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O Dia (Santa Catarina)/Ano XVI/Número 8453/Os sub-productos do café

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Os sub-productos do café

Uma safra de dez milhões de saccas representa o accumulo nos despejadouros das machinas de 40 milhões de arrobas de palha. Desta colossal massa de detrictos parte volta aos cafesaes como adubo, parte é queimada nas fornalhas e o resto se perde. Se um processo chimico e ao mesmo tempo industrial permittisse retirar della uns tantos sub-productos de valor mercantil, São Paulo enriquecer-se-ia em dobrado. E' isso impossivel? E'.

Nosso Estado ha vinte annos hospeda em sua «urbs» um chimico notabilissimo, homem de outras eras e de incomprehensivel feição moral nesta edade aurea do auto-reclamo. Este homem teima em velar com os espessos véus da modestia o alto valor que lhe dá um labor ininterrompido de 40 annos de laboratorio posto a serviço duma intelligencia de finissimos quilates. Inutil dar nome ao retrato. Quem senão Pedro Baptista de Andrade cabe nesta moldura?

Este chimico, a todas as luzes merecedor de admiração e de louvor, após um trabalho aturado, feito á custa propria, sem o movel de nenhum interesse pecuniario, através de um sem numero d'obices só comprehensiveis dado o acanhamento mental do nosso meio, acaba de expor no Laboratorio Chimico do Estado o resultado dos seus esforços e, com elle, a solução do problema do aproveitamento dos subproductos do café. Em breves palavras se ennunciam os factos: de 20 kilos de palha, elle extrae por meio de processo simplicissimo e ao alcance de qualquer fazendeiro, nada menos de um litro de alcool, 120 grammas de manita e 12 grammas de cafeina. Demonstra assim a possibilidade de retirar da palha resultante da safra média prefigurada acima, trinta milhões de litros de alcool, 360 mil kilos de manita, e trinta e seis mil kilos de cafeina.

Apreçando taes productos pelo valor actual (600 reis o litro de alcool, 40.000 réis o kilo de manita, e 500 réis a gr. de cafeina) resulta que o aproveitamento das riquezas accumuladas na palha da saira presupposta se cota pela somma respeitavel de 212.400 contos!

Do alcool escusa falar. Seu multiforme emprego na industria é bastante conhecido. e só se alargará, senhoreando o campo da illuminação e o de combustivel para motores de explosão, com o barateamento consequente à exploração da nova fonte.

A manita, além do emprego que lhe assegura a medicina, como purgativo adequado ás crianças e pessoas debeis, é materia preciosa para a nitratação, pela qual dá um explosivo, a nitromanita, superior em efficiencia á dynamite e equiparavel ao fulminato de mercurio.

Num planeta e num seculo em que a arte de bem matar o seu semelhante, se estraçoa cidades, fortes e trincheiras é a suprema preoccupação das almas bem formadas, a manita, pela propriedade destructora que lhe dá a alliança com os nitratos, é um producto precioso de crescente valor commercial.

A cafeina, esta prolonga a vida e em mercado vasto como o que supprime a vida (entenda-se esta humanidade!). Com o extrahirmol-a da palha teriamos nas mãos o monopolio della, em detrimento da Allemaha, que nol-a vende, e ao mundo, depois de captal-a ao guano do Perú.

Dessorada a palha desta trindade de sub-productos, o residuo constiuirá adubo muito superior á palha bruta, pela fragmentação granulosa à que fica reduzido, especie de farinha grossa, de apparencia terrosa, susceptivel de perfeita mixtão com a terra onde rapidamente, por influxo das aguas, largará os saes retidos. Nenhum dos seus elementos fertilizantes soffre diminuição, ou uzura, ou allotropia durante o processo destillatorio, a modo de em nada alterar os empregos actuaes que a ella dão os fazendeiros, retorno á terra ou fornalha.

Eis, na succinta desnudez dos dados positivos, os resultados que o laborioso sabio alcançou. E', como se vê, um rasgar perspectivas novas, amplissimas, á riqueza cafeeira.

A edade moderna se chamará um dia a edade da chimica, tanto a sciencia das agremiações moleculares imprime nella, e cada vez mais, os vincos da sua influencia. Tudo se faz pela chimica. Tudo ella resolve. Penetrando no amago da materia desfal-a nos seus intimos componentes, e, senhora destes em liberbade atomica, pela synthese a recompõe em formas novas, ao sabor das proteiformes exigencias da civilisação. Valem os povos pelo valor da sua chimica. Todo o esplendor da Allemanha, sua força maravilhosa na aggressão, e não menos de espantar na defesa, tem na chimica o segredo.

Pela chimica venceu na luta commercial, e pela chimica jamais será vencida, em que pese á Havas. Um povo que não sabe chimica é um povo antecipadamente subjugado nesta perenne batalha do Somme que é a concorrencia industrial moderna,—tremenda batalha pacifica de resultados mais extensos que as fulgurantes Marengos e as formidaveis Tannenbergs. Esse primado da chimica revelou-o ao mundo a guerra. Na surpresa do arranque germanico Inglaterra e França vislumbraram de golpe a falha do arnez que os inferiorisava nas lutas da paz como nas mais persuasivas da guerra. E lançaram-se, soffregas, ao laboratorio, como ao antro magico onde se organisam, na equação e nas formulas, todas as victorias. Vencerão se conseguirem dotar-se de apparelhagem chimica superior å da rival. Em caso negativo suas victorias serão victorias pyrrhicas, ganhos apparentes, dominio de momento, que se esvairão em nevoa quando volvida, a paz, cessar o trom dos obuzeiros para recomeçar a guerra sem polvora em que os laboratorios é que bombardeiam.

Nós, em materia de tanta relevancia não vamos de pernas. De chimica temos, e apuradissima, só a eleitoral: arte manhosa de transmutar valores. Desapparelhados de institutos onde se forjem as armas dos pioneiros da victoria, os chimicos, temol-os cá escassos e de importação na duzia necessaria ao andamento duma duzia de fabricas.Nem o povo alcançou ainda nem os governos comprehenderam o valor e a necessidade vital deste apparelhamento basico á crepitante vida moderna.

Exemplo dorido de semelhante descaso dá-nol-o, flagrante, o caso de Pedro Baptista de Andrade, o homem desconhecido e incomprehendido, que encaneceu sobre as retortas, ao bafio acre de acidos, accumulando trabalhos capazes de enriquecer um paiz menos amigo de narcisar-se a um falso espelho que transmuta seus andrajos em purpura. Do copioso acervo de analyses a que submetteu os productos da nossa flora, e de que diremos em artigo Subsequente, basta para lhe realçar valia este jorro de luz que nos permitte transfazer numa caudal afluente ao Pactolo do café, os monturos mal cheirosos de 40 milhões de arrobas de palha inutil.

Só o alcool a extractar dalli seria actor relevantissimo no engrossar o activo economico do paiz, além dum sem numero de beneficios inndirectos, como a substituição da carissima gazolina importada por um succedaneo de producção interna, e a introducção do alcool como productor de luz.

Sobe de ponto o valor dos seus estudos se attentarmos que o processo de Pedro Baptista é sobre-tudo industrial, pratico em extremo e a todos accessivel. Tão maneiro é que está ao alcance de qualquer sitiante accrescer a sua machina de café de um appendice onde com pouco trabalho e escasso dispendio de intelligencia se lhe permitta avultar de um terço, se não dobrar. a renda liquida dos seus cafeeiros. Além deste aproveitanmento da palha accresce o das escolhas más, residuos infimos das estadeiras e ventiladores. Taes escorias ao invés de penetrarem no mercado como elemento falsificador do café, surgirão transformadas com lucro maior para o productor. e como solução ao problemo dos cafés baixos.

Pesa-nos dizer que os estudos de Pedro Baptista, valiosos como obra de sciencia pura, e valiosissimos pelas consequencias economicas delles resultantes. jazem an léo, desconhecidos fora d'um circulo restricto de amigos. Raros visitantes ousam levar seus passos até a mansão pacifica onde o venerando chimico moureja para o engrandecimento de um paiz desagradecido, e desses raros abencerragens poucos terão ante aquelles frascos e garrafas a visão do mundo novo que no bojo ellas encerram.

Meros curiosos uns, espectadores occasionaes outros, todos esquecem á soleira do laboratorio, a lição fecunda do mestre. Deixam ao sabio palavras vagas, de incitamento, oh! oh! admirativos, e se vão para o triangulo commentar boletins de guerra antigermanicos com alta exhibição de tactica alliadophila. Depois, um chope, uma coalhada—e esquecida está para sempre a lição entrevista.

Será sempre assim? Continuará assim? Estará S. Paulo tão rico que menos preze um redobro de riquezas? Continuaremos a importar alcool carissimo, e manita, e cafeina quando os temos em casa para abarrotar o mundo ?

Do bom senso, ou melhor do instincto de conservação «vontade de poder» de que fala Nietzsche, ousamos esperar que não. A imprensa falou, a grande bisbilhoteira transpõe os humbraes do laboratorio modesto, ergue a ponta ao véu sob que se occulta o homem e aponta ao publico a obra esplendida executada na penumbra sem reclamos, sem gabolice, sem escandalo e sem orgulho por um sabio que o é integral, na accepção mais larga do termo. Não se occulta por toda a vida a luz sob o meio alqueire.

Monteiro Lobato

(Do Estado de S. Paulo)


Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.