O Crime do Padre Amaro/IV
Ao outro dia, na cidade, falava-se da chegada do pároco novo, e todos sabiam já que tinha trazido um baú de lata, que era magro e alto, e que chamava Padre-Mestre ao cônego Dias.
As amigas da S. Joaneira — as íntimas — a D. Maria da Assunção, as Gansosos, tinham ido logo pela manhã a casa dela para se porem ao fato... Eram nove horas, Amaro saíra com o cônego. A S. Joaneira, radiosa, importante, recebeu-as no alto da escada, de mangas arregaçadas, nos arranjos da manhã; e imediatamente, com animação, contou a chegada do pároco, as suas boas maneiras, o que tinha dito...
— Mas venham vocês cá abaixo, sempre quero que vejam.
Foi-lhes mostrar o quarto do padre, o baú de lata, uma prateleira que lhe arranjara para os livros.
— Está muito bem, está muito bem, diziam as velhas andando pelo quarto, devagar, com respeito, como numa igreja.
— Rico capote! — observou D. Joaquina Gansoso, apalpando o pano das largas bandas que pendiam ao comprido do cabide. — É obra para um par de moedas!
— E a boa roupa branca! disse a S. Joaneira, erguendo a tampa do baú.
O grupo das velhas curvou-se com admiração.
— A mim o que me consola é que ele seja um rapaz novo, disse D. Maria da Assunção, piedosamente.
— Também a mim, disse com autoridade a D. Joaquina Gansoso.
Estar a gente a confessar-se e a ver o pingo do rapé, como era com o Raposo, credo! até se perde a devoção! E o bruto do José Miguéis! Não, lá isso Deus me mate com gente nova!
A S. Joaneira ia mostrando as outras maravilhas do pároco, — um crucifixo que estava ainda embrulhado num jornal velho, o álbum de retratos, onde o primeiro cartão era uma fotografia do Papa abençoando a cristandade. Todas se extasiaram.
— É o mais que se pode, diziam, é o mais que se pode!
Ao sair, beijando muito a S. Joaneira, felicitaram-na porque adquirira, hospedando o pároco, uma autoridade quase eclesiástica.
— Vocês apareçam à noite, disse ela do alto da escada.
— Pudera!... gritou D. Maria da Assunção, já à porta da rua, traçando o seu mantelete. — Pudera!... Para o vermos à vontade!
Ao meio-dia veio o Libaninho, o beato mais ativo de Leiria; e subindo a correr os degraus, já gritava com a sua voz fina:
— Ó S. Joaneira!
— Sobe, Libaninho, sobe, disse ela, que costurava à janela.
— Então o senhor pároco veio, hem? perguntou o Libaninho, mostrando à porta da sala de jantar o seu rosto gordinho cor de limão, a calva luzidia; e vindo para ela com o passinho miúdo, um gingar de quadris:
— Então que tal, que tal? tem bom feitio?
A S. Joaneira recomeçou a glorificação de Amaro: a sua mocidade, o seu ar piedoso, a brancura dos seus dentes...
— Coitadinho! coitadinho! dizia o Libaninho, babando-se de ternura devota. -. Mas não se podia demorar, ia para a repartição! -. Adeus, filhinha, adeus! — E batia com a sua mão papuda no ombro da S. Joaneira. — Estás cada vez mais gordinha! Olha que rezei ontem a Salve-Rainha que tu me pediste, ingrata!
A criada tinha entrado.
— Adeus, Ruça! Estás magrinha: pega-te com a Senhora Mãe dos Homens. — E avistando Amélia pela porta do quarto entreaberta: — Ai, que estás mesmo uma flor, Melinha! Quem se salvava na tua graça bem eu sei!
E apressado, saracoteando-se, com um pigarrinho agudo, desceu a escada rapidamente, ganindo:
— Adeusinho, adeusinho, pequenas!
— Ó Libaninho, vens à noite?
— Ai, não posso, filha, não posso. — E a sua vozinha era quase chorosa. — Olha que amanhã é Santa Bárbara: tem seis Padre-Nossos de direito!
Amaro fora visitar o chantre com o cônego Dias, e tinha-lhe entregado uma carta de recomendação do Sr. conde de Ribamar.
— Conheci muito o Sr, conde de Ribamar, disse o chantre. Em quarenta e seis, no Porto. Somos amigos velhos! Era eu cura de Santo Ildefonso: há que anos isso vai!
E, reclinando-se na velha poltrona de damasco, falou com satisfação do seu tempo; contou anedotas da Junta, apreciou os homens de então, imitou-lhes a voz (era uma especialidade de sua excelência), os tiques, as caturrices, — sobretudo Manuel Passos, que ele descrevia passeando na Praça Nova, com o comprido casaco pardo e o chapéu de grandes abas, dizendo:
— Ânimo patriotas! o Xavier aguenta-se!
Os senhores eclesiásticos da câmara riram com gozo. Houve uma grande cordialidade. Amaro saiu muito lisonjeado.
Depois jantou em casa do cônego Dias, e foram passear ambos pela estrada de Marrazes. Uma luz doce e esbatida alargava-se por todo o campo; havia nos outeiros, no azul do ar, um aspecto de repouso, de meiga tranquilidade; fumos esbranquiçados saíam dos casais, e sentiam-se os chocalhos melancólicos dos gados que recolhem. Amaro parou junto da Ponte, e disse, olhando em redor a paisagem suave:
— Pois senhores, parece-me que me hei-de dar bem aqui!
— Há-de-se dar regaladamente, afirmou o cônego, sorvendo o seu rapé.
Eram oito horas quando recolheram a casa da S. Joaneira.
As velhas amigas estavam já na sala de jantar. Ao pé do candeeiro de petróleo, Amélia costurava.
A Sra. D. Maria da Assunção vestira-se, como nos domingos, de seda preta: o seu chinó, dum louro avermelhado, estava coberto com as rendas de um enfeite negro; as mãos descarnadas, calçadas de mitenes, solenemente pousadas no regaço, reluziam de anéis; do broche sobre o pescoço até ao cinto, um grosso grilhão de ouro caía com passadores lavrados. Conservava-se direita e cerimoniosa, com a cabeça um pouco de lado, os óculos de ouro assentes sobre o nariz acavalado: tinha no queixo um grande sinal cabeludo; e quando se falava de devoções ou de milagres dava um jeito ao pescoço, e abria um sorriso mudo que descobria os seus enormes dentes esverdeados, cravados nas gengivas como cunhas. Era viúva e rica, e sofria dum catarro crônico.
— Aqui tem o senhor pároco novo, D. Maria, disse-lhe a S. Joaneira.
Ela ergueu-se, fez uma mesura com um movimento de quadris, comovida.
— Estas são as senhoras Gansosos, há-de ter ouvido... disse a S. Joaneira ao pároco.
Amaro cumprimentou timidamente. Eram duas irmãs. Passavam por ter algum dinheiro, mas costumavam receber hóspedes. A mais velha, a Sra. D. Joaquina Gansoso, era uma pessoa seca, com uma testa enorme e larga, dois olhinhos vivos, o nariz arrebitado, a boca muito espremida. Embrulhada no seu xale, direita, com os braços cruzados, falava perpetuamente, numa voz dominante e aguda, cheia de opiniões. Dizia mal dos homens e dava-se toda à Igreja.
A irmã, a Sra. D. Ana, era extremamente surda. Nunca falava, e com os dedos cruzados sobre o regaço, os olhos baixos, fazia girar tranquilamente os dois polegares. Nutrida, com o seu perpétuo vestido preto de riscas amarelas, um rolo de arminho ao pescoço, dormitava toda a noite, e só acentuava a sua presença de vez em quando por suspiros agudos; dizia-se que tinha uma paixão funesta pelo recebedor do correio. Todos a lastimavam, e admirava-se a sua habilidade em recortar papéis para caixas de doce.
Estava também a Sra. D. Josefa, a irmã do cônego Dias. Tinha a alcunha de castanha pilada. Era uma criaturinha mirrada, de linhas aduncas, pele engelhada e cor de cidra, voz sibilante; vivia num perpétuo estado de irritação, os olhinhos sempre assanhados, contrações nervosas de birra, toda saturada de fel. Era temida. O maligno doutor Godinho chamava-lhe a estação central das intrigas de Leiria.
— Então passeou muito, senhor pároco? perguntou ela logo empertigando-se.
— Fomos quase até lá ao fim da estrada de Marrazes, disse o cônego, sentando-se pesadamente por detrás da S. Joaneira.
— Não achou bonito, senhor pároco? acudiu a Sra. D. Joaquina Gansoso.
— Muito bonito.
Falaram das lindas paisagens de Leiria, das boas vistas: a Sra. D. Josefa gostava muito do passeio ao pé do rio; até já ouvira dizer que nem em Lisboa havia coisa assim. D. Joaquina Gansoso preferia a igreja da Encarnação, no alto.
— Desfruta-se muito, dali.
Amélia disse sorrindo:
— Eu por mim gosto daquele bocado ao pé da Ponte, debaixo dos chorões. — E partindo com os dentes o fio da costura: — É tão triste!
Amaro olhou para ela, então, pela primeira vez. Tinha um vestido azul muito justo ao seio bonito; o pescoço branco e cheio saía dum colarinho voltado; entre os beiços vermelhos e frescos o esmalte dos dentes brilhava; e pareceu ao pároco que um buçozinho lhe punha aos cantos da boca uma sombra sutil e doce.
Houve um pequeno silêncio, — o cônego Dias com o beiço descaído ia já cerrando as pálpebras.
— Que será feito do Sr. padre Brito? perguntou D. Joaquina Gansoso.
— Está talvez com a enxaqueca, pobre de Cristo! lembrou piedosamente a Sra. D. Maria da Assunção.
Um rapaz que estava junto do aparador disse então:
— Eu vi-o hoje a cavalo, ia para os lados da Barrosa.
— Homem! disse logo, com azedume, a irmã do cônego, a Sra. D. Josefa Dias, é milagre ter o senhor reparado!
— Por quê, minha senhora? disse ele erguendo-se e chegando-se ao grupo das velhas.
Era alto, todo vestido de preto: sobre o rosto de pele branca, regular, um pouco fatigado, destacava bem um bigode pequeno muito negro, caído aos cantos, que ele costumava mordicar com os dentes.
— Ainda ele o pergunta! exclamou a Sra. D. Josefa Dias. O senhor, que nem lhe tira o chapéu!
— Eu?
— Disse-mo ele, afirmou ela com uma voz cortante. E acrescentou:
Ai, senhor pároco, bem pode chamar o Sr. João Eduardo para o bom caminho. — E teve um risinho maligno.
— Mas eu parece-me que não ando no mau caminho, disse ele rindo, com as mãos nos bolsos. E a cada momento os seus olhos se voltavam para Amélia.
— É uma graça! exclamou a Sra. D. Joaquina Gansoso. Olhe, com o que o senhor disse hoje lá em casa, de tarde, da Santa da Arregassa, não há-de ganhar o Céu!
— Ora essa! gritou a irmã do cônego, voltando-se bruscamente para João Eduardo. Então o que tem o senhor a dizer da Santa? Acha talvez que é uma impostora?
— Credo, Jesus! disse a Sra. D. Maria da Assunção, apertando as mãos e fitando João Eduardo, com um terror piedoso. Pois ele havia de dizer isso? Cruzes!
— Não, o Sr. João Eduardo, afirmou gravemente o cônego, que espertara, desdobrando o seu lenço vermelho — não era capaz de dizer uma dessas.
Amaro perguntou então:
— Quem é a Santa da Arregassa?
— Credo! Pois não tem ouvido falar, senhor pároco? exclamou numa admiração a Sra. D. Maria da Assunção.
— Há-de ter ouvido, afirmava a Sra. D. Josefa Dias com autoridade. Diz que os jornais de Lisboa vêm cheios disso!
— É, com efeito, uma coisa bem extraordinária, ponderou com um tom profundo o cônego.
A S. Joaneira interrompeu a meia, e tirando a luneta:
— Ai, não imagina, senhor pároco, é o milagre dos milagres!
— Se é! se é!, disseram.
Houve um recolhimento devoto.
— Mas então?... perguntou Amaro, todo curioso.
— Olhe, senhor pároco, começou a Sra. D. Joaquina Gansoso endireitando-se no xale, falando com solenidade: a Santa é uma mulher que aqui há numa freguesia perto, que está há vinte anos na cama...
— Vinte e cinco, advertiu-lhe baixo D. Maria da Assunção, tocando-lhe com o leque no braço.
— Vinte e cinco? Pois olha, ao senhor chantre ouvi eu dizer vinte.
— Vinte e cinco, vinte e cinco, afirmou a S. Joaneira. E o cônego apoiou-a, oscilando gravemente a cabeça.
— Está entrevadinha de todo, senhor pároco! rompeu a irmã do cônego, ávida de falar. Parece uma alminha de Deus! Os bracinhos são isto! — E mostrava o dedo mínimo. — Para a gente a ouvir é necessário pôr-lhe a orelha ao pé da boca!
— Pois se ela se sustenta da graça de Deus! disse lamentosamente a Sra. D. Maria da Assunção. Coitadinha! que até a gente lembra-se...
Houve entre as velhas um silêncio comovido. João Eduardo, que por trás das velhas, de pé, com as mãos nos bolsos, sorria mordicando o bigode, disse então:
— Olhe, senhor pároco, a coisa é o que os médicos dizem: é que aquilo é uma doença nervosa.
Aquela irreverência fez, entre as velhas devotas, um escândalo; a Sra. D. Maria da Assunção persignou-se logo à "cautela".
— Pelo amor de Deus! gritou a Sra. D. Josefa Dias, o senhor diga isso, diante de quem quiser, menos de mim! É uma afronta!
— É que até pode cair um raio, dizia para os lados, baixo, a Sra. D. Maria da Assunção, muito aterrada.
— Olhe, também lho digo, exclamou a Sra. D. Josefa Dias, o senhor é um homem sem religião e sem respeito pelas coisas santas. — E voltando-se para o lado de Amélia, muito azeda: — Olhe, filha minha é que eu lhe não dava!
Amélia corou; e João Eduardo, fazendo-se vermelho também, curvou-se sarcasticamente:
— Eu digo o que dizem os médicos. E de resto, acredite que não tenho pretensões a casar com pessoa da sua família! Nem mesmo consigo, Sra. D. Josefa!
O cônego deu uma risada muito pesada.
— Arreda! Cruzes! gritou ela, furiosa.
— Mas que faz então a Santa? perguntou o padre Amaro, para pacificar.
— Tudo, senhor pároco, disse a Sra. D. Joaquina Gansoso: está sempre de cama, sabe rezas para tudo; pessoa por quem ela peça tem a graça do Senhor; é a gente apegar-se com ela e cura-se de toda a moléstia. E depois, quando comunga, começa a erguer-se, e fica com o corpo todo no ar, com os olhos erguidos para o Céu, que até chega a fazer terror.
Mas neste momento uma voz disse à porta da sala:
— Ora viva a sociedade! Isto hoje está de truz!
Era um rapaz extremamente alto, amarelo, com as faces cavadas, uma grenha riçada, um bigode a D. Quixote; quando ria tinha uma sombra na boca, porque lhe faltavam quase todos os dentes de diante; e nos seus olhos encovados, de grandes olheiras, errava um sentimentalismo piegas. Trazia uma guitarra na mão.
— Então como vai isso hoje? perguntaram-lhe logo.
— Mal, respondeu ele com voz triste, sentando-se. Sempre as dores no peito, a tossezita.
— Então não se dava bem com o óleo de fígados de bacalhau?
— Qual! fez ele desconsoladamente.
— Uma viagem à Madeira, isso é que era, isso é que era! disse a Sra. D. Joaquina Gansoso com autoridade.
Ele riu, com uma jovialidade súbita:
— Uma viagem à Madeira! Não está má! A D. Joaquina Gansoso tem-nas boas! Um pobre amanuense de administração com dezoito vinténs por dia, mulher e quatro filhos! Para a Madeira!
— E como vai ela, a Joanita?
— Coitadita, lá vai! Tem saúde, graças a Deus! Gorda, sempre com bom apetite. Os pequenos, os dois mais velhos é que estão doentes; demais a mais agora a criada também caiu de cama! É o diacho! Paciência! Paciência! — E encolhia os ombros.
Mas voltando-se para a S. Joaneira, dando-lhe uma palmada no joelho:
— E como vai a nossa Madre Abadessa?
Todos riram: e a Sra. D. Joaquina Gansoso informou o pároco que aquele rapaz, o Artur Couceiro, era muito engraçado e tinha uma bela voz. Era a melhor da cidade para modinhas.
A Ruça tinha então entrado com o chá; a S. Joaneira, enchendo as chávenas de alto, dizia:
— Cheguem-se, cheguem-se, filhas, que este é do bom! É da loja do Sousa...
E Artur oferecia açúcar com o seu antigo gracejo:
— Se está azedinho é carregar-lhe no sal!
As velhas sorviam a pequenos goles pelos pires, escolhiam cuidadosamente as torradas; sentia-se o mastigar ruminado dos queixos; e por causa dos pingos da manteiga e das nódoas do chá, estendiam prudentemente os lenços sobre o regaço.
— Vai um docinho, senhor pároco? disse Amélia, apresentando-lhe o prato. São da Encarnação, muito fresquinhos.
— Obrigado.
— Aquele ali. É toucinho do Céu.
— Ah! se é do Céu.., disse ele todo risonho. E olhou para ela, tomando o bolo com a ponta dos dedos.
O Sr. Artur costumava cantar depois do chá. Sobre o piano uma vela alumiava o caderno de música; e Amélia, logo que a Ruça levou a bandeja, acomodou-se, correu os dedos sobre o teclado amarelo.
— Então hoje que há-de ser? perguntou Artur.
Os pedidos cruzaram-se:
— O guerrilheiro! O noivado do sepulcro.' O descrido.' o nunca mais!
O cônego Dias disse do seu canto pesadamente:
— Ó Couceiro, vá lá aquela do Tio Cosme, meu brejeiro!
As mulheres reprovaram:
— Credo! por quem é, senhor cônego! Que lembrança! E a Sra. D. Joaquina Gansoso resumiu:
— Nada: uma coisa de sentimento para o senhor pároco fazer idéia.
— Isso, isso! disseram; uma coisa de sentimento, ó Artur, uma coisa de sentimento!
Artur pigarreou, cuspilhou; e dando subitamente à face uma expressão dolorosa, ergueu a voz, cantou lugubremente:
- Adeus, meu anjo! Eu vou partir sem ti!
Era uma canção dos tempos românticos de 51, o Adeus! Dizia uma suprema despedida, num bosque, por uma tarde pálida de Outono; depois, o homem solitário e precito, que inspirara um amor funesto, ia errar desgrenhado à beira do mar; havia uma sepultura esquecida num vale distante, brancas virgens vinham chorar à claridade do luar!
— Muito bonito, muito bonito! murmuravam.
Artur cantava enternecido, o olhar vago; mas nos intervalos, durante o acompanhamento, sorria em redor — e na sua boca cheia de sombra viam-se os restos de dentes podres. O padre Amaro, ao pé da janela, fumando, contemplava Amélia, enlevado naquela melodia sentimental e mórbida: o seu perfil fino, de encontro à luz, tinha uma linha luminosa; destacava harmoniosamente a curva do seu peito; e ele seguia as suas pálpebras de grandes pestanas, que do teclado para a música se erguiam e se abaixavam com um movimento doce. João Eduardo, junto dela, voltava-lhe as folhas da música.
Mas Artur, com a mão sobre o peito, a outra erguida no ar, num gesto desolado e veemente, soltou a última estrofe:
E um dia, enfim, deste viver fatal,
Repousarei na escuridão da campa!
— Bravo! bravo! exclamaram.
E o cônego Dias comentou baixo ao pároco:
— Ah! para coisas de sentimento não há outro. — E bocejando enormemente: Pois, menino, tenho tido toda a noite as lulas a conversar cá por dentro.
Mas chegara a hora do loto. Cada um escolhia os seus cartões habituais; e a Sra. D. Josefa Dias, com o seu olho de avara a luzir, chocalhava já vivamente o grosso saco dos números.
— Aqui tem um lugar, senhor pároco, disse Amélia.
Era junto dela. Ele hesitou; mas tinham aberto espaço, e veio sentar-se um pouco corado, ajeitando timidamente a volta.
Fez-se logo um grande silêncio; e, com a voz dormente, o cônego começou a tirar os números. A Sra. D. Ana Gansoso dormitava ao seu canto, ressonando ligeiramente.
Com o abajur as cabeças estavam na penumbra; e a luz crua, caindo sobre o xale escuro que cobria a mesa, fazia destacar os cartões enegrecidos do uso, e as mãos secas das velhas, pousadas em atitudes aduncas, remexendo as marcas de vidro. Sobre o piano aberto a vela derretia-se com uma chama alta e direita.
O cônego rosnava os números com as pilhérias veneráveis da tradição: 1, cabeça de porco! — 3, figura de entremês!
— Precisa-se o vinte e um, dizia uma voz.
— Temei — murmurava outra com gozo.
E a irmã do cônego, sôfrega:
— Chocalhe esses números, mano Plácido! Vá!
— E traga-me esse quarenta e sete ainda que seja de rastos, dizia o Artur Couceiro, com a cabeça entre os punhos.
Enfim o cônego quinou. E Amélia olhando em redor pela sala:
— Então não joga, Sr. João Eduardo? disse ela. Onde está?
João Eduardo saiu da sombra da janela, por trás da cortina.
— Tome lá este cartão, ande, jogue.
— E receba as entradas, já que está de pé, disse a S. Joaneira. Seja o senhor recebedor!
João Eduardo foi em roda com o pires de porcelana. No fim faltavam dez réis.
— Eu já dei, eu já dei! exclamavam todos, excitados.
Fora a irmã do cônego que não tocara no seu cobre acastelado. João Eduardo disse, curvando-se:
— Parece-me que a Sra. D. Josefa não entrou.
— Eu?! gritou ela, furiosa. Olha uma destas! Até fui a primeira! Credo! Duas moedas de cinco réis, por sinal! Que tal está o homem!
— Ah! bem, disse ele então, fui eu que me esqueci! Cá ponho. — E rosnou: beata e ladra!
E a irmã do cônego dizia no entanto baixo à Sra. D. Maria da Assunção:
— Queria ver se escapava, o melro! Falta de temor a Deus!
— Só quem não está feliz é o senhor pároco, observaram.
Amaro sorriu. Estava distraído, e fatigado; às vezes mesmo esquecia-se de marcar, e Amélia dizia-lhe, tocando-lhe no cotovelo:
— Olhe que não marcou, senhor pároco.
Tinham já apostado dois ternos; ela ganhara; depois faltou a ambos para quinarem o número trinta e seis.
Em roda repararam.
— Ora vamos a ver se quinam ambos, disse a Sra. D. Maria da Assunção, envolvendo-os no mesmo olhar baboso.
Mas o trinta e seis não saía; havia outras quadras nos cartões alheios; Amélia receava que quinasse a Sra. D. Joaquina Gansoso, que se mexia muito na cadeira, pedindo o quarenta e oito. Amaro ria, involuntariamente interessado.
O cônego tirava os números com uma pachorra maliciosa.
— Vá! vá! Ande com isso, senhor cônego! diziam-lhe.
Amélia, debruçada, os olhos vivos, murmurou:
— Dava tudo para que saísse o trinta e seis!
— Sim? Aí o tem... Trinta e seis! disse o cônego.
— Quinamos! gritou ela, triunfante; e, tomando o cartão do pároco e o seu mostrava-os, para conferirem, orgulhosa, muito corada.
— Ora Deus os abençoe, disse o cônego, jovial, entornando-lhes diante o pires cheio de moedas de dez réis.
— Parece milagre! considerou a Sra. D. Maria da Assunção, piedosamente.
Mas tinham dado onze horas; e depois da tumba final as velhas começaram a agasalhar-se. Amélia sentou-se ao piano, tocando ao de leve uma polca. João Eduardo aproximou-se dela, e baixando a voz:
— Muitos parabéns por ter quinado com o senhor pároco. Que entusiasmo! — E como ela ia responder: — Boa noite! disse ele secamente, embrulhando-se no seu xale-manta com despeito.
A Ruça alumiava. As velhas, pela escada, empacotadas nos abafos, iam ganindo adeusinhos. O Sr. Artur harpejava a guitarra, cantarolando o Descrido.
Amaro foi para o seu quarto, começou a rezar no Breviário; mas distraia-se, lembravam-lhe as figuras das velhas, os dentes podres de Artur, sobretudo o perfil de Amélia. Sentado à beira da cama, com o Breviário aberto, fitando a luz, via o seu penteado, as suas mãos pequenas com os dedos um pouco trigueiros picados da agulha, o seu buçozinho gracioso...
Sentia a cabeça pesada do jantar do cônego e da monotonia do quino, com uma grande sede além disso das lulas e do vinhito do Porto. Quis beber, mas não tinha água no quarto. Lembrou-se então que na sala de jantar havia uma bilha de Extremoz com água fresca, muito boa, da nascente do Morenal. Calçou as chinelas, tomou o castiçal, subiu devagarinho. Havia luz na sala, estava o reposteiro corrido; ergueu-o e recuou com um ah! Vira num relance Amélia, em saia branca a desfazer o atacador do colete; estava junto do candeeiro e as mangas curtas, o decote da camisa deixavam ver os seus braços brancos, o seio delicioso. Ela deu um pequeno grito, correu para o quarto.
Amaro ficou imóvel, com um suor à raiz dos cabelos. Poderiam suspeitar uma ofensa! Palavras indignadas iam sair decerto através do reposteiro do quarto, que ainda se balouçava agitado!
Mas a voz de Amélia, serena, perguntou de dentro:
— Que queria, senhor pároco?
— Vinha buscar água, balbuciou ele.
— Aquela Ruça! aquela desleixada! Desculpe, senhor pároco, desculpe. Olhe aí ao pé da mesa, a bilha. Achou?
— Achei! achei!
Desceu devagar com o copo cheio: a mão tremia-lhe, a água escorria-lhe pelos dedos.
Deitou-se sem rezar. Alta noite Amélia sentiu por baixo passos nervosos pisarem o soalho: era Amaro que, com o capote aos ombros e em chinelas, fumava, excitado, pelo quarto.