O Ermitão da Glória/I
Caía a tarde.
A borrasca, tangida pelo nordeste, desdobrava sobre o oceano o manto bronzeado.
Com a sombra, que projetavam os negros castelos de nuvens, carregava-se o torvo aspecto da costa.
As ilhas que bordam esse vasto seio de mar, entre a Ponta dos Búzios e Cabo Frio, confundiam-se com a terra firme, e pareciam apenas saliências dos rochedos.
Nas águas da Ilha dos Papagaios balouçava-se um barco de borda rasa e um só mastro, tão cosido à terra, que o olhar do mais prático marinheiro não o distinguiria a meia milha de distância entre as fraguras do penedo e o farelhão dos abrolhos.
Pelas amuradas e convés do barco viam-se recostados ou estendidos de bruços, cerca de dez marujos, que passavam o tempo a galhofar, molhando a palavra em um garrafão de boa cachaça de São Gonçalo, cada um quando chegava a sua vez.
Na tilha sobre alva esteira de coco estava sentada uma linda morena, de olhos e cabelos negros, com uma boca cheia de sorrisos e feitiços.
Tinha ao colo a bela cabeça de um rapaz, deitado sobre a esteira, numa posição indolente, e com os olhos cerrados, como adormecido.
De momento a momento, a rapariga debruçava-se para pousar um beijo em cheio nos lábios do moço, que entreabria as pálpebras e recebia a carícia com um modo, que revelava quanto já se tinha saciado na ternura da meiga cachopa.
— Acorde, preguiçoso! dizia esta galanteando.
— Teus beijos embriagam, amor! Não o sabias? respondeu o moço fechando os olhos.
Nesse instante um homem, que descera a ab-rupta encosta do rochedo com extrema agilidade, atirou-se à ponta da verga, e travando de uma driça, deixou-se escorregar até o convés.
O desconhecido, que assim chegava de modo tão singular, era já bem entrado em anos, pois tinha a cabeça branca e o rosto cosido de rugas; mas conservara a elasticidade e nervo da idade viril.
Com a arfagem que o movimento do velho imprimiu ao navio, sobressaltou-se toda a maruja; e o moço que estava deitado na esteira, ergueu-se de golpe, como se o tocara oculta mola.
Nesse mancebo resoluto, de nobre e altivo parecer, que volvia em torno um olhar sobranceiro, ninguém por certo reconheceria o indolente rapaz que dormitava pouco antes no colo de uma mulher.
Na postura do moço não havia a menor sombra de temor nem de surpresa, mas somente a investigação rápida e o arrojo de uma natureza ardente, pronta a afrontar o perigo em toda a ocasião.
Do primeiro lanço viu o velho que para ele caminhava:
— Então, Bruno?
— Aí os temos, Senhor Aires de Lucena; é só fisgar-lhes os arpéus. Uma escuna de truz!
— Uma escuna!... Bravo, homem! E dize-me cá, são flamengos ou ingleses?
— Pelo jeito, tenho que são os malditos franceses.
— Melhor; os franceses passam por bravos, entre os mais, e cavalheiros! A termos de acabar, mais vale que seja a mãos honradas, meu velho.
A esse tempo já a maruja toda a postos esperava as ordens do capitão para manobrar.
Aires voltou-se para a rapariga:
— Adeus, amor; talvez nunca mais nos avistemos neste mundo. Fica certa porém que levo comigo duas horas de felicidade bebidas em teus olhos.
Cingindo o talhe da rapariga debulhada em lágrimas, deu-lhe um beijo, e despediu-a atando-lhe ao braço uma fina cadeia de ouro, sua derradeira joia.
Instantes depois, uma canoinha de pescador afastava-se rapidamente em demanda da terra, impelida a remo pela rapariga.
De pé, no portaló, Aires de Lucena, fazendo à maruja um gesto imperioso, comandou a manobra.
Repetidas as vozes do comando pelo velho Bruno, colocado no castelo de proa, e executada a manobra, as velas desdobraram-se pelo mastro e vergas, e o barco singrou veloz por entre os parcéis.