O Crime do Padre Amaro/XII
Ao outro dia cedo, a Sra. D. Josefa Dias que entrara, havia pouco, da missa, ficou muito surpreendida, ouvindo a criada que lavava as escadas dizer de baixo:
— Está aqui o Sr, padre Amaro, Sra. D. Josefa!
O pároco ultimamente raras vezes vinha a casa do cônego; e D. Josefa gritou logo lisonjeada e já curiosa:
— Que suba para aqui, não é de cerimônia! É como de família. Que suba!
Estava na sala de jantar, arranjando numa travessa ladrilhos de marmelada, com um vestido de barege preto esgaçado na ilharga e arqueado em redor dos tornozelos por uma crinoline dum só arco; trazia nessa manhã óculos azuis; e foi logo ao patamar, arrastando os seus medonhos chinelos de ourelo, e preparando, por baixo do lenço preto repuxado sobre a testa, um ar agradável para o senhor pároco.
— Ora ditosos olhos, exclamou. Eu entrei há bocadinho, e já cá tenho a primeira missinha. Fui hoje à capela de Nossa Senhora do Rosário... Disse-a o padre Vicente. Ai! e que virtude, que me fez hoje, senhor pároco! Sente-se. Aí não, que lhe vem ar da porta... E então a pobre entrevada lá se foi... Conte lá, senhor pároco...
O pároco teve de descrever a agonia da entrevada, a dor da S. Joaneira; como depois de morta a face da velha parecera remoçar; o que as senhoras tinham decidido a respeito da mortalha...
— Aqui para nós, D. Josefa, é um grande alívio para a S. Joaneira... - E de repente, puxando-se para a beira da cadeira, assentando as mãos nos joelhos: - E que me diz à do Sr. João Eduardo? Já sabe? Foi ele que escreveu o artigo!
A velha exclamou, levando as mãos à cabeça:
— Ai! nem me fale nisso, senhor pároco! Nem me fale nisso, que até tenho estado doente!
— Ah, já sabe?
— E mais que sei, senhor pároco! O Sr. padre Natário, devo-lhe esse favor, esteve aqui ontem e contou-me tudo! Ai, que maroto! Ai, que alma perdida!
— E sabe que é o íntimo do Agostinho, que são bebedeiras na redação até de madrugada, que vai para o bilhar do Terreiro achincalhar a religião...
— Ai, por quem é, senhor pároco, nem me diga, nem mo diga! Que ontem, quando o Sr. padre Natário esteve ai, até tive escrúpulos de ouvir tanto pecado... Que lhe devo esse favor, ao Sr. padre Natário, logo que soube veio-me contar... É de muito delicado... E olhe, senhor pároco, a mim sempre me quis parecer isso mesmo do homem. Eu nunca o disse, nunca o disse! Que lá isso, esta boquinha nunca se pôs em vidas alheias... Mas tinha cá dentro um palpite. Ele ia à missa, cumpria o jejum; mas eu cá tinha a desconfiança que aquilo era para enganar a S. Joaneira e a pequena. Agora se vê! Ele foi criatura que nunca me caiu em graça! Nunca, senhor pároco! - E de repente, com os olhinhos luzidios duma alegria perversa: - E agora, já se sabe, o casamento desmancha-se?
O padre Amaro recostou-se na cadeira, e muito pausadamente:
— Ora, minha senhora, seria notório que uma rapariga de bons princípios fosse casar com um pedreiro-livre, que não se confessa há seis anos!
— Credo, senhor pároco! antes vê-la morta! É necessário dizer tudo à rapariga.
O padre Amaro interrompeu, chegando rapidamente a cadeira para ao pé dela:
— Pois foi justamente para isso mesmo que eu a vim procurar, minha senhora. Eu ontem já falei com a pequena... Mas compreende, no meio daquele desgosto, com a pobre senhora a expirar ao lado, não pude insistir muito. Enfim disse-lhe o que havia, aconselhei-a por bons modos, expus-lhe que ia perder a sua alma, ter uma vida desgraçada, etc. Fiz o que pude, minha senhora, como amigo e como pároco. E como era o meu dever (ainda que me custou, realmente custou-me), lembrei-lhe que, como cristã e como senhora, tinha obrigação de romper com o escrevente.
— E ela?
O padre Amaro fez uma visagem descontente:
— Não disse que sim nem que não. Pôs-se a fazer biquinho, a choramingar. É verdade que estava muito alterada com a morte em casa. Que a rapariga não morre por ele, isso é claro; mas quer casar, tem medo que a mãe morra, que se veja só... Enfim sabe o que são raparigas! Que as minhas palavras fizeram-lhe efeito, ficou muito indignada, etc. ... Mas enfim, eu pensei que o melhor era a senhora falar-lhe. A senhora é a amiga da casa, é madrinha, conheceu-a de pequena... Estou certo que no seu testamento havia de lhe deixar uma boa lembrança... Tudo isto são considerações...
— Ai, fica por minha conta, senhor pároco, exclamou a velha, hei- de-lhas contar!
— A rapariga o que precisa é quem a dirija. Aqui para nós, precisa quem a confesse! Ela confessa-se ao padre Silvério; mas, sem querer dizer mal, o padre Silvério, coitado, pouco vale. Muito caridoso, muita virtude; mas o que se chama jeito, não tem. Para ele a confissão é a desobriga. Pergunta doutrina, depois faz o exame pelos mandamentos da lei de Deus... Veja a senhora!... Está claro que a rapariga não furta, nem mata, nem deseja a mulher do seu próximo! A confissão assim não lhe aproveita: o que ela precisa é um confessor teso, que lhe diga - para ali! e sem réplica. A rapariga é um espírito fraco; como a maior parte das mulheres não se sabe dirigir por si; necessita por isso um confessor que a governe com uma vara de ferro, a quem ela obedeça, a quem conte tudo, a quem tenha medo... É como deve ser um confessor.
— O senhor pároco é que lhe servia...
Amaro sorriu modestamente:
— Não digo que não. Havia de aconselhá-la bem; sou amigo da mãe, acho que ela é boa rapariga e digna da graça de Deus. Que eu, sempre que converso com ela, todos os conselhos que posso, em tudo, dou- lhos... Mas a senhora compreende, há coisas em que se não pode estar a falar na sala, com gente à volta... Só se está à vontade no confessionário. E é o que me falta, são as ocasiões de lhe falar só. Mas enfim eu não posso ir dizer-lhe: "a menina agora há-de confessar-se comigo"! Eu nisso sou muito escrupuloso...
— Mas digo-lhe eu, senhor pároco! Ah, digo-lhe eu!...
— Ora isso é que era um grande favor! Era um bem que fazia àquela alma! Porque se a rapariga me entrega a direção da sua alma, então podemos dizer que lhe acabaram as dificuldades, e temo-la no caminho da graça... E quando lhe vai falar, D. Josefa?
D. Josefa, "como julgava pecado adiar", estava decidida a falar-lhe essa mesma noite.
— Não me parece, D. Josefa. Hoje é noite de pêsames... O escrevente naturalmente está lá...
— Credo, senhor pároco! Pois eu e as outras pequenas havemos de passar a noite debaixo das mesmas telhas com o herege?
— Tem de ser. Enfim, o rapaz por ora é considerado da família... Além disso, D. Josefa, a senhora, a D. Maria e as Gansosinhos são pessoas da maior virtude... Mas nós não devemos ter orgulho da nossa virtude... Arriscamo-nos a perder-lhe todos os frutos. E é um ato de humildade, que agrada muito a Deus, o misturar-nos às vezes com os maus; é como quando um grande fidalgo tem de estar lado a lado com um trabalhador de enxada... É como se disséssemos: "Eu sou-te superior em virtude, mas comparado com o que devia ser para entrar na glória, quem sabe se não sou tão pecador como tu!..." E esta humilhação da alma é a melhor oferta que podemos fazer a Jesus.
D. Josefa escutava-o, babosa; e numa admiração:
— Ai, senhor pároco, que até dá virtude ouvi-lo!
Amaro curvou-se:
— Deus às vezes, na sua bondade, inspira-me justas palavras... Pois, minha senhora, eu não quero maçar mais. Ficamos entendidos. A senhora fala à pequena amanhã; e se, como é de crer, ela consentir em escutar os meus conselhos, traz-ma à Sé, no sábado, às oito horas. E fale-lhe teso, D. Josefa!
— Deixe-a comigo, senhor pároco!... Então não quer provar da minha marmelada?
— Provarei, disse Amaro, tomando um ladrilho em que cravou os dentes com dignidade.
— É dos marmelos da D. Maria. Saiu-me melhor que a das Gansosinhos...
— Pois adeus, D. Josefa... Ah, é verdade, que diz o nosso cônego deste caso do escrevente?
— O mano?...
Neste momento a campainha embaixo repicou com furor.
— Há-de ser ele, disse logo D. Josefa. E vem zangado!
Vinha, com efeito, da fazenda - furioso com o caseiro, o regedor, o governo e a perversidade dos homens. Tinham-lhe roubado uma porção de cebolinho; e, abafado de cólera, aliviava-se repetindo com gozo o nome do Inimigo.
— Credo, mano, que até lhe fica mal! - exclamou D. Josefa tomada de escrúpulos.
— Ora, mana, deixemos essas pieguices para a quaresma! Digo co'os diabos! e repito co'os diabos! Mas eu lá disse ao caseiro, que se sentir gente na fazenda, carregue a espingarda e faça fogo!
— Há uma falta de respeito pela propriedade... disse Amaro.
— Há uma falta de respeito por tudo! exclamou o cônego. Um cebolinho que dava saúde só olhar para ele! Pois senhores, lá vai! Isto é o que eu chamo um sacrilégio!... Um desaforado sacrilégio! - acrescentou com convicção; porque o roubo do seu cebolinho, o cebolinho dum cônego, parecia-lhe um ato tão negro de impiedade como se tivessem sido furtados os vasos santos da Sé.
— Falta de temor a Deus, falta de religião, observou D. Josefa.
— Qual falta de religião! replicou o cônego exasperado. Falta de cabos de polícia, é o que é! - E voltando-se para Amaro: - Hoje é o enterro da velha, hem? Inda mais essa! Vá, mana, mande-me lá dentro uma volta lavada e os sapatos de fivela!
O padre Amaro então, retomado pela sua preocupação:
— Estávamos cá a falar do caso do João Eduardo: o Comunicado!
— Isso é outra maroteira que tal, fez logo o cônego. Vejam essa, também! Que quadrilha vai pelo mundo, que quadrilha! - e ficou de braços cruzados, com os olhos arregalados, como contemplando uma legião de monstros, soltos pelo universo, e arremessando-se com impudência contra as reputações, os princípios da Igreja, a honra das famílias e o cebolinho do clero.
Ao sair, o padre Amaro renovou ainda as suas recomendações a D. Josefa, que o acompanhara ao patamar.
— Então hoje, noite de pêsames, não se faz nada. Amanhã fala à rapariga, e lá para o fim da semana leva-ma à Sé. Bem. E convença a rapariga, D. Josefa, trate de salvar aquela alma! Olhe que Deus tem os olhos em si. Fale-lhe teso, fale-lhe teso!... E o nosso cônego que se entenda com a S. Joaneira.
— Pode ir descansado, senhor pároco. Sou madrinha, e, quer ela queira quer não, hei-de pô-la no caminho da salvação...
— Amém, disse o padre Amaro.
Nessa noite, com efeito, D.Josefa "não fez nada". Eram os pêsames na Rua da Misericórdia. Estavam embaixo, na saleta, alumiada lugubremente por uma só vela com um abajur verde-escuro. A S. Joaneira e Amélia, de luto, ocupavam tristemente o canapé ao centro; e em redor, nas fileiras de cadeiras apoiadas à parede, as amigas, cobertas de negro pesado, conservavam-se funebremente imóveis, de faces contristadas, num torpor mudo: às vezes duas vozes ciciavam, ou dum canto, na sombra, saía um suspiro: depois o Libaninho, ou Artur Couceiro, ia em bicos de pés espevitar o morrão da vela; a D. Maria da Assunção expectorava o seu catarro com um som choroso: e no silêncio ouviam tamancos bater no lajedo da rua, ou os quartos de hora no relógio da Misericórdia.
A intervalos a Ruça, toda de negro, entrava com o tabuleiro de doces e copos de chazada; levantava-se então o abajur; e as velhas, que já iam cerrando as pálpebras, sentindo a sala mais clara, levavam logo os lenços aos olhos, e, com ais, serviam-se de bolinhos da Encarnação.
João Eduardo lá estava, a um canto, ignorado, ao pé da Gansoso surda que dormia com a boca aberta: toda a noite o seu olhar procurara debalde o olhar de Amélia, que não se movia, com o rosto sobre o peito, as mãos no regaço, torcendo e destorcendo o seu lenço de cambraieta. O Sr. padre Amaro e o Sr. cônego Dias vieram às nove horas: o pároco com passos graves foi dizer à S. Joaneira:
— Minha senhora, o golpe é grande. Mas consolemo-nos, pensando que sua excelentíssima mana está a esta hora gozando a companhia de Jesus Cristo.
Houve em redor uma murmuração de soluços; e como não restavam cadeiras, os dois eclesiásticos sentaram-se aos dois cantos do canapé, tendo no meio a S. Joaneira e Amélia em lágrimas. Eram assim reconhecidos pessoas de família; a Sra. D. Maria da Assunção notou baixinho a D. Joaquina Gansoso:
— Ai, até dá gosto vê-los assim todos quatro!
E até às dez horas a noite de pêsames continuou soturna e sonolenta, perturbada apenas pela tosse constante de João Eduardo que estava constipado, e que (na opinião da Sra. D. Josefa Dias que o disse a todos, depois), "tossia só para fazer troça e para achincalhar o respeito aos mortos".
Daí a dois dias, às oito horas da manhã, a Sra. D. Josefa Dias e Amélia entraram na Sé - depois de terem falado no terraço à Amparo, mulher do boticário, que tinha uma criança com sarampo, e, apesar de não ser coisa de cuidado, "viera à cautela fazer uma promessa".
O dia estava enevoado, a igreja tinha luz parda. Amélia, pálida sob a sua mantilha de renda, parou defronte do altar de Nossa Senhora das Dores, deixou-se cair de joelhos, e ficou imóvel, com o rosto sobre o livro de missa. A Sra. D. Josefa Dias, com passos fofos, depois de se ter prostrado diante da capela do Santíssimo e do altar-mor, foi empurrar devagarinho a porta da sacristia: o padre Amaro lá passeava, com os ombros vergados, as mãos atrás das costas:
— Então? perguntou logo, erguendo para D. Josefa a sua face muito barbeada, onde os olhos reluziam inquietos.
— Está ali, disse a velha baixinho, numa expressão de triunfo. Fui eu mesma buscá-la! Ai, falei-lhe teso, senhor pároco, não lhas poupei! Agora é consigo!
— Obrigado, obrigado, D. Josefa! disse o padre, apertando-lhe as mãos ambas com força. Deus há-de-lho levar em conta.
Olhou em redor, nervoso; apalpou-se para sentir o lenço, a carteira dos papéis; e, cerrando devagarinho a porta da sacristia, desceu à igreja. Amélia ainda estava ajoelhada, fazendo um vulto negro imóvel contra o pilar branco.
— Pst, fez-lhe D. Josefa.
Ela ergueu-se devagar, muito escarlate, compondo tremulamente com as mãos as pregas da mantilha em roda do pescoço.
— Aqui lha deixo, senhor pároco, disse a velha. Vou à Amparo da botica, e venho depois por ela. Ora vai filha, vai, Deus te alumie essa alma!
E saiu com mesuras a todos os altares.
O Carlos da botica - que era inquilino do cônego e um pouco ronceiro na renda - desbarretou-se com espalhafato apenas D. Josefa apareceu à porta, e conduziu-a logo acima, à sala de cortinas de cassa, onde a Amparo costurava à janela.
— Ai, não se prenda, Sr. Carlos, dizia-lhe a velha. Não largue os seus afazeres. Eu deixei a afilhada na Sé, e venho aqui descansar um bocadinho.
— Então, se me dá licença... E como vai o nosso cônego?
— Não tornou a ter a dor. Mas tem sofrido de tonturas.
— Começos de Primavera, disse o Carlos que retomara o seu ar majestoso, de pé no meio da sala, com os dedos nas aberturas do colete. Também eu me tenho sentido perturbado... Nós, as pessoas sanguíneas, sofremos sempre disto que se pode chamar o renascimento da seiva... Há uma abundância de humores no sangue, que, não sendo eliminados pelos canais próprios, vão, por assim dizer, abrir caminho, aqui e além, pelo corpo, sob a forma de furúnculo, espinha, nascida, às vezes, em lugares bem incômodos, e, ainda que em si insignificantes, acompanhados sempre, por assim dizer, dum cortejo... Perdão, sinto o praticante a palrar... Se me dá licença... Respeitos ao nosso cônego. Que use a magnésia de James!
D. Josefa então quis ver a menina com o sarampo. Mas não passou da porta do quarto, recomendando à pequena, que arregalava uns olhos de febre, muito abafada na roupa, "não se descuidasse das suas oraçõezinhas de manhã e à noite". Aconselhou à Amparo alguns remédios, que eram milagrosos no sarampo; mas se a promessa fora feita com fé, a menina podia considerar-se curada... Ai, todos os dias dava graças a Deus de se não ter casado! Que filhos eram só para dar trabalho e canseiras; e com as quezílias que traziam e o tempo que tomavam, eram até causa duma mulher se descuidar das suas práticas e meter a alma no Inferno.
— Tem razão, D. Josefa, disse a Amparo, é um castigo... E eu com cinco! Às vezes fazem-me tão doida, que me sento aqui na cadeirinha, e ponho-me a chorar só comigo...
Tinham voltado para junto da janela, e gozaram muito, espreitando o senhor administrador do conselho, que, por trás da vidraça da repartição, namorava de binóculo a do Teles alfaiate. - Ai, era um escândalo! Que nunca houvera em Leiria autoridades assim! O secretário-geral era um desaforo com a Novais... Que se podia esperar de homens sem religião, educados em Lisboa, que, segundo D. Josefa, estava predestinada a perecer como Gomorra pelo fogo do Céu! - A Amparo cosia com a cabeça baixa, envergonhada talvez diante daquela indignação piedosa, dos desejos culpados que a roíam de ver o Passeio Público e de ouvir os cantores em S. Carlos.
Mas bem depressa a Sra. D. Josefa começou a falar do escrevente. A Amparo não sabia nada; e a velha teve a satisfação de contar prolixamente, "tintim por tintim", a história do Comunicado, o desgosto na Rua da Misericórdia, e a campanha de Natário para descobrir o liberal. Alargou-se principalmente sobre o caráter de João Eduardo, a sua impiedade, as suas orgias... E, considerando um dever de cristã aniquilar o ateu, deu mesmo a entender que alguns roubos ultimamente cometidos em Leiria, eram "obra de João Eduardo".
A Amparo declarou-se "banzada". O casamento então, com a Ameliazinha...
— Isso pertence á história, declarou com júbilo D. Josefa Dias. Vão pô-lo fora de casa! E por muito feliz se deve o homem dar em não ir parar ao banco dos réus... Que a mim o deve, e à prudência do mano e do Sr. padre Amaro. Que havia motivos para o ferrar na cadeia!
— Mas a pequena gostava dele, ao que parece.
D. Josefa indignou-se. Credo, a Amélia era uma rapariga de juízo, de muita virtude! Apenas conheceu os desaforos, foi a primeira a dizer que não, e que não! Ai! detestava-o... - E D. Josefa, baixando a voz em confidência, contou "que era positivo que ele vivia com uma desgraçada para os lados do quartel".
— Disse-o o Sr. padre Natário, afirmou. - E aquilo é homem que da sua boca nunca sai senão a verdade pura... Foi muito delicado comigo, devo-lhe esse favor. Apenas soube veio-me logo dizer a casa, pedir-me conselhos... Enfim, muito atencioso.
Mas o Carlos apareceu de novo. Tinha a botica desembaraçada um momento (que não o tinham deixado respirar toda a manhã!) e vinha fazer companhia às senhoras.
— Então já sabe, Sr. Carlos, exclamou logo D. Josefa, o caso do Comunicado e do João Eduardo?
O farmacêutico arregalou os seus olhos redondos. Que relação havia entre um artigo tão indigno, e esse mancebo que lhe parecia honesto?
— Honesto? ganiu a Sra. D. Josefa Dias. Foi ele que o escreveu, Sr. Carlos!
E vendo o Carlos morder o beiço de surpresa, D. Josefa, entusiasmada, repetiu a história da "maroteira".
— Que lhe parece, Sr. Carlos, que lhe parece?
O farmacêutico deu a sua opinião, numa voz vagarosa, sobrecarregada da autoridade dum vasto entendimento:
— Nesse caso digo, e todas as pessoas de bem o dirão comigo, é uma vergonha para Leiria. Eu já tinha observado, quando li o Comunicado: a religião é a base da sociedade, e miná-la é, por assim dizer, querer aluir o edifício... É uma desgraça que haja na cidade desses sectários do materialismo e da república, que, como é sabido, querem destruir tudo o que existe; proclamam que os homens e as mulheres se devem unir com a promiscuidade de cães e cadelas... (Desculpem exprimir-me assim, mas a ciência é a ciência.) Querem ter o direito de entrar em minha casa, levar- me as pratas e o suor do meu rosto; não admitem que haja autoridades, e se os deixassem seriam capazes de cuspir na sagrada hóstia...
D. Josefa encolheu-se com um gritinho, muito arrepiada.
— E ousa esta seita falar em liberdade! Eu também sou liberal... Que, francamente o digo, eu não sou fanático... Nem pelo fato dum homem pertencer ao sacerdócio, o julgo um santo, não... Por exemplo, sempre embirrei com o pároco Miguéis... Era uma jibóia! Desculpe-me a senhora, mas era uma jibóia. Disse-lho na cara, porque a lei das rolhas já lá vai... Derramamos o nosso sangue nas trincheiras do Porto, justamente para não haver lei das rolhas... Disse-lho na cara: "Vossa senhoria é uma jibóia!" Mas, enfim, quando um homem veste uma batina deve ser respeitado... E o Comunicado, repito, é uma vergonha para Leiria... E também lhe digo, com esses ateus, esses republicanos, não deve haver consideração!... Eu sou um homem pacífico, aqui a Amparozinho conhece-me bem; pois se eu tivesse de aviar uma receita para um republicano declarado, não tinha dúvida, em lugar de lhe dar uma dessas composições benéficas que são o orgulho da nossa ciência, de lhe mandar uma dose de ácido prússico... Não, não direi que lhe mandasse ácido prússico... mas se estivesse no banco dos jurados, havia de lhe fazer cair em cima todo o peso da lei!
E balançou-se um momento sobre a ponta das chinelas, lançando um grande gesto em redor, como se esperasse os aplausos dum conselho de distrito ou duma municipalidade em sessão.
Mas na Sé bateram então devagar as onze; e D. Josefa embrulhou- se à pressa no seu mantelete para ir buscar a pequena, coitada, que havia de estar farta de esperar.
O Carlos acompanhou-a, desbarretando-se, e dizendo-lhe (como um mimo que remetia ao seu senhorio):
— Repita ao nosso cônego quais são as minhas opiniões... Que nessa questão do Comunicado e de ataques ao clero, estou de alma e coração com suas senhorias... Criado seu, minha senhora... O tempo vai-se a embrulhar.
Quando D. Josefa entrou na igreja, Amélia estava ainda no confessionário. A velha tossiu alto, ajoelhou, e, com as mãos sobre a face, abismou-se numa devoção à Senhora do Rosário. A igreja ficou numa imobilidade e num silêncio. Depois D. Josefa, voltando-se para o confessionário, espreitou por entre os dedos; Amélia conservava-se imóvel, com a mantilha muito puxada para o rosto, a roda do vestido negro espalhada em redor; e D. Josefa recaiu na sua reza. Uma chuva fina fustigava agora os vidros duma janela, ao lado. Enfim, houve no confessionário um rangido de madeira, um frufru de vestidos nas lajes, - e D. Josefa, voltando-se, viu de pé diante dela Amélia com a face escarlate e o olhar reluzindo muito.
— Está há muito tempo à espera, madrinha?
— Um bocadinho. Estás prontinha, hem?
Ergueu-se, persignou-se, e as duas senhoras saíram da Sé. Ainda caía uma chuva fina; mas o Sr. Artur Couceiro, que passava no largo com ofícios para o governo civil, foi levá-las à Rua da Misericórdia debaixo do seu guarda-chuva.