre nas abertas flores.
Um raio de luar por entre os vidros,
Da janella coado vem pousar-te
Sobre a fronte nevada — dorme ! e entanto
Nesses teus lábios que um sorrir descerra
Como rosa á manhã, purpureos, breves,


Eu sonharei uns visos de ventura,
E cá dentro do peito a dôr da vida
Também me dormirá ! dorme, meu anjo !
Hei de affagar-te o somno, hei de doural-o
Com hymnos mui sentidos, muito d'alma.

Dorme, ó anjo de amor, teu quedo somno
Aqui no peito meu ! dorme que eu velo !
Cerrem-se tuas palpebras de jaspe !
Em molle resomnar arfe-te o collo!
Que os suspiros que exhalão-se-te nos lábios
Esse cios seios teus tremor suave
Sonhe meu coração, e uma lagrima
D e gozo rolle-me do ardido cérebro
Que a dôr na solidão me tem crestado!

Além a briza as casualinas freme,
Gemedoras suspirão as ramagens
Num languido soar — a lua frouxa
A face te clareia — tudo dorme,
Tudo é silencio em torno ! só eu velo
Só eu — junto de ti. — Dorme, dorme,
Que véla-te o cantor a hora dos sonhos !

CANTO I

VIDA DA NOITE

And none did love him.
Childe Harold.

CANTO I

SONETO

Um beijo ainda ! os lábios teus, donzella,
Nos meus se pousem — junto de teu seio
Que treme-te e palpita em doce enleio
Beba eu o amor que teu olhar revela. —

Vem ainda uma vez ! és pura e bella,
Arfa-te o seio, amor n'olhos te leio...
Que importa o mais ? vem anjo, sem receio !
Um beijo em tua face ! ind'outro nella !

Aperta-me ao teu collo — assim,— um beijo
Desses em que ao céo um'alma se transporta!...

— « E o mundo ?...
          — « Um louco.
                — « E o crime ?
                      — « Só te vejo.

— « Mas quando a vida em nós gelou-se morta
— « E o inferno ?...
          — « Comtigo eu o desejo.
— « E Deus ?
          — « Meu Deus és tú,
                 — « E o céo?
                     — « Que importa !

II

Quero-te um beijo mais ! que num só beijo
Exhala-se uma vida em uns rizonhos
Scismar gozos — e o lábio teu me abraza
Me prende e mata o coração em sonhos !

Deixa que a fronte eu pouse-te no seio !
— E molle o somno em tão suave leito
E alma esquecida do soffrer, se embebe
E dorme em paz sem leve dôr no peito !

III

Humido olhar de enlanguecidos olhos
Furtiva lagrima enevada d'entre
O véo dos cilios que o pudor abaixa,
Intenso beijo ao frêmito dos lábios
E um seio que palpita e em ais se afoga
Sob peito ardente — eis a única ventura
Real e santa —
               E o que mais na terra

O que mais de illusões, que como a nevoa
Do desengano o sol esvae e apaga,
Mentidos risos que perfumão alma.
Em sonhos ebrios que o acordar esmaga
E do fel rega de um chorar que queima,
Que mais da vida ao coração soffrido
De saudade de fel merece lagrimas ?




I

Era um quarto sumptuoso ; o chão rojavão
Lúcidas telas de avelludadas sedas
Dó Pérsico tapete. — Luz o mármore
No lavor dos portaes — quando engrinaldão
Com cheirosos festões de novas flores.

O aberto reposteiro deixa a vista
Pela varanda a lua desvairar-se
Té que perde-se além entre os matizes
De viçosos jardins. —
                    É noite, é bella,
E as pilastras branqueia a briza fria.
P'los bordados reflexos do damasco
E das grinaldas ao olôr influem-se
O do ar cheiroso do luar tardio.

……………

……………

II

Em rico leito, no velludo negro
Embuçado do manto pallideja
De uma sinistra morbidez eivada
A fronte alta do Conde, os olhos negros
Que das olheiras no azular se afundão
Signalão noite perpassada em gozos.
Tem a fronte na mão e mudo pensa.
Sentada ás bordas do macio leito
Uma bella mulher —
                     Inda lhe luta
Das faces na descôr desfeita rosa;
Sorri suave. — Em ondas os cabellos
Correm-lhe negros nos nevados hombros
E no collo de jaspe — a mão mimosa
Pousa na do mancebo — e os olhos nelle. —

Dissereis uma estatua, immovel, bella
Como da Grécia as pétreas creaturas;
Nunca uma Venus de adestrado scopro
Sahiu tão alva assim — oh! nunca um talhe
Em transparentes roupas mal velado,
Nunca tão" lizas desvestidas fôrmas
Tiverão vida assim — e a mente ardida
Do moço Raphael a Fornarina
Com tal vida de cores nunca pôde
Dentre seus sonhos desenhar na tela,
E ao mundo revellar imos segredos
Do seu vivo ideal.
                 Oh! que se a visse
Dir-te-hia o coração — vel-a é amal-a!

III

E nunca ouviste, por ahi, na vida,
Fallar de umas mulheres que a flor d'alma
Prostituem por ouro ? nunca o peito
Abalou-te um rugir ouvindo os cantos
De tanta perdição ? —
                     Mas talvez viste
Um dia á porta — ao bruxulear da tarde
Cos seios descobertos vir sentar-se
Cum forçado sorrir nos seccos lábios
Do abjecto lupanar á porta infame
Desgrenhada mulher.
                      E então o nojo
Quiçá do peito teu apoderou-se....
Pois essas vis que a perdição enloda
Em charco apodrecido — e a esse nome
De vendida mulher — de prostituta
Ligaste o nojo e o desprezo — apenas.

Porém se a meretriz visses tu bella
Como os anjos de Deus e á luz das noites
Em estrellado céo, rosea sorrindo
Qual cravo entre rubins vasando orvalho —
A não amal-a e o coração inteiro
Não vasares-lh'o aos pés como áureo vaso
De essência preciosa — ao menos n'alma,
Não doera-te uma fibra, e compassiva
Não te cahira aos lábios uma lagrima
      N'um soluçar quebrado ?

IV

Era pois a mulher uma perdida
O mancebo um poeta — alma quebrada
Em fragoas do sonhar — que fora ás noites
De gozo queimador pedir repouzo
Para a fronte febril. Amara as orgias
Pois das taças á luz, ao som de cantos
Como as amava o grande-rei de Byron
(O mestre do viver — Sardanapalo —)
Entre flores e beijos e perfumes
— Três cousas em que cifra-se a ventura
Que não de louco sonhador — na terra —
Dormia ás vezes embalado e quedo
No peito seu o recordar dos sonhos —
Na mente a duvida e o fel nos lábios.

Chamaram-n'o talvez pródigo e louco
De orgias vivedor — e perdulário —
Virtuosos do mundo...
             Elle era rico —
Nas abertas gavetas ás mãos cheias
Tirava o ouro. —
             Amigos — não os tinha
Como o Childe de Byron — mas ainda
Desgosto amargo do viver — tão fundo
Não lhe roera o coração — ainda,
Embora elle o calasse, adormecidas
Eram-lhe n'alma, apenas, essas fibras

Que estremecem de amor. —
             Se o fél do escarneo
Os desvairados lábios lhe seccava
Se a ironia passava-lhe continua
Nas frias expressões — não é que gelo
Jazesse nelle o coração — nem que elle
Fosse como Timon de Athenas — esse
Mysanthropo dos bosques —
          Não! que viram
Os penhascos do mar quando a deshoras
Por escuro luar vagava — o crino
Do silencio das noites isentando, —
O pallido estrangeiro as faces cheias
De queimadoras lagrimas... e o peito
Quasi em soluços a estallar co'a dextra
Comprimir arquejando...
             E pois que digam
O que quizerem. — Máo ou bom o chamem,
Espirito perdido — arrebatado
Pela imaginação como o Propheta
No carro chamejante — ou mesmo chamem
Alma louca varrida... isso que importa?

VI

Era elle rico pois — nascera nobre
Mas como poucos nascem, nobre n'alma
E por velhos brazões d'encoscorados
Pergaminhos que os tempos apagaram.

Porque a pátria deixou, mudando o nome
Ninguém soube dizer-m'o. — A côr dos olhos
E dos negros cabellos annellados,
A doçura da voz, ríspida ás vezes,
— Poucas é certo — e o nariz delgado
E de talhe aquilino — o abrir dos lábios
— Mil outras cousas que ninguém define.
Dizem-n'o filho de um ardente clima
Quiçá do sol d'Hespanha; — bem irmanam
Suas feições co'as das valentes raças
Dos cavalheiros Árabes fundidas
No sangue Wisigodo. — Mas de certo
Eu nada affirmarei — e pois ignoto
Do meu poema o nobre heróe desenho. —

VII

Ergueu-se a linda, a languida mulher,
Uma e uma vibrou as cordas áureas
Da harpa melodiosa, e co'a mão breve
As madeixas lançou por sobre as costas
Que mais alvas ficaram p'lo negrume
Das reluzentes, copiosas ondas.—
……………
Cantou; — da noite adormecidos echos
Da viração nas azas resoaram
O harmônico languor dos lábios della.

VIII

Era um cantar de delirante gozo —
Em deleites uma alma a transbordar-se
P'las soltas cordas d'harpa estremecida
Num único tremor; eram delicias
De mavioso trovar, ás vezes, languido —
Era um som feiticeiro que prendia
Era de gozo embevecida, cheia
A vida a palpitar, alma a partir-se
Numa harmonia, numa voz fugindo.

Porém ás vezes férvidas vibravam
Sob os dedos de neve as duras cordas,
E indpmito rugir corria livre
Como a briza do mar nas crespas vagas —
Ou noroeste que balança as arvores
Em fantástica dança, e vôa envolto
Em seu manto de pó zunindo bravo,
   Varrendo da floresta as verdes folhas
……………
……………
Pendeu a face — suspirou — callou-lhe
No descerrâdo lábio a voz aeria —
E a fronte envolta nos cabellos negros
Pousou na trave de sua harpa muda.

IX

Disse-lhe o moço entre um sorrir:
                     « Que scisma
Minha bella o soido então gelou-te

Das cordas no pulsar? que idéa veiu
Tua mente enlevar, roubar, leval-a
No seu vôo sem fim junto com ella,
— Como a nuvem no Céo, que enlaça e prende
Uma outra — e vôa, aos desabridos ventos
Abrindo as largas azas no horizonte.


« Choras! Longa uma lagrima te corre
No carmezim das faces... Porque choras?
Lembrou-te acaso o descantar do gozo
Algum primeiro — quasi findo sonho
         De sacrosanto viso?


« Porque olhas-me assim ? porque te oscilla
No velludo dos olhos uma lagrima?


« Porque olhas-me assim? Gemes, suspiras?
Sonhaste acaso meu amor? »
                   — « Sonhei-o
« E sonho foi do coração »
                  — « Esquece-o
Que foi mentido sonho, idéa louca
Que negra te pouzou na flor dos seios.
……………

« Ouve — corri a vida em longas dores.
A deshoras vaguei nos mares negros
Da noite á escuridão abrindo as velas
Do rápido batei — fitei sosinho
Da proa solitária o céo e os mares
E os rochedos de além — nem alga ou lenho,
Nem afastada luz, nem vulto branco
Nas rochas e no mar — nem um luzido
De desmaiada estrella em céos de tinta!
Tudo deserto — terra e céo — sombrios
Como o meu coração, mu dez e trevas.


« Não amou-me ninguém! deixaram que
Mirrasse uma existência em sonhos gasta!
Não amou-me ninguém! nem veio quem
Ás minhas magoas soluçasse — Basta!


« Muito pranto chorei e cada gotta
Ao tombar-me no seio endureceu-m'o !
Muito soluço de agonia insomne
Espedaçou-me o peito! — E longa vida,
Em breve espaço me correu! — bem longa!
E se os cabellos não branqueavam todos
No ardor febril da fronte — aqui no peito
Gelou de velho o coração já roto.

« Não chores — bem o vês — não posso amar-te!


« E andei por esse mundo a sós co'a magoa
A doer-me nos seios como um cancro.
Descri; — pallido riso desmaiado
Franziu-me os lábios que estallára a febre.

Ninguém quizera amar-me — e endurecida
A alma se me cerrou da vida aos sonhos.


« E ahi na vida quantas, quantas vezes Eu não vi esvaecer-se descorada
Em meus beijos de fogo a imagem rápida
Dos meus sonhos do céo — e após ao sonho
A vizão doce succeder gelada
Triste realidade ? — que em meus braços
O anjo tornava-se mulher — e apenas
A minha Deusa — esvaecida nuvem.


« Descri — como eu te disse — e quando veio
Uma alma virgem p'ra vasar na minha
Seus thesouros de amor e de caricias,
Irmã do meu sentir — desconheci-a,
Matei-lhe a flor do sonho — e ri-me della.

« E quantas flores desmaiadas, frias,
Não cahiram-me aos pés, sem côr, nem vida!
Como rosa que o vento desflorára!
Quanta alma bella no intimo do seio
Anhellante e ardente como o estio
Não gelou meu sorrir? Eu ri-me dellas
Com escarneo de fél — e tristes, pallidas
Morreram como pombas — como flores
Que um louco esperdiçou. — E não chorei-as
Nem choro-as hoje que melhor lhes fora
O amor dos seraphins... pois eram santas !
« E pois tu vês, mulher, não posso amar-te !
O sentimento cândido não posso
Dar-t'o, bella — mírrou-m'o aqui no peito
O gélido sarcasmo e o fél do escarneo ».


Tomou-a pela mão — junto com ella
Caminhou por salões illuminados,
Tapetados de flores.— Traja roupas
De arrouxado velludo — e quando o manto
No movimento se lh'entreabre, ao peito
Sob a cambraia da camisa leve
No livre respirar, se lêem anceios.
……………
Rumor confuso nos salões resôa
Em brindes de festim, em gargalhadas
De gargantas de neve e frescos lábios.

Do reposteiro de damasco afasta,
O lavrado matiz de rosea seda
A mão alva do Conde. — Elle e a moça
Entraram ambos com geral applauso
Dos corados convivas.


                 Soam brindes,
Reboão nas abobadas das salas,
Mil saúdes ao Conde e á bella dama.
……………
Coberta a fronte de cheirosa c'rôa
De madresilvas e jasmins tecida,
Com a taça na mão e olhar em fogo
Um mancebo se ergueu. Correm-lhe soltos
Sob os perfumes da grinalda airosa
Anneis castanhos refulgindo ás luzes
Dos lustres de crystal — a fronte larga
De candidez de neve, inda mais bella
Por sob as flores resplendendo erguida —
Tem altivez no olhar, risos nos lábios,
E doce a voz no traduzir idéas.

1

« Deusa da noite, perfumada nympha,
De estremecido collo e olhos bellos,
Salve ! formosa de ademan sereno
E na hora dos beijos, dos amores
E o seio a palpitar em terno enleio
Do vinho no vapor, vague-me em sonhos
            Na mente o devaneio!

2

Inteira a vida hei-de sagrar-te, ó bella,
Cantos de religião só tu me inspiras !
Que importam cores de arrebóes sem nuvens ?
Se eu vivo apenas quando tu deliras
E hei-de rir e beber cantando á noite.
Quero essa vida perpassal-a em flores!
Quero o alaúde perfumado em rozas.

3

Qu'importa áquelle que exhalou nas noites
De blasphemia febril o ardor dos lábios
Vaporoso sonhar, versos insipidos,
De sonhos juvenis mornos resabios?
E quando a morte me estender gelado,
O somno irei dormir da noite immensa,
E se sonhar — hão de sorrir-me idéas
          De gozo á treva densa.

4

E lá me estendam no torrão do campo
— Mas sem soluços, nem pranteadas dores
Co'as frescas rozas do festim na fronte
Ainda turva ao saibo dos licores!
Na lagea negra que pezar-me ao corpo
Nenhuma lettra cravem, ignorada
No seu leito de pedra — minha vida
          Durma o somno do nada.

5

Somente ás vezes sobre a fria lousa
Ruidosa passe a delirante orgia!
Se mortos sentem — o rumor dos brindes,
Dos beijos o estallar, louca alegria
Hão-de-me ao peito despertar lembranças
De vida gasta em risos de mulher!...
E ahi que mais que valha uma saudade,
         Um suspiro sequer ? »
……………
E alegra-se o festim na vozeria
Da infrene bacchanal. Alaga os peitos
Estremecida embriaguez suave —
E mais languido o olhar quando licores
A idéa enleiam da mulher formosa.
E mais tremido o seio quando o aperta
Uma trêmula mão, quando disfarces
O anhello do gozar desfaz em risos.


Vai louca a festa, os cantos se desatam
Cheios de febre, de anhellar ardente,
Cheiram mais os perfumes. — São mais bellas
Co'as faces vivas, e os cabellos soltos
Cobrindo a neve ao collo, e a roza aohombre,
São mais lindas assim com olhos turvos
E lábios anhellantes — as bellezas.
……………

Soam vozes na rua, cantos roucos
Fallam de morte e de agonia extrema.
Fúnebre lividez de tochas plácidas
E confuso murmúrio — e passos lentos
Soando nas calçadas — o cortejo
Negro d'entorno de um caixão aberto
E dentro branco e frio como mármore
Coberto do sudario, as mãos unidas
Onde o peito bateu — mas hoje é mudo,
As palpebras grudadas — a figura
Alongada p'la morte — vai deitado
No aperto do athaúde um corpo d'homem.


Chegaram todos á janella a vel-o
Com rir blasphemo sobre os impios lábios,
E a todos regelou no louco cérebro
A embriaguez da orgia o sahimento
E o medonho clarão que leva á cova
Aquelle que morreu...
                  Só um mais louco
Quiz reprimir o sentimento fundo —
— « Um enterro ! que admira ? nunca vistes
Gelar-se ao homem o calor da vida ?
Deixai o morto que se estire longo
Pelo lençol da cal que fria o enlaiva.
Morreu ! que importa mais ? matéria apenas!
Eil-o só podridão. Porque gelar-vos,

E os cálices vermelhos sobre a mesa
Nas horas do festim, deixal-os virgens?
Eia, mancebos, empunhai as taças!
Um brinde, um brinde, a esse que dormiu
Somno fundo da morte em leito frio!
Um brinde á hora dos torpôres humidos!
               A morte! aos mortos! »

AGONIA NO CALVÁRIO

Vos omnes qui transitis per viam, attendite
et videte si est dolor sicut dolor meus.

Jeremias.



I

Escura a tarde e fria — o vento rijo
        Correndo pelos ares
Pelo céo negro o vendaval resôa
        Uivando nos palmares.
E affbgueado listão de luz sanguenta
        A bruxulear incerto,
Além pousa nos longes do horisonte
        Nos prainos do deserto.
E o licor no relâmpago azulado
        Lá brilha e morre além
No rápido ondular branqueando os tectos
        Da impia Jerusalém.

II

Além — um monte desrelvado e ermo
       Frio como um sudario!
E em torno cruzes, podridão, caveiras,
       Sem túmulo — o Calvário!

III

E n'uma cruz pesada, áspera e dura
          Um corpo frio e pallido!
Sangue negro em suor corre-lhe os membros,
          Prantos o rosto esquálido —
E os longos negros crespos — que a poeira
          Das ruas polvilhára
D'espinhos com irônico diadema
          A turba coroara!

IV

Junto ao madeiro — e arrozada em prantos
No véo d'ouro das trancas envolvida —
Pallida a roza que lhe ornava as faces,
Desmaiado o azul do olhar sem vida
         Que ardente pranto cega —
Lá está Magdalena — a flor impura
Que o sopro do Senhor tornara santa!
E essa outra de joelhos, quem é ella
Que o rosto occulta sob a negra manta
         E o chão de pranto rega?
Silencio! a mãi de Deus é quem lá chora!
Olhos cançados do prantear alçando,
Anciosa por ouvir a voz suave
Que em suspiros se corta — ainda orando
        Pelo povo infiel!

Oh! santa Virgem! flor que hálito infame
Do mundo não manchou! Santa Maria
Das virgens d'Israel o anjo mais bello!
Porque te affoga assim mar de agonia
          A alma cheia de fel?

V

E ella inda lá está, immovel, triste,
          Pallida, em mudos prantos,
Fervem-lhe os olhos solitárias lagrimas
          Ao ver que esses encantos
Do filho amado, livido, sangrento,
          A morte os desbotou!
Oh! qual ha coração que dizer possa
          Quanto ella chorou?
Oh! qual alma, senão de mãi, entende
          Do pranto esse gemido,
Que lhe queimava os desluzidos lábios
          E o suspiro doído
Que o seio lhe estallava em férreas ancias?
          Ó doce mãi de Deus!
Perdoa ao impio que chorar não pôde
          Ao ver os prantos teus!

VI

Toda a noite lá 'steve — ouviu-os todos
Queimadores suspiros exhalados
Dos roxos lábios do divino martyr.
No extranhar de agonisantes ancias

Ouviu-os todos e a cada um gemido
No imo seio estallava-lhe uma fibra,
E rápida nas faces lhe escorria
Ardente lagrima — e a noite toda,
Sem o vento sentir que as azas frias
Pairava negras pelo ar toldado,
E a gelada saraiva e os relâmpagos
Com luz de inferno desbotando os muros
Da cidade culpada — a noite toda
Lá jazeu ao relento — e em torno delia
O braço do Senhor quebrara as campas,
E os lividos fantasmas á luz crebra
Do fuzil infernal vagueavam torvos
Nas mortalhas sangrentas embuçados!

E a noite toda — em lagrimas passara,
Em duras preces a penar em dores
Que em durso morso descarnavam fibras
Do corpo nú, de regelado sangue!
Que os olhos baços lá da cruz infame
Com descerrada bocca e a fronte pensa
Rasgada pelas pontas dos espinhos
Do zombador diadema do martyrio!

VII

E o vento soluçava regemendo
Nas rotas folhas do palmar bravio!
E com prantos de leão em roucas vozes
Carpidor — o trovão bramava negro —

E a terra convulsada estremecia,
E o som dos ventos e o troar das nuvens,
E o convulsar do terremoto ao longe
Eram ao mundo d'agonia um threno
De negro desespero em frios lábios!

VIII

E Magdalena nas madeixas humidas
Repassadas de pranto, o rosto frio
Envolvia gemendo — e quando os olhos
Á cruz erguia, ás vezes, vendo o corpo
Da creatura divina, desse outr'ora
Tão formoso Jesus — cortado e frio
E humido todo de suor de sangue,
E os olhos frios — já vidrados — fixos
Onde gelaram lagrimas, alçados,
A escuridão do céo, ora baixados
A cidade maldita — Magdalena
Gemebunda, em soluços affogada,
Tremia e ardentes olhos lhe queimava
Um pranto de cegar — em nuvem rubra!

IX

E ás vezes o relâmpago das cintas
          Do deserto alvejando
No calvo cerro illuminava as cruzes
          E as mulheres chorando!

E era medonha a lividez das faces
          Na agonia da cruz!
E essas estatuas de mulher, marmóreas,
          Branqueadas da luz!

X

Em affogado soluço um ai quebrado
Da aberta bocca do divino martyr
          Com a vida fugia!
E a ultima voz no derradeiro alento
Pelos algozes e descrida gente
          Perdão ao Pai pedia...

XI

E lá ficaram ellas toda a noite
No horror das trevas, no gemer dos ventos...


E ás vezes uma gotta despegava-se
De sangue — do cadáver e escorria
Pelo áspero madeiro humedecido,
E as frontes rosciava em frio orvalho
Dessas duas mulheres lá sosinhas —.

CANTO II

FEBRE


You are merry, my lord,
Who; I?
Ay, my lord,
Oh your only gig-maker. Wha
should a man do, but he merry?...

Shakespeare.

CANTO II

Hark! the lute

The lyre, the timbrei, the lascivious twinklings of beeling instruments, the softening voices of women.

Byron — Sardanapalus.

Corre alta a noite. E no auge vai a orgia;
Do mar na escuridão se abysma a lua
A pratear as águas que allumia.
Perfumes, flores, a vertigem sua
Nos salões a espalhar"— reina em folia
Lasciva a dança, voluptuosa e nua —
Nos floridos tapetes se agitando
— Servos na meza as taças corôando.

Leves roupas que o corpo transparece,
As rozeas fôrmas quasi a nú mostrando,
Humidos collos do suor que desce
Por alabastro que olhos vai matando —
Das redes d'oiro qual Ceréa messe
As soltas louras trancas transbordando,
Ou longos crespos negros no andar leve,
Ondulando nos hombros côr de neve.

Cantos doces de amor que affogam beijos
D'ardentes lábios — e nevados seios
Rociados de suor tremendo ancejos,
Languidos olhos transbordando enleios,
Vestes soltas no ardor d'ébrios desejos,
Abertos lábios a matar receios —
Mulheres e a embriaguez das taças bellas
Que não ha a escolher a melhor dellas.
……………
E após ébrio de vinho e amor num leito
Molle e juncado de macias flores
Jazer com a mais querida — peito a peito
No lábio o lábio della — as vivas cores
Ver desmaiar-lhe num beijar desfeito,
No seio delia respirar amores...
Vida, ó madido sonho, de teus gozos
Quaes mais fortes, mais longos, mais formosos?!

II

«Eu amo em luzes sem fim
O deslumbrante festim ;
Uma voz a descantar
Por uns lábios de grenalda;
Nas frontes rozea grinalda —
— Cheias taças d'esmeralda
De Johannisberg a brilhar!

E entre requebros da dança
Quando o peito oftega e cansa
Da walsa ao longe soar,

E o chão lastra-se de flores
Dos beijos entre os ardores
Sorver do vinho os fervores
Do crystal a transbordar!

« E eu amo ter nos meus braços
Em voluptuosos abraços
Uma languida mulher !
Beber-lhe os trêmulos beijos,
Vel-a mórbida em ancejos,
Quasi morta de desejos,
O collo arfar-lhe e tremer.

Amo em vertigens da mente
Sentir a mágoa dormente
No imo d'alma arrefecer...
Eu amo a louca alegria
Danças, cantos e folia,
E num beijo que inebria
Vinho e amor — de amor morrer! »

III

Com a taça na mão e a fronte alçada
D'enthusiasmo febril, co'as faces vivas
De bacchico rubor cantou um jovem
Essa canção de orgia. — Era formoso
C'os olhos negros scintillando ardentes
D'entre as pallidas palpebras; nos lábios,

Que o fogo dos licores lhe crestara
Nadava-lhe um sorrir — a fronte pallida
Descoberta, alvejava-lhe sem rugas,
Como o seio de um lago — era formoso
Com o negro bigode a sombrear-lhe
Dos lábios o vermelho!
                  Attentos, fixos
Pousava os olhos negros no mancebo
Cândida fôrma de mulher — sorria,
E o descerrado purpurear dos lábios
Mostrava lindas feiticeiras pérolas
De humido reluzir ; — as ondas negras
Dos cabellos prendião-lhe luzentes
Límpidos fios de diamantes trêmulos,
Brilhando multi-côres, como estrellas
Em noite de verão — co'as mãos unidas
Olhava p'ra o mancebo e n'uns olhares
Mui languidos, a vida parecia
Em gozo, inteira lhe expirar no peito —
Bem como a sol dourado o seio aberto
Arfar-lhe patentêa em seus languores
Perfumosa e suave a flor sedenta.
……………

IV

Adormeceu-lhe, n'um cansado beijo
Inda abertos os lábios,.no seu peito
Ao mancebo cantor a moça bella. —

E ella era triste; e a lividez firmava
Pesada e quente sobre a mão — voltara-lhe
A mente e infindo relembrar de aggravos

« O corpo de suicida desalmado!
Quanta alma a transbordar de uncção poética
Anciosa e cheia de um amor, na terra
Não estallou-se com o ar do mundo
Como o férreo vibrar de uma harpa as cordas!

Amizade! onde a viste? foi acaso
No escuro cemitério de joelhos
Sobre o torrão que abriu a pá de fresco,
A regal-o de lagrimas?
                         Mentira!
Do campo frio a relva se humedece
Do orvalho e chuva e do urinar do negro
Tarpi-alo morcego e dos immundos
Frios reptis que passam lá — e apenas!

Não peças-me esses cantos — que é loucura!
Pede antes ao ciumento um riso terno,
Ao desprezado um descantar alegre,
Aos tigres um trinar, ao rouco abutre
Cevado em corrupção os ais da rola. »

Calou-se — em torno emmudeceram todos.
……………

V

Olhou-os e sorriu — todo o desprezo
Que um olhar conter pôde elle lançou-o
A esses dormidos ébrios parasitas. —


Mais feliz que Timon — não fora nenia
P'ra crêr-lhes no dizer — rira-se delles
Ao ouvil-os jurar—sentir infindo
Fundissima affeição de eterna dura...
……………

VI

Fôra-se ha muito a lua — mas a noite
O scintillar do céo tornara clara
De límpido fulgor — cahido o manto
— Com as dobras na mão sahira-se elle,
O Conde Lopo a passear ao fresco
Do ar livre dos campos.
                           O silencio
Si em derredor quebrava o som da aragem
Ou o accordado pássaro fugindo
Nos ramos sussurrantes — ou ao longe
A's vezes o estridor rouco dos gallos
A perturbar o somno ao fiel guarda
Do quedado cazal — o cão doméstico.

« No estremecer da orgia fui sentar-me
Vivendo enlevos nos olhares humidos
E nos tremidos seios de mulheres
Anhellantes de gozo — a ouvir os beijos,
Sorvendo os lábios que o Xerez molhava
Com orvalho rubineo — os ares cheios
De luz, cantos e odor — o soalho roseo
Das coroas de flores por mãos tremulas
Soltas das frontes no ferver do enlace! —
E nada me escaldou por muito a fronte
Rápida — a embriaguez, a idéa funda
Do meu fundo pensar de si varria !
……………
« Não mais ! não mais! prostitui meus lábios
Em frios beijos de mulher sem alma.
Cortei eu mesmo o fio da ventura
Que derradeiro ao céo prendia-me inda,
Em lascivias de olhar exhalei toda
Uma ardente poesia d'alma virgem!
Ardor e vida — e sonhos que eu criava
Nos refolhos do peito e uma e uma
Da crença e do amor mirrára as flores!

« Não mais ! as luzes tremulas da festa
Quando envoltas no chão cansadas jazem
Moças e flores — e repletos dormem
De amor e vinho — como cães - os ebrios,
Descorados convivas, negros somnos —

Quando a mesa é deserta e humida tinge-se
A toalha do festim de nodoas rubras
Dos copos derramados — quando os lustres
Á luz da madrugada oscillam pallidos;
Então cançado adormecer se pôde,
Meu doente coração. — Quedou-se um pouco
Aqui no fundo d'anna a dôr infinda
E esse ardor, que em suspiros me queimava
Os beiços meus, arrefeceu-me n'alma
Que o vinho embrutecêra... E após gelou-se
Gelou-se! e hoje ao despertar do somno,
Inanime e cançado — as faces pallidas —
E sem um sonho já nas noites d'alma,
Sem já uma esperança perfumada,
Qual um morto me achei!


             « Não mais minh'alma!
Discerremos á vida esse meu peito
Qual flor á viração — talvez que ainda
Alguma briza fresca perpassando
Co'as faces cândidas me roce a fronte
E alguma perla que o roscio nella
Deixasse acaso — aqui me chova n'alma!


« Ainda uma vez! abre-te minh'alma,
Como a silvestre flor do escuro brejo.
Quanta estrella no céo! á fresca noite
Pratêa-se a coroa; o campo é verde;

Desmaiado sorri o azul do empyreo.
Eia! ainda uma vez! do monte as flores
Pezadas pendem c'os serenos frios.
Ao ar da vida entreabre-te, meu peito!
Talvez á alguma sylphide passando,
Vestindo nevoas, que banhou no lago
As neves do seu corpo donairoso —
Accorde compaixão a chaga tua!
Talvez que num roçar da mão finissima
A tu'alma se accorde inda á ventura
Teu duvidar se vá!
                    Abre teus seios
Minh'alma ! A noite é pura, — amores falia,
A aragem fresca — tudo dorme em roda.
— Talvez possas chorar!... E é tão doce
Tepida lagrima verter agora!
Talvez desperte a lagrima no peito
Um sonho melancólico! Inda triste
E tão doce sonhar!
                    « Sonhar idéas
Deliradas além! além! meus prantos!
Porque mais chorarei? poderá acaso
Um cadáver se erguer? morreu-me o peito
Não mais se accordará — e pois que durma
O eterno resomnar ahi — e quando
Gelar-me de uma vez o ardor do peito
Que envolto no sudario do sepulcro
Sem sonhos, sem lembranças, nem saudades,
                    Repouse para sempre! »

Na relva se estendeu no manto envolto
Co'a cabeça a cobrir — talvez o corpo
Pezado lhe dormia...
                         O pobre moço
Fallou, mas desvairou. — Sabeis, que o vistes
Com a taça nos lábios, ledos brindes
Lhe fizeram sorver em largos tragos
Muito vinho Madeira. — Mais preciso
Dir-vos-hei — elle estava um tanto alegre...
Não direi — que vertigens o levavam
Por idear sombrio; — as beberagens
Lhe geraram na mente muitas larvas...
Estava um tanto bêbado — a palavra
Se é poética não sei — é expressiva
— E tanto basta — sabeis pois — de tonto
(Mas pouco) — apenas lhe vagueava o sizo.