Saltar para o conteúdo

O Gigante de Pedra

Wikisource, a biblioteca livre

O GIGANTE DE PEDRA

Ó guerriers ne laissez pas ma dépouille au corbeau!
Ensevelissez-moi parmi des monts sublimes,
Alin que l’étranger cherche, en voyant leurs cimes,
               Quel montagne est mon tombeau!
                                        V. Hugo. Le Géant.


I.

Gigante orgulhoso de fero semblante,
N’um leito de pedra lá jaz a dormir!
Em duro granito repousa o gigante
Que os raios sómente podérão fundir.

Dormido atalaia no serro empinado
Devêra cuidoso, sanhudo velar;
O raio passando o deixou fulminado,
E á aurora que surge não hade acordar!

Co’os braços no peito crusados nervosos,
Mais alto que as nuvens, os céos a encarar,
Seu corpo se estende por montes fragosos,
Seus pés sobranceiros se arrojão do mar!

De lavas ardentes seus membros fundidos
Avultão immensos: só Deos poderá
Rebelde lançal-o dos montes erguidos,
Curvados ao peso que sobre lhes ’stá.

E o céo, e as estrellas, e os astros fulgentes
São velas, são tochas, são vivos brandões,
E o branco sudario são nevoas algentes,
E o crepe que o cobre são negros bulcões.

Da noite que surge no manto fagueiro
Quiz Deos que se erguesse, de junto a seus pés,
A cruz sempre viva do sul no cruzeiro,
Deitada nos braços do eterno Moysés.

Perfumão-no odores que as flores exhalão,
Bafejão-no carmes de um bymno de amor
Dos homens, dos brutos, das nuvens que estalão,
Dos ventos que rugem, do mar em furor,

E lá na montanha, deitado dormido
Campeia o gigante, — nem póde acordar!
Crusados os braços de ferro fundido,
E a fronte nas nuvens, e os pés sobre o mar!

II.

Banha o sol os horisontes,
Trepa os castellos dos céos,
Aclara serras e fontes,
Vigia os dominios seus:
Já descahe p’ra o occidente,
E em globo de fogo ardente
Vai-se no mar esconder;
E lá campeia o gigante,
Sem destorcer o semblante,
Immovel, mudo, a jazer!

Vem a noite após o dia,
Vem o silencio, o frescor,
E a brisa leve e macia
Que lhe suspira ao redor;
E da noite entre os negrores
Das estrellas os fulgores
Brilhão na face do mar:

Brilha a lua scintillante,
E sempre mudo o gigante,
Immovel, sem acordar!

Depois outro sol desponta,
E outra noite tambem,
Outra lua que aos céos monta,
Outro sol que após lhe vem:
Após um dia outro dia,
Noite após noite sombria,
Após a luz o bulcão,
E sempre o duro gigante,
Immovel, mudo, constante
Na calma e na cerração!

Corre o tempo fugidio,
Vem das aguas a estação,
Após ella o quente estio
E ainda após o verão:
Crescem folhas, vingão flores,
Entre galas e verdores
Sazonão-se fructos mil;
Cobrem-se os prados de relva
Murmura o vento na selva
Azulão-se os céos de anil!

Tornão prados a despir-se,
Tornão flores a murchar,
Tornão de novo a vestir-se,
Tornão depois a seccar;
E como gota filtrada
De uma abobeda escavada
Sempre, incessante a cahir,
Tombão as horas e os dias,
Como phantasmas sombrias,
Nos abysmos do porvir!

E no feretro de montes
Inconcusso, immovel, fito,
Escurece os horisontes
O gigante de granito:
Com soberba indifferença
Sente extincta a antiga crença
Dos Tamoyos, dos Pagés,
Nem vê que duras desgraças,
Que lutas de novas raças
Se lhe atropellão aos pés!

III.

E lá na montanha deitado dormido
Campeia o gigante! — nem pode acordar!

Crusados os braços de ferro fundido,
E a fronte nas nuvens, e os pés sobre o mar!...

IV.

Vio primeiro os incolas
Robustos das florestas,
Batendo os arcos rigidos
Traçando homereas festas,
Á luz dos fogos rutilos,
Aos sons dos murmuré!
E em Guanabara esplendida
As danças dos guerreiros.
E o guáu cadente e vário
Dos moços prasenteiros,
E os cantos da victoria
Tangidos no boré.

E das igaras concavas
A frota aparelhada,
Vistosa e formosissima
Cortando a undosa estrada,
Sabendo mas que fragcis
Os ventos contrastar:

E a caça leda e rapida
Por serras, por devesas,
E os cantos da janubia
Junto ás lenhas accesas,
Quando o tapuya misero
Scos feitos vai cantar!

E o germen da discordia
Crescendo em duras brigas,
Ceifando os brios rusticos
Das tribus sempre amigas,
— Tamoy a raça antigua,
Feroz Tapinambá.
La vai a gente improvida,
Nação vencida, imbelle,
Buscando as matas invias
Donde outra tribu a expelle;
Jaz o pagé sem gloria,
Sem gloria o maracá.

Depois em náos flammivomas
Um troço hardido e forte,
Cobrindo os campos humidos
De fumo, e sangue, e morte,

Traz dos reparos horridos
D’altissimo pavez:
E do sangrento pelago
Em miseras ruinas
Surgir galhardas, limpidas
As portuguezas quinas,
Murchos os lises candidos
Do impavido gaulez!

V.

Mudarão-se os tempos e a face da terra,
Cidades alastrão o antigo paul;
Mas inda o gigante que dorme na serra
Se abraça ao immenso cruseiro do sul.

Nas duras montanhas os membros gelados
Talhados a golpes de ignoto buril,
Descança, oh gigante, que encerras os fados,
Que os terminos guardas do vasto Brasil

Porém se algum dia fortuna inconstante
Poder-nos a crença e a patria acabar,
Arroja-te ás ondas, oh duro gigante,
Inunda estes montes, desloca este mar!