Espumas Flutuantes (1913)/O Fantasma e a Canção

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O FANTASMA E A CANÇÃO




Orgulho! desce os olhos dos céos sobre ti mesmo; e vê como os nomes mais poderosos vão se refugiar n′uma canção.
   (Byron.)



— Quem bate? — «A noite é sombria!»
— Quem bate? — «É rijo o tufão!...
Não ouvis? a ventania
Ladra á lua como um cão.»
— Quem bate? — «O nome qu′importa?
Chamo-me dôr... abre a porta!
Chamo-me frio... abre o lar!
Dá-me pão... chamo-me fome!
Necessidade — é o meu nome!»
— Mendigo! pódes passar!

«Mulher, se eu fallar, promettes
A porta abrir-me?» — Talvez.
— «Olha... Nas cans deste velho
Verás fanados laureis.
Ha no meu craneo enrugado
O fundo sulco traçado
Pela c′roa imperial.
Foragido, errante espectro,
Meu cajado — já foi sceptro!
Meus trapos — manto real!»

— Senhor, minha casa é pobre...
Ide bater a um solar!
«De lá venho... O Rei-fantasma
Baniram do proprio lar.
Nas largas escadarias,
Nas vetustas galerias,
Os pagens e as cortezans
Cantavam!... Reinava a orgia!...
Festa! Festa! E ninguem via
O rei coberto de cans!»

— Fantasma! Aos grandes que tombam,
É palacio o mausoléo!
Tambem meu tumulo morreu.
— «Silencio! De longe eu venho...
O sec′lo — traça que medra
Nos livros feitos de pedra,
Róe o marmore, cruel.

O tempo — Attila terrivel,
Quebra co′a pata invisivel
Sarcophago e capitel.

— «Desgraça então para o espectro,
Quer seja Homero ou Solon,
Se, medindo a treva immensa,
Vai bater ao Pantheon...
O motim — Nero profano —
No ventre da cova insano
Mergulha os dedos crueis.
Da guerra nos paroxismos
Se abysmam mesmo os abysmos
E o morto morre outra vez!

«Então, nas sombras infindas,
S′esbarram em confusão
Os fantasmas sem abrigo
Nem no espaço, nem no chão...
As almas angustiadas,
Como aguias desaninhadas,
Gemendo voam no ar.
E enchem de vagos lamentos
As vagas negras dos ventos,
Os ventos do negro mar!

«Bati a todas as portas
Nem uma só me acolheu!...

— Entra! — Uma voz argentina
Dentro do lar respondeu.
— «Entra, pois, sombra exilada!
Entra! O verso — é uma pousada
Aos reis que perdidos vão.
A estrophe é a purpura extrema,
Ultimo throno — é o poema!
Ultimo asylo — a Canção!...

Bahia, 13 de Dezembro de 1869.