O Garimpeiro/IX
O dia amanhecera esplêndido.
Os vultos das grandes árvores isoladas, restos da floresta, que o machado tinha poupado, debuxavam-se em um céu puro e rico de fulgores, e balanceavam os topes verdes— negros, como velhos caciques sacudindo os cocares nas danças sagradas.
As brisas, que sopravam frescas, traziam mil perfumes de flores selváticas, e rumorejavam pela encosta, mesclando seu sussurro ao marulho das cachoeiras e à vozeria alegre dos garimpeiros, cujos almocafres e alavancas retiniam no cascalho das grupiaras. Toda a povoação despertava alegre e cheia de vida, como garça que à beira do lago se espaneja aos raios do sol, sacudindo das brancas asas as pérolas matutinas.
Quando Elias despertou, o sol já batia em cheio por ambas as margens do ribeirão. Abriu a janela, e deu com os olhos naquele magnífico e risonho espetáculo, que tão cruel e pungente contraste formava com o estado reamargurado de seu coração. O golpe que recebera na véspera repercutia-se agora em sua alma, ainda mais rude e doloroso. Ali esteve por mais de uma hora pensativo, perplexo e mergulhado no mais profundo abatimento. Não atinava com o que deveria fazer, e desejaria ali ficar para sempre mudo, imóvel, petrificado como uma estátua.
Por fim resolveu-se a procurar na agitação do corpo alguma diversão aos pensamentos que lhe escaldavam o cérebro. Pegou no chapéu, e saiu à toa e sem destino pelas ruas da povoação. Encontrou muitos amigos e conhecidos que o cumprimentavam, e da boca dos quais, sem que o perguntasse, ouvia a confirmação da fatal notícia do casamento de Lúcia. Esse casamento andava de boca em boca, e era o acontecimento que então mais preocupava a imaginação do público. Elias andava como que atordoado; aquele movimento e burburinho da população como que lhe causava vertigens. Os cumprimentos e felicitações de seus amigos o perturbavam, e pareciam-lhe um sarcasmo cruel. Assim vagou maquinalmente pelas ruas. Quando se recolheu a casa, era já meio— dia.
Logo ao chegar à casa do negociante, veio-lhe ao encontro o seu arrieiro a pedir-lhe dinheiro para pagamento do milho e mais despesa da tropa. Tirou da carteira uma nota de 20$000 e apresentou— a ao caixeiro da casa, pedindo-lhe que a trocasse por miúdos. O caixeiro, depois de examinar a nota por um instante, devolveu— a a Elias.
— Perdão, meu amo, disse-lhe o caixeiro, não lhe posso servir: esta nota é falsa.
Elias, enfiou. Não podendo ficar mais pálido do que estava, tornou-se verde.
— Falsa! repetiu com uma voz que lhe saía do coração, e mal passava pelos lábios.
— Falsa, sim senhor; se duvida chamemos o patrão.
Não foi preciso chamá-lo; ele vinha entrando nesse momento pela loja.
— Oh! bom— dia, amigo; como passou? levantou-se cedo! então, por onde andou? andou matando saudades? decerto ainda não almoçou? passou melhor do seu incômodo de ontem?
O pobre moço naquele momento tinha talvez mais vontade de enforcar-se do que de responder àquela chusma de perguntas com que seu hóspede à queima— roupa o obsequiava.
— Já nada sofro; estou bom, respondeu Elias em tom breve. Apresentei esta nota a seu caixeiro para ma trocar, e disse-me ser falsa. Veja.
— Falsíssima! exclamou o negociante, depois de examinar a nota um momento. São notas falsas procedentes da Bahia. Há muito tempo o comércio está avisado, e o governo já tem expedido as mais terminantes ordens e tomado medidas enérgicas para descobrir os moedeiros falsos, e consta que as pesquisas feitas vão obtendo resultado.
— Bem! vou ver outra, interrompeu bruscamente Elias; e tirou da carteira uma nota de 50$000. E esta? também será falsa?
— Ainda mais falsa do que a outra, se é possível, exclamou o negociante, apenas olhou para a nota. Ah! meu caro senhor Elias, como é que foi deixar-se embaçar por essa maneira? ...
— Falsa! falsa! ... deveras? ! ... murmurava o moço com voz rouca e abafada.
— É o que lhe digo, meu amigo; ninguém aqui na Bagagem dará cinco réis por qualquer dessas notas.
— Em que mundo andei eu, pois, meu Deus! ! meu Deus! estou perdido! perdido para sempre!
E, atirando-se sobre um tamborete, que estava perto do mostrador, apertava convulsivamente a cabeça entre as mãos.
— Perdido por tão pouca coisa? por uns 70$000! o caso não é para tanto, meu amigo.
— Prouvera ao céu fosse só isso! ... soluçou Elias com voz apenas inteligível.
— Como diz? ... então não é só isso? ...
Elias já não ouvia mais; estava aniquilado debaixo da nova e horrível catástrofe que acabava de fulmina-lo.
Traído em seu amor, vira na véspera derrocado em um momento o formoso castelo de suas esperanças, construído com tanto enlevo nos sonhos de dois anos de inquietações e trabalhos. Quando ia colocar a pedra do remate na cúpula do edifício, ei-lo que de súbito se desmorona até os fundamentos. Restava-lhe ainda a fortuna, consistente em algumas dezenas de contos, que à força de vontade, inteligência e atividade adquirira no Sincorá.
— De que me serve este dinheiro? dizia ele na véspera. À força de muito querer e muito trabalhar eu o ganhei por amor de Lúcia e para Lúcia. Agora, que Lúcia me abandona, eu o veria queimar-se com a mesma impassibilidade com que vejo arder este cigarro.
Mas pensava o mancebo que de feito no outro dia, a uma só palavra, toda aquela riqueza ia esvaecer-se como o fumo! mas ah! no momento da catástrofe, essa impassibilidade com que contava também se esvaeceu em presença da cruel realidade. Quase todo o dinheiro que trazia do Sincorá era falso; consistia em notas do mesmo padrão e valor daquelas que acabava de apresentar. Estava pobre como dantes. O rochedo, que acabava de conduzir até o cimo da montanha em dois longos anos de fadigas e perseverantes esforços, acabava de rolar no fundo dos abismos.
Era preciso ter na alma uma tríplice couraça de estoicismo para poder suportar impassível aqueles dois rudes golpes, desfechados um após outro pela mão da fatalidade. Elias, posto que não fosse das almas mais fracas, sentiu-se humilhado, acabrunhado e recalcado nesse antro de desesperação, para sair do qual só há uma porta— o suicídio.
Elias sentia viva necessidade de desabafar-se, de contar a alguém seus infortúnios; parecia-lhe que, se não o fizesse, se lhe rebentaria o coração. Mas na Bagagem não tinha um só amigo de confiança a quem abrisse sua alma, a não ser o velho Simão. Esse, Elias não sabia por onde andava, e ninguém lhe poderia dar notícias dele. Tinha, pois, de concentrar em si mesmo a tempestade, que ameaçava romper-lhe o coração.
Todavia não lhe era possível dissimular a seu hóspede o horrível revés por que acabava de passar, vendo em um instante reduzida a fumo a fortuna que à força de tanto trabalho e perseverança tinha sabido adquirir, no espaço de pouco mais de ano.
Depois de ter reunido por algum tempo o fel de seu infortúnio, Elias chamou de parte o negociante, e contou-lhe como depois de ter tentado fortuna na Bagagem sem resultado algum, e vendo-se quase reduzido à miséria, partira para o Sincorá em companhia de um homem desconhecido, que o convidara. Chegando ali, esse homem com toda a franqueza e generosidade o protegeu e auxiliou, colocando— o à testa do trabalho de suas lavras, em cujos rendimentos lhe dava consideráveis interesses. mas infelizmente esse homem, poucos meses depois, morreu de febre intermitente, deixando a Elias quase no mesmo estado em que saíra da Bagagem. Deu sepultura decente àquele bom e generoso protetor, a cujas cinzas sempre seria reconhecido, e chorou sobre sua sepultura lágrimas sinceras de dor e de saudade. Com os pequenos recursos que adquiriu durante aqueles poucos meses, continuou a garimpar em uma s datas que lhe eram próprias. Mas essas lavras eram pobres, e mal lhe davam para se ir mantendo. Já de novo a miséria o ameaçava de perto, quando um dia um moço de maneiras afáveis e de gentil e agradável presença apareceu no serviço em que ele trabalhava. Era um rico negociante, que andava comprando diamantes na mão dos garimpeiros, e que os pagava a bom preço. Todos os dias continuou a aparecer no serviço, comprava os diamantes que iam aparecendo sem reparar muito na qualidade nem no peso deles, e dava mostras manifestas de que queria protege-lo e dar-lhe a mão. Por fim esse moço, estreitando cada vez mais suas relações com ele, e como reconhecesse nele bastante inteligência e fino trato no conhecimento dos diamantes, o induziu largar o garimpo e ser seu agente no negócio dos diamantes, dando-lhe avultados interesses. Graças a esse novo e opulento protetor, que negociava em grande escala, e que todos os meses enviava para a capital da Bahia partidas consideráveis de diamantes, Elias, que o servia com zelo e inteligência, adquiriu em pouco tempo um avultado pecúlio. nesse tempo o preço do diamante teve grande alta nos mercados europeus, de modo que puderam realizar os mais vantajosos negócios e Elias via o seu pequeno pecúlio duplicar-se, triplicar-se, de mês a mês, e em breve pôde fazer avultadas transações por sua própria conta. Enfim, em menos de uma no, achou-se possuidor de uma soma de 50 contos, o que, no sertão, já se pode chamar uma fortuna. Mas o seu bom protetor, que era ao mesmo tempo seu comissário oficioso para a venda das pedras na Bahia, era também o seu banqueiro e o depositário de seus valores. Tanta generosidade o confundia, o enchia de gratidão e não lhe permitia duvidar um só instante da boa fé e probidade de tal homem. Manifestando-lhe ultimamente o desígnio que formara de voltar ao seu país natal, notou, não sem estranheza, que nenhuma objeção lhe opôs, contentando-se apenas em manifestar o pesar que sentia pela falta que lhe ia fazer, dizia ele, um tão bom e prestimoso amigo. A Elias pouco importava que ele aprovasse ou não o seu desígnio; sua resolução era inabalável. Mas não podendo deixar sem pesar o generoso protetor quem tudo devia, esperava encontrar também da sua parte alguma relutância em deixá-lo partir, e alguma luta de sentimentos. Agora infelizmente caiu o véu ao mistério, e compreendia o motivo infame daquele procedimento. Toda aquela liberalidade e generosa proteção que lhe dispensava, era o laço execrando, que lhe estava armando. Tendo de retirar-se, o seu amigo e protetor contou-lhe todo o dinheiro seu, que tinha em seu poder, perto de 50 contos, tudo em notas daquele valor e padrão, que seu hóspede acabava de ver! E assim acabava ele de atravessar cheio de contentamento e de esperança duzentas léguas de sertão, cuidando trazer na algibeira a fortuna e a felicidade, quando não trazia mais do que um maço de papel sujo.
— Agora, concluiu tristemente o moço, veja lá se é ou não para desesperar esta minha situação!
— É triste na verdade, mas não ainda para desesperar. O senhor é ainda muito moço e com a atividade e inteligência de que dispõe, assim como em menos de dois anos adquiriu esses quarenta ou cinqüenta contos falsos, agora com mais conhecimento do mundo e o escarmento dessa dolorosa experiência, pode também adquiri-los verdadeiros. O futuro é seu, meu amigo, e é vasto o campo das especulações.
— O futuro! oh! o futuro é só de Deus. Amanhã só Deus sabe o que será feito de mim!
Esta exclamação sussurrou apenas pelos lábios do moço, que, por assim dizer, a soluçara dentro do coração.
Ah! decerto pouco lhe importaria a perda de milhares de contos, que fossem, se esses contos não fossem o preço da felicidade de seu coração. Mas agora, que a felicidade lhe fugia para sempre, a perda desse dinheiro, que como um sonho se escoara de suas mãos, não era mais do que um pontapé com que o destino atirava desdenhosamente no abismo a vítima sangrada no coração.
Assim, pois, seu amor, suas esperanças, sua riqueza, sua felicidade, tudo isso fora uma ilusão, uma quimera. Reais só foram seus trabalhos e fadigas, suas angústias e inquietações; real era a perfídia de Lúcia; real só era a sua pobreza e a sua atual desesperação. A idéia do suicídio fixou-se no espírito do mancebo. Iria apunhalar-se aos olhos da pérfida, deixando-lhe por legado a sua maldição.
A maldição de quem morre é terrível, pensava ele, e paira eternamente sobre a cabeça do maldito.